A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E AS LICITAÇÕES PÚBLICAS –

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NO CONTEXTO DAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

 

Diego da Fonseca Hermes Ornellas de Gusmão

Procurador Federal

diego.gusmao@agu.gov.br

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Capacidade econômico-financeira. Peculiaridade do contrato administrativo; 2.  Recuperação judicial. Função social da empresa e sua preservação.  Necessidade de homologação do plano de recuperação para possibilitar a participação em licitações; Conclusão.

 

RESUMO

O presente estudo visa analisar a possibilidade de participação de empresários em recuperação judicial em licitações da Administração Pública. O foco da pesquisa foi buscar a devida equalização entre a necessidade de capacidade econômico-financeira dos licitantes com a função social da empresa na recuperação judicial. Restou concluído que é preciso que haja a homologação do plano de recuperação judicial para permitir a participação da empresa em licitações públicas.

 

PALAVRAS-CHAVE: Licitação Pública. Capacidade econômico-financeira. Recuperação judicial. Lei n. 11.101/2005. Função Social da Empresa. Plano de Recuperação. Homologação Judicial.

 

INTRODUÇÃO

O presente estudo visa analisar a questão relativa à possibilidade de participação de empresários e sociedades empresárias em submetidos ao regime da recuperação judicial em licitações no âmbito da Administração Pública, considerando o novo quadro normativo inaugurado com a edição da Lei nº 11.101, conhecida como nova Lei de Recuperação Empresarial e Falência - NLRF.

O ponto central da discussão diz respeito à substituição do antigo instituto da concordata, que ainda é previsto na Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, Lei de Licitações e Contratos – LLC, como causa de inabilitação econômico-financeira do licitante, pelo novel instituto da recuperação judicial.

Diante desse quadro, surgiram várias dúvidas sobre a possibilidade de participação de empresas em recuperação judicial em licitações públicas, com destaque para a possibilidade de se exigir a certidão negativa de recuperação judicial nos mesmos moldes da extinta concordata.

Para enfrentar tão complexa questão será necessário superar os seguintes pontos: (i) a necessidade de capacidade econômico-financeira dos que desejam contratar com a Administração Pública; (ii) a recuperação judicial como forma de manter a função social das empresas; (iii) a previsão na Lei de Licitações de certidão negativa de concordata para fins de habilitação da licitante.

 

1. CAPACIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA. PECULIARIDADE DO CONTRATO ADMINISTRATIVO.

 

A questão da capacidade econômico-financeira nos contratos administrativos possui especial relevância, tendo a legislação disciplinado a matéria de forma a obter dos licitantes a demonstração de que poderão suportar os ônus da contratação, dadas as peculiaridades que a lei reservou para efetuar o pagamento pela Administração-contratante.

O artigo 27, III, da Lei 8.666, exige que o licitante demonstre sua idoneidade econômica e financeira para suportar os ônus econômicos do contrato administrativo.

 A bilateralidade dos contratos administrativos determina que a Administração somente efetue o pagamento caso o contratado cumpra a sua parte na avença, conforme prevê o art. 476 do Código Civil e § 3º do art. 40 da Lei de Licitações e Contratos (exceptio non adimpleti contractus).

Além disso, os valores somente serão pagos na medida em que for aferido o correto cumprimento do objeto contratado, na forma como determinam os arts. 62 e 63 da Lei 4320, de 1964.

A LLC ao discriminar no seu artigo 40 o conteúdo obrigatório do edital incluiu, nesse conteúdo, e no inciso XIV do referido artigo, as condições de pagamento. Da leitura da letra a do inciso XIV c/c o § 3º do mesmo artigo 40, fica evidenciado que a Lei distinguiu, na execução contratual, dois momentos distintos e logicamente ordenados: a data do adimplemento de cada parcela e a data do correspondente pagamento, sendo que esta não deve distar 30 dias daquela[1].

Na letra b do dito inciso XIV, a previsão ali contida deixa patente que a execução contratual subordina-se a uma programação de pagamentos em conformidade com a disponibilidade de recursos financeiros da Administração Pública contratante. Tal é explicável, pois a execução orçamentária da despesa pública é ajustável à da receita pública que vai se realizando dia a dia[2].

A previsão da letra c desse inciso XIV traduz garantia ao contratado de que o valor do pagamento de cada parcela será atualizado financeiramente da data do adimplemento à do efetivo pagamento[3].

Por sua vez, a condição de pagamento prevista na letra d do dito inciso XIV propugna a obrigação de haver compensações financeiras, para o contratado, e penalizações, à Administração, por eventuais atrasos nos pagamentos, e descontos financeiros, em favor da Administração, por eventuais antecipações de pagamentos, tendo por parâmetro o prazo de pagamento (interstício entre a data do adimplemento e a do efetivo pagamento) de que tratou a previsão da letra a do referido inciso XIV.

Não cuida essa antecipação de pagamento de pretensa inversão da ordem lógica “adimplemento-pagamento”, mas tão somente de aumento daquele prazo, cabendo aí compensação financeira ao contratado e penalidade financeira à Administração, ou redução do mesmo prazo, cabendo, então, em prol da Administração, desconto financeiro do que seria devido de ser pago se efetivamente o fosse na data inicialmente aprazada[4].

Conforme destacou o TCU,

 

[t]ais preceitos aqui comentados da Lei 8.666/93 [art. 40, XIV] estão plenamente em consonância com as disposições da Lei 4.320/64, em seus artigos 61, 62 e 63 que cuidam das fases da despesa pública, bem como do Decreto n.º 93.872/86, especialmente seus artigos 42 (mesma finalidade do artigo 62 da Lei 4.320/64) que afirma que o pagamento da despesa só poderá ser efetuado quando ordenado após sua regular liquidação, e o 38, que veda expressamente a inversão daquela ordem “adimplemento-pagamento” e admite, à vista do adimplemento parcelado, o pagamento contratual também em correspondentes parcelas, segundo cronograma previsto em edital.[5]

 

Assim, deve a Administração se abster de efetuar pagamentos sem a necessária contrapartida por parte da contratada, ressalvados os casos em que haja justificativas plausíveis e desde que sejam exigidas as indispensáveis cautelas ou garantias, conforme determina o art. 38 do Decreto 93.872, de 1986.

Com base nessas premissas, o Exmo. Sr. Advogado-Geral da União editou a Orientação Normativa n° 37, que bem delimitou a possibilidade de pagamentos antecipados nos contratos administrativos[6].

As previsões do art. 40, XIV da LLC são complementadas pelo disposto no art. 73 da mesma lei, que trata da fase de recebimento do objeto contratado, distinguindo entre o recebimento provisório e o definitivo, em clara diferenciação com o regime jurídico de direito privado, em que a aceitação da coisa ou do serviço faz presumir sua perfeição, incumbindo àquele que recebeu o bem tomar as providencias em defesa de seu interesse[7].

No contrato administrativo, a mera entrega do bem ou a prestação do serviço não induz a aceitação por parte da Administração, que fica suspensa até a concretização do recebimento definitivo, que se processará mediante exames, testes e verificações, podendo ainda haver a rejeição do objeto contratado caso não atenda às previsões do contrato, conforme arts. 73 e 76 da LLC.

A regra é que o fornecedor de bens e o prestador de serviços somente recebam o pagamento da Administração após procedimento de execução de despesa orçamentária, que demanda tempo, e faz com que o particular tenha que suportar com recursos próprios o peso do contrato até que seja ultimado o pagamento.

Dessa forma, a liquidação e o pagamento da despesa somente podem ocorrer após o ateste do serviço realizado, normalmente no decorrer do mês posterior à prestação dos serviços. Assim, faz todo sentido exigir das licitantes que tenham recursos financeiros suficientes para honrar a contratação sem depender do pagamento por parte do contratante por certo período. Uma empresa que não tenha esta capacidade quando da realização do processo licitatório, certamente terá dificuldades em cumprir todas as obrigações decorrentes do contrato.

Não se pode olvidar outra peculiaridade dos contratos administrativos, que é a determinação legal de que o contratado somente possa deixar de prestar o objeto contratual caso a Administração atrase o pagamento por período superior a 90 (noventa) dias, mitigando de forma contundente a exceção do contrato não cumprido, situação esta que reforça a necessidade de solidez econômico-financeira, conforme determina o inc. XV do art. 78 da LLC.  

Uma empresa que assume compromissos além de sua capacidade econômico-financeira torna-se frágil e certamente terá problemas na administração desses contratos.

Percebe-se a importância da habilitação econômico-financeira da licitante para fins de apurar a disponibilidade de recursos econômicos para a satisfatória execução do objeto da contratação.

Nesse ponto reside a grande polêmica a respeito da possibilidade de participação de empresas em recuperação judicial em licitações.

 

2. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E SUA PRESERVAÇÃO.  HOMOLOGAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO PARA POSSIBILITAR A PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES.

 

A base axiológica do instituto da recuperação judicial está lançada no art. 47 da NLRF que, dada a sua relevância, merece ser colacionado:

 

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

 

A NLRF visa alcançar equilíbrio entre os objetivos dos empresários ou da sociedade empresarial e de seus credores, buscando preservar a função social da empresa.

A função social da empresa, conforme precisa lição de Rachel Sztajn, está estribada na atuação responsável no domínio econômico, não para cumprir as obrigações típicas do Estado nem substituí-lo, mas sim no sentido de que, socialmente, sua existência deve ser balizada pela criação de postos de trabalho, respeito ao meio ambiente e à coletividade, e neste sentido é que se busca preservá-la[8].

Esta função social só será preenchida se a empresa for lucrativa, para o que deve ser eficiente. Eficiência, nesse caso, não é apenas produzir os efeitos previstos, mas é cumprir a função despendendo pouco ou nenhum esforço; significa operar eficientemente no plano econômico, produzir rendimento, exercer a atividade de forma a obter os melhores resultados. Se deixar de observar a regra da eficiência, dificilmente alguma empresa sobreviverá atuando em mercados competitivos.[9]

Entre os mecanismos previstos para alcançar tal fim, a recuperação judicial é primordial para salvaguardar a empresa passível de recuperação, com o saneamento da crise que a envolve, permitindo o prosseguimento da atividade empresarial, com a manutenção do emprego dos trabalhadores, satisfação dos credores, atendendo aos anseios da sociedade de um modo geral.

Conforme bem explica Sérgio Campinho, a recuperação judicial, segundo o perfil que lhe reservou o ordenamento jurídico, apresenta-se como o somatório de providências de ordem econômico-financeiras, econômico-produtivas, organizacionais e jurídicas, por meio das quais a capacidade produtiva de uma empresa possa, da melhor forma, ser reestruturada e aproveitada, superando, com isso, a situação de crise econômico-financeira em que se encontra o seu titular – o empresário -, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego, e a composição dos interesses dos credores[10].

Na recuperação judicial há efetiva participação de todos os credores representados em assembleia-geral, que terão o poder de aprovar ou não o plano de recuperação apresentado pelo devedor, imprimindo natureza contratual ao instituto, sendo um contrato judicial, com feição novativa[11].

Não se pode perder de vista que o instituto da recuperação é voltado para empresas que possuam viabilidade, já que nem toda empresa merece ou deve ser recuperada.

Como bem esclarece Fábio Ulhoa Coelho, a reorganização de atividades econômicas é custosa. Alguém há de pagar pela recuperação, seja na forma de investimentos no negócio em crise, seja nas perdas parciais ou totais de crédito. Em última análise, como os principais agentes econômicos acabam repassando aos seus respectivos preços as taxas de riscos associados à recuperação judicial, o ônus da reorganização das empresas acaba recaindo sobre a sociedade como um todo[12].

Por isso, não se pode erigir a recuperação das empresas a um valor absoluto.

A ação de recuperação judicial é constitutiva, já que cria nova situação jurídica para o devedor e os credores a ela sujeitos (art. 49, NLRF), quer no plano processual (art. 6º, NLRF), quer no plano de direito material (art. 59, NLRF).

Não cabe confundir, todavia, duas situações processuais distintas na Lei de Recuperação de Empresas, já que quando a empresa devedora solicita a recuperação judicial e o juiz defere o seu processamento (art. 52, NLRF), a requerente confessa seu estado de insolvência sem comprovar a sua viabilidade econômico-financeira, que somente se dará com a aprovação ou ausência de objeção ao plano de recuperação, quando o juiz concederá a recuperação em si (art. 58, NLRF).

Melhor explica Fabio Ulhoa Coelho[13] que o processamento da recuperação judicial é dividido em três fases.

Na primeira, que se pode chamar de fase postulatória, o empresário individual ou a sociedade empresária em crise apresenta seu requerimento de benefício. Ela se inicia com a petição inicial de recuperação judicial e se encerra com o despacho judicial mandando processar o pedido (art. 52, NLRF).

Na segunda fase, a que se pode referir como deliberativa, após a verificação do crédito (arts. 7º a 20, NLRF), discute-se e aprova-se um plano de reorganização (art. 53, NLRF). Tem início com o despacho que manda processar a recuperação judicial e se conclui com a decisão concessiva do benefício (art. 58, NLRF).

A derradeira etapa do processo, chamada fase de execução, compreende a fiscalização do plano aprovado. Começa com a decisão concessiva da recuperação judicial e termina com a sentença de encerramento do processo (art. 63, NLRF).

Assim, para a formalização do pedido de recuperação judicial, exige-se o preenchimento de requisitos cumulativos, previstos no artigo 48, da NLRF. Logo, comprovadas tais condições, estará o empresário (individual ou social) legitimado a requerer a recuperação judicial, com petição inicial instruída de acordo com o artigo 51, da NLRF.

Após o deferimento do processamento da recuperação pelo juiz (art. 52, da NLRF), o devedor deverá apresentar o respectivo plano no prazo improrrogável de 60 (sessenta) dias da publicação daquela decisão de deferimento. Nos termos do art. 53, o plano de recuperação judicial revelará minuciosamente quais serão as medidas concretas a serem empregadas para solucionar a crise da empresa, de sorte a indicar a sua viabilidade econômica e financeira, conforme dispositivo assim lançado:

 

Art. 53. O plano de recuperação será apresentado pelo devedor em juízo no prazo improrrogável de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, sob pena de convolação em falência, e deverá conter:

I – discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados, conforme o art. 50 desta Lei, e seu resumo;

II – demonstração de sua viabilidade econômica; e

III – laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.

Parágrafo único. O juiz ordenará a publicação de edital contendo aviso aos credores sobre o recebimento do plano de recuperação e fixando o prazo para a manifestação de eventuais objeções, observado o art. 55 desta Lei.

 

A publicação da decisão que defere o processamento do pedido de recuperação marca o início do prazo de sessenta dias que a lei qualificou como improrrogável para a apresentação do plano de recuperação.

Perceba que na fase postulatória o juízo da recuperação apenas defere o processamento da recuperação judicial (art. 52, NLRF), ao passo que na fase deliberativa, o juiz defere a concessão da recuperação judicial propriamente dita (art. 58, NLRF).

Mais uma vez nos socorremos das precisas lições de Fábio Ulhoa Coelho, que explica que o despacho de processamento não se confunde com a decisão concessiva da recuperação judicial. O pedido de tramitação é acolhido no despacho de processamento, em vista apenas de dois fatores: a legitimidade ativa da parte requerente e a instrução nos termos da lei. Ainda não está definido, porém, se a empresa devedora é viável. Somente na tramitação do processo, ao longo da fase deliberativa, fornecerá os elementos para a concessão da recuperação judicial[14].

Dessa forma, o deferimento da petição inicial não significa a concessão do regime recuperatório judicial, nem a assunção de qualquer compromisso por parte do magistrado em concedê-lo no futuro. O deferimento da petição inicial significa somente a autorização de tramitação do processo, não cabendo avaliar se a requerente está envolvida em crise de superação viável.

Pela leitura da Lei de Recuperação de Empresas, aos credores é facultado objetar ao plano de recuperação (art. 55, NLRF), momento no qual o juiz convocará a assembleia geral de credores para análise e deliberação do plano (art. 56, NLRF).

Será concedida a recuperação judicial ao devedor cujo plano não tenha sofrido objeção ou tenha sido aprovado pela assembleia geral de credores (art. 58). Mesmo que não aprovado o plano na forma do art. 45 da NLRF, poderá ainda ser concedida a recuperação caso seja atingido o número de votos favoráveis dos credores, nas classes respectivas, nos termos previstos no § 1º do art. 58.

O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, conforme o art. 59 da NLRF, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50, que determina que na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão desta ou a sua substituição somente serão admitidas mediante a aprovação expressa do titular da respectiva garantia.

Na verdade, há uma novação precária, porque a despeito dessa novação, se houver falência, os credores retomam todas as garantias originais. Então, são ressuscitadas as hipotecas e outras garantias de que eram titulares os credores, na dicção do § 2º do art. 61 da NLRF.

Somente após o cumprimento das exigências legais e desde que o plano de recuperação judicial não tenha sofrido objeções nos termos do artigo 55 da NLRF, ou que tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores ou, ainda, mesmo que não aprovado, tiver suprida a aprovação por decisão judicial, é que se concederá a recuperação judicial.

Concedida a recuperação judicial pela decisão a que se refere o art. 58 dá-se o início da execução do plano aprovado pelos credores, cumprindo-se as obrigações ali ajustadas e sempre sob a fiscalização dos credores e do administrador judicial (artigo 22, II, a e b, NLRF), que poderão requerer a falência do credor na hipótese de seu descumprimento (art. 61, § 1º, c/c art. 73, IV, NLRF).

Pela não apresentação pelo devedor do plano de recuperação no prazo de 60 dias improrrogáveis, ou caso venha a ser rejeitado pela assembleia de credores, será convolada a recuperação judicial em falência (art. 73, II e III, NLRF).

Apenas na fase do art. 58 da NLFR, é que existe a recuperação judicial em sentido material, quando os atos tendentes a superar a situação de crise serão efetivamente praticados.

Nesse ponto reside a grande polêmica a respeito da possibilidade de participação de empresas em recuperação judicial em licitações, em particular pelo disposto no inc. II do art. 31 da Lei de Licitações, que merece registro:

 

Art. 31.  A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:

(…)

II - certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física;

 

Percebe-se que não há referência na LLC à recuperação judicial, sendo instituto que não se confunde com a antiga concordata.

Cabe o registro de que tanto a antiga concordata como a atual recuperação judicial tinham por ponto em comum a superação de crise econômica e financeira do devedor, mas a concordata era mais restritiva que a recuperação judicial, na medida em que a recuperação cabe a qualquer tipo de crédito (art. 49, NLFR), diferente da concordata, em que referia-se apenas aos credores quirografários (art. 147, DL n° 7.661, de 21 de junho de 1945, antiga lei de falência).

Além disso, a Recuperação previu várias formas de pagamento no artigo 50 da NLRF, ao passo que na Concordata concedia dilação no prazo dos pagamentos e remissão de parte da dívida, conforme constava do art. 156 do Decreto-Lei 7661, de 1945.

Não obstante, parte significativa da doutrina sustenta que deve ser aplicada a mesma vedação da concordata à recuperação judicial, já que haveria uma presunção de insolvência do empresário em recuperação.

 Marçal Justen Filho sustenta que incide a presunção absoluta de inidoneidade sob o empresário devedor em recuperação já que não ostenta qualificação econômico-financeira para a licitação. Tal presunção deve-se ao fato de que, no instante em que pleiteia a própria recuperação em juízo, esse empresário estará confessando sua insolvência[15].

A doutrina ainda traz como justificativa para exigir a certidão negativa de recuperação o disposto no inc. II do art. 52 da NLRF que não dispensa certidões negativas da empresa quando contratar com o poder público, considerando o risco peculiar dos contratos administrativos, e que,

 

usualmente, os contratos serão de longo prazo, de execução continuada ou diferida. O risco inerente a tais contratos não deve ser agravado mediante a admissão de o contratante particular ser sociedade cuja existência, a continuidade, é, sabidamente, incerta. Não se trata, no caso de pedido de recuperação, de risco ordinário, e sim dos efeitos negativos da concretização de tal risco.[16]

 

Tal tese foi encampada pelo Tribunal de Contas da União, quando do julgamento do emblemático acórdão n. 1214/2013, quando entendeu que mesmo com a mudança legislativa, é plenamente exigível a certidão negativa de recuperação judicial e extrajudicial, conforme excerto que ora colaciono:

 

55.    A esse respeito, o Tribunal já analisou situação semelhante no âmbito do TC 025.770/2009-7. Naquela oportunidade questionou-se exigência de certidão negativa de recuperação judicial e de recuperação extrajudicial. O Tribunal entendeu legítima essa exigência, pois conforme apontado pelo Ministro André Luis de Carvalho, relator daquele processo, tal certidão “substitui a certidão negativa da antiga concordata em situações surgidas após a edição da lei” (item 24 do voto). Ressalte-se, ainda, que em outras situações o Tribunal se deparou com requisito semelhante e não fez qualquer restrição a respeito (Acórdãos 1.979/2006, 601/2011, 2.247/2011, 2.956/2011, todos do Plenário). Portanto, não vejo óbices para que tal exigência seja feita.

 

Em posicionamento diametralmente oposto, outra parte da doutrina defende que a previsão do artigo 31, II, da LLC, deve ser reinterpretada e adaptada à luz da nova Lei de Recuperação de Empresa, em particular com a óptica no art. 47, amoldando-se à sua moderna sistemática, conforme lição de Mauro Rodrigues Penteado, que merece ser colacionada:

 

Coerentemente com a nova solução dada pela Lei 11.101 para a solução da crise econômica das atividades empresariais, parece evidente que a Lei de Licitações está a reclamar adaptação, de molde a que as sociedades que tenham seus Planos de Recuperação concedidos judicialmente também possam participar de licitações realizadas pelo Poder Público, que, em muitos casos, constitui fator importante para que superem as dificuldades por que passam, não havendo motivos para delas afastar unidade empresarial cuja viabilidade e possibilidade de atuar eficientemente no mercado passou pelo crivo daqueles que melhores têm competência para fazê-lo, ou seja, seus credores privados, sob a supervisão do Judiciário, ainda que alguns requisitos adicionais sejam requeridos para compor seus planos, tendo em vista o interesse público.[17]

 

No âmbito da jurisprudência, foi determinada pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de medida cautelar, a dispensa de apresentação de certidão de recuperação judicial na fase de habilitação econômico-financeira da licitação, entendendo por verossímil que o inc. II do art. 31 da LLC estaria superado pela nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência, conforme precedente que ora colaciono:

 

[…]

3. Quanto ao fumus boni iuris - possibilidade de  empresa em recuperação judicial ser dispensada de apresentação da certidão ínsita no inciso II, do art. 31, da Lei nº 8.666/93, considerando os fins do instituto elencados no art. 47 da Lei nº 11.101/2005 - para fins de participação em certames, verifica-se que esta Corte Superior de Justiça não possui posicionamento específico quanto ao tema. […][18]

 

É interessante notar que no caso julgado pelo STJ acima referido, a empresa em questão estaria com seu plano de recuperação devidamente aprovado em assembleia de credores, demonstrando que o processo de recuperação já se encontrava na fase do art. 58 da NLRF, conforme excerto que bem esclarece as premissas do julgado:

 

Em que pese os ponderáveis argumentos postos no bem lançado parecer do MP, assim mesmo considero viável a declaração judicial da possibilidade de a empresa em recuperação judicial participar de licitações, no sentido de afirmar que, nos termos do plano de recuperação judicial aprovado em assembléia, não há qualquer restrição a esse respeito.

 

Registre-se que o próprio Tribunal de Contas da União, em julgado mais antigo, jse manifestou no sentido da possibilidade de participação de licitantes em recuperação judicial, desde que apresente certidão emitida pela instância judicial que certifique sua aptidão econômica e financeira:

 

1.5.1. dar ciência à Superintendência Regional do DNIT no Estado do Espírito Santo que, em suas licitações, é possível a participação de empresa em recuperação judicial, desde que amparada em certidão emitida pela instância judicial competente, que certifique que a interessada está apta econômica e financeiramente a participar de procedimento licitatório nos termos da Lei 8.666/93.[19]

 

Entendo que deve ser feita a devida distinção entre a situação do empresário que está ainda postulando a recuperação judicial (art. 52, NLRF), daquele que já está com o plano de recuperação aprovado e homologado judicialmente, com a recuperação já deferida (art. 58, NLRF).

As contratações públicas são um grande estímulo à economia, e podem servir para retirar empresários em recuperação da situação de insolvência que se encontram, forte até na premissa que pelas licitações se obtém o desenvolvimento nacional sustentável (art. 3o da LLC).

Inclusive, os autores que defendem essa possibilidade afirmam que, como a LLC exige certidão negativa de concordata, e este instituto não existe mais no ordenamento, não há base legal para exigir a certidão negativa de recuperação, que não se confunde com a decaída concordata, tese esta incorporada no acórdão do STJ.

Mas, além do estímulo à economia, as contratações públicas visam obter a satisfação dos interesses imediatos da Administração com a seleção da proposta mais vantajosa, tendo como objetivo principal manter a continuidade da atividade administrativa, que não pode ficar comprometida.

Quando a empresa está com sua recuperação deferida, é plausível que haja viabilidade econômico-financeira, em particular se houver previsão no plano da participação da empresa em contratações públicas.

Se a empresa postulante à recuperação não obteve o acolhimento judicial do seu plano, não há demonstração da sua viabilidade econômica, não devendo ser habilitada no certame licitatório.

Percebe-se que a exigência de certidão negativa de recuperação judicial é ainda exigível por força do art. 31, II, da Lei 8.666, de 1993, porém a certidão positiva não implica a imediata inabilitação, cabendo ao pregoeiro ou à comissão de licitação realizar diligências para avaliar a real situação de capacidade econômico-financeira.

Caso a certidão seja positiva de recuperação, caberá ao órgão processante da licitação diligenciar no sentido de aferir se a empresa em recuperação já teve seu plano de recuperação acolhido judicialmente, na forma do art. 58 da Lei 11.101, de 2005, sendo recomendável que no próprio edital do certame conste a menção de que será exigido da empresa em recuperação judicial a apresentação de comprovação de que o plano de recuperação foi acolhido na esfera judicial.

Além disso, mesmo a empresa em recuperação judicial com plano de recuperação acolhido, como sói acontecer com qualquer licitante, deve demonstrar os demais requisitos para a habilitação econômico-financeira.

Dessa forma, é possível a participação em licitações de empresas com recuperação judicial concedida na forma do art. 58 da Lei 11.101, de 2005, sendo exigível a demonstração da capacidade econômico-financeira da licitante para suportar os ônus da contratação.

 

CONCLUSÃO

Vistos os principais pontos relativos à inovação normativa da recuperação judicial na legislação brasileira, chegou a hora de sistematizar algumas considerações acerca da potencial participação dos empresários submetidos ao regime da recuperação em matéria de contratações públicas.

(i)             sobre a participação da empresa em recuperação judicial em licitações, deve ser feita a devida distinção entre a situação da empresa que está ainda postulando a recuperação judicial (art. 52, da Lei 11.101, de 2005), daquela que já está com o plano de recuperação aprovado e homologado judicialmente, com a recuperação já deferida (art. 58, da Lei 11.101, de 2005);

(ii)            o mero despacho de processamento do pedido de recuperação judicial, com base no art. 52 da Lei 11.101, de 2005, não demonstra que a empresa em recuperação possua viabilidade econômico-financeira;

(iii)          apenas com o acolhimento judicial do plano de recuperação, na fase do art. 58 da Lei 11.101, de 2005, é que existe a recuperação judicial em sentido material, com a demonstração da viabilidade econômico-financeira da empresa;

(iv)          a certidão negativa de recuperação judicial é exigível por força do art. 31, II, da Lei 8.666, de 1993, porém a certidão positiva não implica a imediata inabilitação, cabendo ao pregoeiro ou à comissão de licitação realizar diligências para avaliar a real situação de capacidade econômico-financeira;

(v)           caso a certidão seja positiva de recuperação, caberá ao órgão processante da licitação diligenciar no sentido de aferir se a empresa em recuperação já teve seu plano de recuperação acolhido judicialmente, na forma do art. 58 da Lei 11.101, de 2005;

(vi)          se a empresa postulante à recuperação não obteve o acolhimento judicial do seu plano, não há demonstração da sua viabilidade econômica, não devendo ser habilitada no certame licitatório;

(vii)        a empresa em recuperação judicial com plano de recuperação acolhido, como qualquer licitante, deve demonstrar os demais requisitos para a habilitação econômico-financeira.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg na MC 23.499/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/12/2014, DJe 19/12/2014.

BRASIL, Tribunal de Contas da União. Acórdão 2204/2007. Plenário.

CAMPINHO, Sérgio. Falência e Recuperação de Empresa: O Novo Regime da Insolvência Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005.

—. Curso de Direito Comercial. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2005.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16a. São Paulo: RT, 2014.

MARZAGÃO, Lídia Valério. “A recuperação judicial.” In: Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas, por Rubens Aprobato Machado. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

PENTEADO, Mauro Rodrigues. “Falidos e sociedades empresárias em recuperação, nas licitações e contratos com a Administração Pública. Concessão e Permissão de prestação de serviços públicos.” In: Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005, por Francisco Satiro de Souza Jr. e Antônio Sérgio de Moraes Pitombo. São Paulo: RT, 2005.

SZTAJN, Rachel. “Comentários aos arts. 47 ao 54.” In: Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005, por Franciso Satiro de Souza Jr. e Antônio Sérgio Altiere de Moraes Pitombo, 217-268. São Paulo: RT, 2005.

 

 

 

 



[1] BRASIL, Tribunal de Contas da União.  Acórdão 2204/2007. Plenário.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] BRASIL, Tribunal de Contas da União.  Acórdão 2204/2007. Plenário.

[5] Ibidem.

[6] A ANTECIPAÇÃO DE PAGAMENTO SOMENTE DEVE SER ADMITIDA EM SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS, DEVIDAMENTE JUSTIFICADA PELA ADMINISTRAÇÃO, DEMONSTRANDO-SE A EXISTÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO, OBSERVADOS OS SEGUINTES CRITÉRIOS: 1) REPRESENTE CONDIÇÃO SEM A QUAL NÃO SEJA POSSÍVEL OBTER O BEM OU ASSEGURAR A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO, OU PROPICIE SENSÍVEL ECONOMIA DE RECURSOS; 2) EXISTÊNCIA DE PREVISÃO NO EDITAL DE LICITAÇÃO OU NOS INSTRUMENTOS FORMAIS DE CONTRATAÇÃO DIRETA; E 3) ADOÇÃO DE INDISPENSÁVEIS GARANTIAS, COMO AS DO ART. 56 DA LEI Nº 8.666/93, OU CAUTELAS, COMO, POR EXEMPLO, A PREVISÃO DE DEVOLUÇÃO DO VALOR ANTECIPADO CASO NÃO EXECUTADO O OBJETO, A COMPROVAÇÃO DE EXECUÇÃO DE PARTE OU ETAPA DO OBJETO E A EMISSÃO DE TÍTULO DE CRÉDITO PELO CONTRATADO, ENTRE OUTRAS.

 

[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 16ª ed. São Paulo: RT, 2014, p. 1079.

 

[8] SZTAJN, Rachel. Da recuperação judicial. In: Francisco Satiro de Souza Jr. e Antônio Sério Altieri de Moraes Pitombo (coords), Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005, São Paulo: RT, 2005, p. 221.

[9] SZTAJN, Rachel. Op. cit. p. 222.

[10] CAMPINHO, Sérgio. Falência e Recuperação de Empresa: O Novo Regime da Insolvência Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 10-11.

[11] MARZAGÃO, Lídia Valério. A recuperação judicial. In: Rubens Approbato Machado (coord.). Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 94. No mesmo sentido: CAMPINHO, Sérgio. Op. cit., p. 12.

[12] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3, p. 382.

[13] COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 145.

[14] COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 154-155.

[15] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 16ª ed. São Paulo: RT, 2014, p. 637.

[16] SZTAJN, Rachel. Op. cit. p. 258.

[17] PENTEADO, Mauro Rodrigues. A falência em outras leis especiais: Falidos e sociedades empresárias em recuperação, nas licitações e contratos com a Administração Pública. Concessão e Permissão de prestação de serviços públicos. In: Francisco Satiro de Souza Jr. e Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo (coords), Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005, São Paulo: RT, 2005, p. 112.

[18] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg na MC 23.499/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/12/2014, DJe 19/12/2014.

[19] Acórdão 8271/2011 - 2ª Câmara.