DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DA PRECLUSÃO AO DIREITO DE REPACTUAR O CONTRATO ADMINISTRATIVO


Gabriela Verona Pércio

Advogada.

Especialista em Direito Administrativo.

Mestre em Gestão de Políticas Públicas.

Autora das obras “Contratos Administrativos – Manual para Gestores e Fiscais”, 2ª Ed., 2017, Juruá Editora e “Instrução Normativa 05/17-MPDG – Comentários a Artigos e Anexos”, 2017, INGEP Editora.

Sócia na GVP Parcerias Governamentais.

Consultora e instrutora em treinamentos para a Administração Pública sobre Licitações e Contratos.


SUMÁRIO: 1. O problema; 2. A ausência do dever do contratado de solicitar a repactuação; 3. O descabimento da aplicação do instituto da preclusão; 3.1 A impossibilidade de cogitar de decadência do direito; 4. Conclusão.



RESUMO

Há quase 10 anos, o instituto da preclusão lógica vem sendo aplicado pela Administração Pública federal como obstáculo ao exercício, pelo contratado, do direito de obter a repactuação. Institucionalizou-se, a partir de manifestações do Tribunal de Contas da União e da Advocacia Geral da União, que o silêncio do contratado, ao prorrogar o contrato sem reclamar a repactuação, tem o efeito de renúncia tácita ao direito constitucional à manutenção das condições econômicas da proposta por esta via. O entendimento tem sido adotado, equivocadamente, como verdade absoluta, em prejuízo, muitas vezes, dos próprios resultados visados om o contrato administrativo celebrado. O presente artigo tem como objetivo demonstrar que é equivocada a aplicação supletiva desse instituto do Direito Privado aos contratos administrativos, da forma como tem ocorrido, oferecendo os necessários fundamentos jurídicos para tanto.


PALAVRAS-CHAVES: Contrato administrativo; Repactuação; Preclusão lógica; Manutenção das condições efetivas da proposta; Reequilíbrio econômico-financeiro; Aplicação supletiva do Direito Privado.


  1. O problema

Desde 2009, com o Acórdão 1828 do Plenário do TCU e com o posterior Parecer da AGU JT-02, de 26 de fevereiro de 2009, de natureza vinculante, adotou-se na Administração Pública brasileira uma prática controversa: aplicar o instituto da preclusão lógica para negar à empresa contratada o direito à repactuação, após assinado o termo aditivo de prorrogação da vigência sem a correspondente solicitação. Aludida prática não somente é controversa, porque afeta um direito constitucionalmente assegurado e pode gerar efeitos prejudiciais ao próprio interesse público presente no contrato, mas também porque seus fundamentos jurídicos não se mostram muito claros.

Quando nos valemos de um instituto do Direito Privado para resolver impasse originado no âmbito do Direito Público, devem ser respeitadas as normas que lhe dão contorno primário, que lhe conformam a essência. Ou bem é um instituto do Direito Privado aplicável supletivamente em situação concreta de Direito Público, ou não há âmbito para sua aplicação nesta seara, não se admitindo sua mutilação, seu redesenho para que, com a extirpação de aspectos nucleares, possa caber na moldura pretendida. Ao assumirmos que determinado instituto do Direito Privado não possui ampla aplicabilidade no Direito Administrativo, como ocorre com a exceptio non adimpleti contractus, estamos restringindo sua incidência em razão de afirmada incompatibilidade com a supremacia do interesse público sobre o privado. Já ao aplicarmos um instituto desenhado por uma lei de Direito Privado em situação diferente da que motivou sua criação, desbordamos dos limites jurídicos e estamos, perigosamente, em franca atividade criativa predestinada à ilegalidade.

E, s. m. j., foi exatamente o que ocorreu em relação ao instituto do Direito Processual Civil denominado “preclusão lógica”, ao ser transposto para a seara do contrato administrativo como obstáculo à repactuação.


  1. A ausência do dever do contratado de solicitar a repactuação

Mas, antes de enveredar pelos fundamentos que levam a tal conclusão, é apropriado enfrentar outra questão: a alegada obrigação do contratado de solicitar a repactuação como condição de sua concessão, premissa que escora a suposta preclusão lógica. De plano, com o devido respeito aos que pensam diferente, afirmo que essa obrigação não existe.

A repactuação, como espécie de reajuste, característica oficialmente reconhecida pelo próprio TCU no Acórdão 1.828/09-Plenário, encontra seu fundamento no art. 37, XXI da Constituição da República, sendo uma das formas legais para a recomposição do reequilíbrio econômico-financeiro visando a manutenção das condições efetivas da proposta. Sua origem normativa está no Decreto 2.271/97, que a descreve como a verificação analítica da variação dos custos dos insumos, vindo a ocorrer nos ajustes em que a formação do preço levar em conta, eminentemente, custos com mão de obra. O reajuste, por sua vez, se dá com a aplicação de índices econômicos específicos e setoriais, admitindo-se índices gerais na inexistência daqueles. Previsto nos arts. 40, X e 55, III da Lei 8.666/93, é compreendido pela Corte de Contas federal como sendo “automático”, já que não depende de demonstração da variação dos custos dos insumos. Por essa mesma razão, segundo o TCU, não precisa ser solicitado pelo contratado e pode ser pago imediatamente, após o período aquisitivo do direito, qual seja, doze meses contados da data da apresentação da proposta. Observam-se, portanto, entendimentos diferentes em relação aos dois institutos, reajuste em sentido estrito e repactuação, embora possuam a mesma finalidade e tenham os mesmos fundamentos jurídicos.

Não há razão para que assim seja. A Lei 8.666/93 estabeleceu como cláusula obrigatória do edital o critério de reajuste, que deverá retratar a variação efetiva do custo de produção desde a data prevista para apresentação da proposta ou do orçamento a que a proposta se referir, e como cláusula necessária ao contrato os critérios, a data-base e a periodicidade de sua ocorrência. Assim, fechada a periodicidade prevista, que teve início a partir da data-base estabelecida, será aplicado o critério de reajuste escolhido. Não há, pois, vinculação do direito ao reajuste, qualquer que seja o critério utilizado, a um pedido formal pelo contratado.

Nessa linha, sendo a repactuação um critério de reajuste, o mesmo raciocínio se impõe. A diferença reside, apenas, em que, no mundo dos fatos – e não do Direito, a repactuação não pode ser “automática” como o reajuste, porque a Administração necessita conhecer o resultado das negociações finalizadas por meio da convenção ou acordo coletivo, a ser fornecido pela contratada. Assim, a concessão da repactuação está condicionada, por impossibilidade de conduta diversa, ao cumprimento dessa obrigação por parte do contratado. Contudo, isso nada tem a ver com condicionar o próprio direito à repactuação à sua solicitação. O direito constitucional à manutenção das condições efetivas da proposta, tal como colocado pelo ordenamento jurídico vigente, apenas sucumbe ante a expressa manifestação do contratado. A disponibilidade do direito não autoriza a presunção de ausência de vontade em exercê-lo.

Mas, suponhamos que a contratada não entregue a nova convenção ou acordo coletivo à Administração após a data-base. Como deverá, então, a Administração, proceder? Nesta hipótese, o gestor do contrato, responsável pelo acompanhando dos prazos pertinentes, deve, a rigor, estar ciente de que a repactuação já é devida. Não havendo manifestação pela contratada quanto à repactuação, com a respectiva entrega dos documentos, chegado o momento da prorrogação, caberá ao referido agente, conforme diretriz predefinida no plano de fiscalização do contrato, indagar ao contratado se há interesse na repactuação ou se, eventualmente, os valores podem ser negociados para, de comum acordo, conceder uma vantagem econômica à Administração “em troca” da renovação do ajuste. Nessas condições, poderá haver expressa renúncia ao direito por parte do contratado, como também um reforço de que o interesse na repactuação ainda persiste e será exercido em momento oportuno.

É preciso deixar claro que a demora na entrega da documentação para os fins da repactuação pode decorrer de diversas razões e que não é possível, em nenhuma medida, afirmar que tal conduta por parte do contratado autoriza a negativa à repactuação, por ausência de desequilíbrio. O requisito da impossibilidade ou extrema dificuldade de manter o contrato nas condições ajustadas inicialmente relaciona-se a outra espécie de reequilíbrio contratual, qual seja, a revisão, fundada no art. 65, II, “c” da Lei 8.666/93, e, não, ao reajuste e à repactuação.

Não procedem, também, críticas no sentido de que não cabe, à Administração, “pagear” o contratado, lembrando-o de que o direito existe. Não se trata disso, mas de respeitar a boa-fé contratual e preservar a higidez de um contrato que está sendo vantajoso para a Administração. Com efeito, a decisão de prorrogar a vigência é tomada, a rigor, com base na eficiência, na eficácia e na economicidade do contrato em vigor, ou seja, na boa atuação do contratado, que vem cumprindo corretamente com suas obrigações e satisfazendo o interesse público. A atuação sugerida, colocando a repactuação sob controle e responsabilidade do gestor do contrato, reflete o dever da Administração de zelar pela boa execução do ajuste, o que inclui evitar atos que possam, sem fundamento no descumprimento do contrato, mudar esse estado de coisas. Da mesma forma, cabe à Administração cumprir corretamente com suas obrigações e seus deveres contratuais, entre eles a concessão da repactuação, quando devida.

Isto posto, em meu entender, não há respaldo jurídico para obrigar o contratado a solicitar a repactuação como condição para a sua concessão, sendo dever da Administração atuar com vistas a preservar os resultados do contrato que está sendo executado a contento, acompanhando o prazo, a entrega da documentação e, se necessário, buscando melhores condições mediante a renúncia expressa do direito à recomposição dos valores.

A adoção dessa linha de raciocínio teria como consequência imediata a destituição de qualquer propósito para analisar o cabimento da preclusão no contexto da repactuação, objeto deste breve estudo. Contudo, como se sabe, é diverso o entendimento consolidado na jurisprudência do TCU, que, aliás, vislumbrou na preclusão lógica um mecanismo para a sua efetividade. Para a Corte de Contas federal, uma vez celebrado o termo aditivo prorrogando a vigência, sem que o contratado reclame para si a repactuação já devida, perderá, ele, o direito de solicitá-la, somente podendo fazê-lo após o decurso de novo prazo de 12 meses, com base na próxima convenção ou acordo coletivo. Mas, a aplicação supletiva do instituto da preclusão nesse caso não se mostra, a meu sentir, acertada.


  1. O descabimento da aplicação do instituto da preclusão

A preclusão diz respeito ao não exercício de atos processuais dentro do prazo legalmente prescrito. Seu objetivo é a proteção do processo, sua impulsão, sua celeridade em prol do exercício da boa jurisdição. Segundo Luiz Guilherme Marinoni:

... a preclusão consiste... na perda de ‘direitos processuais’, que pode decorrer de várias causas. Assim como acontece com o direito material, também no processo a relação jurídica estabelecida entre os sujeitos processuais pode levar à extinção de direitos processuais, o que acontece, diga-se, tão freqüentemente quanto em relações jurídicas de direito material. A preclusão é o resultado dessa extinção, e é precisamente o elemento (aliado à ordem legal dos atos, estabelecida na lei) responsável pelo avanço da tramitação processual.1

Nessa esteira, estariam sujeitos à preclusão no processo administrativo de contratação pública, por exemplo, a manifestação da intenção de recorrer, a apresentação das razões de recurso, a apresentação de defesa em processo visando a apuração de infração e aplicação de sanções. São atos processuais que expressam a vontade do licitante ou contratado de exercer seu direito, de modo que, não sendo praticados, a autoridade competente presumirá ser inexistente a vontade de fazê-lo. Tanto os atos, como os respectivos prazos estão claramente definidos na legislação que rege as contratações públicas – Lei 8.666, Lei 10.520 e decretos regulamentadores –, até porque relacionam-se ao devido processo legal, uma garantia fundamental constitucionalmente assegurada. A preclusão não extingue o direito em si, mas impossibilita a ação que representa o seu exercício, o que acaba, por via reflexa, afetando o próprio direito.

A solicitação da repactuação não guarda qualquer semelhança com tais atos. Não é um ato processual e, portanto, não se sujeita à preclusão. A manifestação do contratado confunde-se com o próprio exercício do direito material, qual seja, a manutenção das condições efetivas da proposta, que integra o cerne das contratações públicas brasileiras e, de acordo com a Constituição da República, deve ser assegurado, em qualquer caso, pela lei que regula a matéria (art. 37, XXI da CF/88). Assim, é equivocado suscitar um instituto processual para extinguir direito material, o que se agrava, no caso da repactuação, por gozar, aludido direito, de proteção constitucional inquestionável.

Ademais, a premissa da preclusão lógica nesse caso, qual seja, “a faculdade de solicitar a repactuação se extingue pela incompatibilidade da vontade de repactuar com o ato de prorrogar o contrato e ratificar os termos da contratação”, não é verdadeira. A renovação do contrato e das condições nele contidas, por meio do termo aditivo, de forma alguma pode significar extinção do direito à repactuação. Com efeito, a repactuação tem a finalidade de recompor o equilíbrio econômico-financeiro inicial, perdido ao longo do decurso do prazo de 12 meses. Então, ao contrário, renovar o ajuste mesmo sem qualquer manifestação explícita pela repactuação significa concordância em mantê-lo nas mesmas condições econômico-financeiras em que foi firmado, ou seja, mediante a devida repactuação. É claro, portanto, que a premissa correta não é a perda do direito, mas a sua manutenção. Assim, o que deve orientar a interpretação do silêncio do contratado quanto à repactuação não é uma regra do Direito Privado, aplicada supletivamente, mas preceito de Direito Público da garantia da equação econômico-financeira inicial, pilar do regime jurídico das contratações públicas brasileiras.


3.1 A impossibilidade de cogitar de decadência do direito

Mas, afastada a incidência da preclusão, poderíamos cogitar da decadência do direito e aceitar que o contrato administrativo pode estabelecer o respectivo prazo, considerando a modalidade da decadência convencional?2 Em meu entender, não.

Segundo Maria Helena Diniz, "a decadência é a extinção do direito pelo seu titular, que deixa escoar o prazo legal ou voluntariamente fixado pelo seu exercício.”3 A decadência ocorre em virtude da submissão da eficácia de um direito a um prazo determinado, que escoa in albis. Então, se o titular do direito deixa de exercê-lo quando lhe é permitido fazê-lo, opera-se sua extinção, obstando sua posterior invocação. A decadência tem por objeto o direito que nasceu da lei ou do contrato, condicionado ao seu exercício dentro de um lapso temporal preestabelecido.

Para que pudéssemos afirmar pela aplicação do instituto da decadência ao direito à repactuação contratual, seria necessário um prazo legal subordinando o seu exercício.4 A decadência na sua forma convencional, ou seja, aquela ajustada pelas partes no contrato, não pode, no melhor entendimento, ser aplicada ao contrato administrativo. Com efeito, não há como invocar, como é feito nos ajustes privados, a vontade das partes para validar e legitimar cláusula contratual que estipule prazo decadencial para o exercício do direito à repactuação. Isso se dá porque, nos contratos públicos, a vontade do contratado é mitigada e cláusula que tenha o potencial para trazer-lhe prejuízo econômico-financeiro deve ser considerada abusiva, já que a potestade pública não atinge as condições econômico-financeiras do contrato.

De fato, não é crível que empresários visando o lucro optem, deliberada e simplesmente, sem nenhuma contrapartida, por sujeitar o seu direito à manutenção das condições efetivas da proposta a um prazo específico, a não ser que estejam a isso premidos pela potestade pública. Não há como presumir que, por ter assinado o contrato, o particular livremente concorda com a fixação de um prazo limitador de um direito seu, já amplamente assegurado pela Constituição Federal. Não há fundamento jurídico para que o contrato administrativo, cujo conteúdo não resulta de um verdadeiro “acordo de vontades”, ou mesmo uma norma administrativa inferior, imponha como consequência da inércia do contratado a perda de um direito constitucionalmente assegurado.


4. Conclusão

A conclusão de tudo isso, de um ponto de vista sistêmico, é que, cada vez mais observamos a Administração Pública subjugando indevidamente seus bons contratados, com o propósito de preservar seus próprios erros e deficiências, especialmente no âmbito da governança, gestão de recursos e gestão de contratos.

O real motivo da preclusão lógica, ao que parece, é evitar os impactos que a concessão da repactuação cumulativa traz ao orçamento, situação que somente pode ser cogitada em um ambiente em que não há adequado planejamento e acompanhamento contratual, em que não se reservam os valores correspondentes aos reajustes ou repactuações anuais para o devido pagamento no momento em que for solicitado pelo contratado. Alguns dirão que o argumento válido em favor da preclusão é, exatamente, a segurança jurídica que possibilita o planejamento. Contudo, a manutenção das condições efetivas da proposta é um dever da Administração, que deve, como regra, estar preparada para isso. Valer-se de institutos que privilegiam a segurança jurídica para esquivar-se ao cumprimento de um dever é, no mínimo, uma teratologia jurídica.

Assim, a aplicação do instituto da preclusão, ou de qualquer outro que, sem o necessário respaldo em norma formal e materialmente competente, retire do contratado o direito à manutenção das condições efetivas da proposta, configura vantagem indevida à Administração e não encontra amparo no ordenamento jurídico pátrio.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DINIZ Maria Helena. Manual de Direito Civil, Ed. Saraiva, 2017.

MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.


1MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 665.

2 Não se cogita da prescrição, pois um de seus requisitos é a violação do direito, a qual dá início à pretensão do particular cujo exercício se sujeita ao decurso do tempo. Claramente, não é esse o caso.

3 DINIZ Maria Helena. Manual de Direito Civil, Ed. Saraiva, 2017, pag. 79.

4 A propósito, esses foram os argumentos não acatados da CONJUR-MT, em parecer proferido no processo que deu origem ao Acórdão 1828/09-TCU/Plenário: "para que a demora em se efetuar o requerimento administrativo pudesse ter o condão de extinguir parcialmente os efeitos financeiros do direito à repactuação, haveria necessidade de lei prevendo expressamente essa situação".