NOVO REGIME DE DISPENSA DE LICITAÇÃO POR VALOR NA LEI 14.133/2021: consequências criminais e nas ações de improbidade administrativa

 

 

 

Rodrigo Valgas dos Santos (SC)

Advogado da Espíndola & Valgas Associados. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Doutor em Direito pela UFSC. Professor de Graduação e Pós-Graduação do CESUSC. 2º Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo – IBDA.

 

 

1. Introdução

 

Há muito nos preocupávamos com a ausência de atualização dos limites de dispensa de licitação em face do valor nos termos do art. 24, I e II c/c 23, I, “a” e II “a” da Lei 8.666/93.[1] Defendíamos que o legislador ordinário não poderia frustrar o disposto no art. 37, XXI da CF que reconhece não ser oportuno nem conveniente ao interesse público a realização da licitação pública em certas hipóteses, de modo que os antigos limites por valor de R$ 8.000,00 e R$ 15.000,00 eram insuficientes para fins de dispensa de licitação, inviabilizando o próprio instituto.

 

Mas esse não é o principal problema. O fato é que muitos gestores são processados criminalmente ou mesmo por via de ação de improbidade por descumprimento do referido limite. Esse aspecto é especialmente cruel, porque os agentes públicos são severamente punidos por limite fixado em 1998, sendo que o art. 120 da Lei 8.666/93 incentivava a revisão anual dos valores[2].

 

O tema ganhou nova feição com a edição do Dec. 9.412/2018 que elevou os valores das modalidades de licitação, ao ampliar os limites para dispensa (R$ 17.600,00 para serviços e compras e R$ 33.000,00 para obras e serviços de engenharia). Naquela oportunidade já se impunha a extinção da punibilidade em processos crime ou de improbidade que discutissem dispensa em valores abaixo dos novos parâmetros.

 

Todavia, o art. 75 da Lei 14.133/2021 promoveu alteração mais expressiva, ampliando significativamente os limites de dispensa (R$ 100.000,00 para obras e serviços de engenharia e R$ 50.000,00 para serviços e compras), o que afeta inúmeros processos na esfera penal ou de improbidade que tramitam no Brasil, até porque a nova norma tem incidência imediata nesse aspecto. Haverá efeito extintivo da punibilidade pois incidirá a norma mais benéfica, ocorrendo o fenômeno da novatio legis in mellius.

 

Mas as alterações foram mais profundas. Houve expressa revogação pelo art. 193 da Lei 14.133/2021 do art. 89 da Lei 8.666/93. A atual redação do art. 377-E do Código Penal procedeu parcial abolitio criminis, retirando do tipo penal a possibilidade de ser punir por se “deixar de observar formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, então prevista no caput do tipo do art. 89 da 8.666/93.

 

Essas mudanças operadas pela Lei 14.133/2021 terão grande impacto nos processos penais por descumprimento do referido limite, bem como no âmbito do direito administrativo sancionador. Há milhares de processos penais e de improbidade em todo País que discutem o descumprimento dos limites de dispensa de licitação por valor e essas alterações normativas têm consequências diretas nesses processos.

 

Tais aspectos serão examinados no presente texto, buscando compreender essas alterações legais no regime sancionador dos agentes públicos no Brasil no crime de contratação direta fora das hipóteses legais ou mesmo nas ações de improbidade administrativa.

 

2. Retroatividade da lei 14.133/2021 em face do aumento dos limites de dispensa no âmbito da administração pública pela nova lei de licitações e contratos (art. 75 da lei 14.133/2021, lex mitior). Novatio legis in mellius.

 

 

A nova lei de licitações e contratos administrativos entrou em vigor, mas irá conviver com normas anteriores (Lei 8.666/1993, Lei 10.520/2002, e Lei 12.462/2011). Salvo futuro adiamento, essas leis serão revogadas após dois anos de publicação da Lei 14.133/2021 (art. 193 da lei 14.133/2021). Enquanto isso, poderão ser aplicadas as leis anteriores em concomitância com a atual, facultada a Administração optar por realizar licitações de acordo com a nova lei ou com as antigas. Tal regime de transição possibilitará salutar período de experiência, onde se poderá fixar no edital a opção normativa escolhida (art. 191 da Lei 14.133/2021).

 

Porém, além da vigência imediata, certos dispositivos sequer estão sujeitos a regime de transição. É o que ocorre com a determinação do art. 193 da Lei 14.133/2021 que revogou os artigos 89 a 108 da Lei 8.666/1993, onde estavam previstos os crimes de licitação. Esses tipos agora são acrescidos ao Código Penal (art. 337-E ao art. 337-P) e sua incidência é plena e imediata.

 

Além de exigir consciência da irregularidade perante o Direito Administrativo[3], o crime de contratação direta fora das hipóteses legais no caso de menor valor, curiosamente é um “crime matemático”, ou seja, saber se há ou não crime depende de cálculos aritméticos da soma das dispensas realizadas num mesmo exercício financeiro em cotejo com os limites legais complementares da norma penal em branco. Uma vez ampliados e observados os limites dos valores de dispensa não haverá possibilidade de crime.

 

Importante salientar que a análise que estamos a fazer tem por fundamento a tutela das liberdades e dos direitos fundamentais. Portanto, mesmo que a doutrina e os órgãos de controle possam ter opinião diversa sobre a qual a amplitude da convivência dos diplomas normativos e regimes jurídicos distintos nesse período de transição, ou mesmo que o gestor público continue a aplicar os limites de dispensa por valor nos patamares anteriores, o fato é que para fins penais a incidência dos novos valores é imediata, posto que aqui se está a considerar o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal (moralidade, integridade e competitividade nos processos licitatórios e contratações públicas), cuja violação apenas pode ocorrer em valores mais elevados que os anteriores, com nova valoração jurídica dos fatos, de modo que os limites mais benéficos têm incidência imediata para fins sancionatórios (art. 2º do Código Penal).

 

Mesmo que possível a convivência simultânea de duas normas complementares à norma penal em branco do art. 337-E (art. 24 I e II da Lei 8.666/1993 e art. 75 da Lei 14.1333/2021), posto que ainda não houve a revogação do art. 24 I e II da Lei 8.666/1993, o fato é que uma das normas simultaneamente em vigor é mais favorável (art. 75 da Lei 14.133/2021) para fins penais, incidindo assim o art. 2º do Código Penal. Trata-se de norma penal em branco homogênea, ou seja, complementada por norma de fonte legislativa de mesma hierarquia.

 

Mesmo que a Lei 14.133/2021 tenha permitido a convivência – em separado – do atual regime jurídico com o previsto nas leis anteriores, é certo que na transição normativa inaugurada pela nova lei de licitações e contratos nem sempre será possível fazer tal cisão, especialmente em temas como governança; normas processuais de aplicação imediata na nova lei (ex: efeito suspensivo nos recursos) ou mesmo das garantias processuais e direitos subjetivos das partes.

 

Ademais, a aplicação da norma penal não poderia depender dos humores e conveniências do administrador público em prosseguir na sistemática da lei 8.666/1993 – e dos seus limites anteriores – ou de optar pelo regime da nova lei. Ou seja, não é facultado ao gestor de qualquer ente federativo definir se alguém poderá ser punido por fato típico, antijurídico e culpável por adotar regime de dispensa por valor da sua preferência.

 

A esse aspecto, soma-se o fato que a realização de dispensa nos novos patamares de valor já pode ser realizada pelo gestor público desde 01.04.2021, é dizer: ainda que possa optar em continuar a realizar contratação direta nos valores anteriores por alguma conveniência, já pode realizá-la nos novos valores fixados no art. 75 da 14.133/2021, razão pela qual já devem incidir os novos parâmetros para fins penais.

 

A atual conformação legislativa afetou as elementares do tipo penal de contratação direta fora das hipóteses legais. Para além da revogação do artigo 89, da Lei 8.666/1993, houve significativo aumento dos limites para dispensa de licitação em todo Brasil positivada pelo art. 75, I e II da Lei 14.133/2021:

Art. 75. É dispensável a licitação:

I – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores;

II – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras;

 

A alteração promovida pelo art. 75 da Lei 14.133/2021 atua como complementar da norma penal em branco do atual art. 337-E do CP, pois o art. 75 da atual Lei de Licitações afeta a estrutura do tipo penal e na aplicação da sua fattispecie. E por tratar-se de lei que promove alteração para favorecer ao agente (lex mitior), deve incidir inclusive sobre fatos anteriores, com consequente aplicação do princípio da retroatividade da lei penal menos gravosa.

Excepcionalmente, embora não seja a regra para fins de dispensa por valor na imensa maioria dos casos, mas tendo sido incluída pela Lei 14.133/2021 como dispensa por objeto, poderá inclusive o valor ser ampliado para R$ 300.000,00, para pesquisa e desenvolvimento, nos casos de obra e serviços de engenharia:

 

Art. 75. É dispensável a licitação:

(...)

IV - para contratação que tenha por objeto:

 

(...)

c) produtos para pesquisa e desenvolvimento, limitada a contratação, no caso de obras e serviços de engenharia, ao valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais);

 

A garantia de aplicação da lei penal mais benigna deve incidir[4] mesmo que os fatos objetos da persecução criminal sejam anteriores ou mesmo que transitado em julgado da sentença condenatória, devendo aplicar-se retroativamente, como se infere do art. 2º e parágrafo único do Código Penal:

Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado (grifo nosso).

 

O princípio da retroatividade da lei penal menos gravosa é norma constitucional, garantia/direito fundamental, que irradia sua força normativa por toda a ordem jurídica penal, conforme o artigo 5º, XL, da CF[5]. Esse princípio também foi conformado/internalizado em nosso ordenamento jurídico pelo art. 9º Pacto de San José da Costa Rica[6]:

 

A retroatividade da lex mitior é uma das pedras angulares do direito constitucional-penal, cuja correta aplicação é bem sintetizada por Fernando Capez:

 

Novatio legis in mellius: é a lei posterior (novatio legis) que, de qualquer modo, traz um benefício para o agente no caso concreto (in mellius). A lex mitior (lei melhor) é a mais benéfica, seja anterior ou posterior ao fato. Quando posterior, recebe o nome indicado neste item, significando nova lei em benefício do agente. Tanto na hipótese da abolitio criminis quanto na da alteração in mellius, a norma penal retroage e aplica-se imediatamente aos processos em julgamento, aos crimes cuja perseguição ainda não se iniciou e, também, aos casos já encerrados por decisão transitada em julgado. Qualquer direito adquirido do estado com a satisfação do jus puniendi é atingido pela nova lei, por força do imperativo constitucional da retroatividade da lex mitior. [7] (sublinhamos e negritamos!)

 

E prossegue Fernando Capez:

 

Dúvida quanto à lei mais benéfica: sempre que houver restrição do jus puniendi e, consequentemente, ampliação dos direitos de liberdade do indivíduo, a lei há de ser tida como mais favorável. Toda regra, portanto, que aumente o campo da licitude penal e amplie o espectro de atuação do agente, não só excluindo figuras criminosas, como também refletindo-se sobre a culpabilidade e a antijuridicidade, é considerada lex mitior. Do mesmo modo, qualquer regra que diminua ou torne a pena mais branda ou a comute em outra de menor severidade também será mais benéfica.[8]

 

Em artigo doutrinário sobre o tema, Wilson Knoner Campos enfrentou a questão quando da edição do Decreto Federal 9.412/2018, pois naquela ocasião houve alteração dos limites de dispensa de licitação para R$ 17.600,00 para compras e serviços e R$ 33.000,00 para obras e serviços de engenharia. Vejamos:

 

Com a edição do Decreto 9.412/2018 (DOU de 19/6/2018 [...]), que majorou os valores das modalidades de licitação do artigo 23, I e II, da Lei 8.666/93, a discussão sobre o tipo penal do artigo 89 da mencionada lei ganhará um novo componente: o tema da (in)existência de abolitio criminis e da lex mitior ou novatio legis in mellius (artigo 5º, XL, da CF/88, artigo 2º, parágrafo único do CP; e artigo 9ª, in fine, do Pacto de São José da Costa Rica) como efeito do novel diploma legal.”

(...)

A partir do mencionado decreto, com a elevação dos valores das modalidades de licitação do artigo 23, I, e II, da Lei 8.666/93, automaticamente restou majorado o teto regente das hipóteses de dispensa de licitação nos casos dos incisos I e II do artigo 24 do mesmo diploma legal, que passou a ser de R$ 33 mil para obras e serviços de engenharia, e de R$ 17.600,00 para casos de outros serviços e compras.

(...)

Retroatividade da norma penal mais benéfica torna imperativo o reconhecimento de que o Decreto 9.412/2018 constitui novatio legis in mellius, tratando-se, pois, de um típico caso em que o complemento integra-se à norma penal de tal forma que passa a consistir na essência da proibição, e, por tal razão, a alteração que promoveu no artigo 24, I e II, da Lei 8.666/93 acarretou em efetiva mudança da lei penal, de modo a extinguir a punibilidade, por efeito do artigo 5º, XL, da CF/88, artigo 2º, parágrafo único do CP, e artigo 9ª, in fine, do Pacto de São José da Costa Rica.[9]

 

Todos esses argumentos são, com maior razão, aplicáveis à alteração feita diretamente por lei congressual que consagrou novos limites de dispensa de licitações no Brasil, aumentando consideravelmente os limites originais de R$ 15.000,00 e R$ 8.000,00 para R$ 100.000,00 e R$ 50.000,00, respectivamente, devendo esses novos limites legais serem imediatamente considerados.

 

Nem todas as alterações realizadas pelo art. 337-E do CP foram mais benignas, ocorrendo a novatio legis in pejus. A pena do crime do art. 89 da Lei 8.666/93 era de três a cinco anos. No atual art. 337-E do CP a pena é de quatro a oito anos; aumento exponencial que incidirá a partir da publicação da lei 14.133/2021. Mas esse recrudescimento não poderá afetar crimes praticados antes da entrada em vigor da norma, apenas os que ocorrerem posteriormente a sua publicação (art. 5º, XL da CF). Tal alteração terá como efeito não permitir a celebração de acordo de não persecução penal (Lei 13.964/19), pois o atual art. 28-A do Código de Processo Penal exige que a pena mínima seja inferior a quatro anos para celebração do acordo.

 

Tal entendimento já foi adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP, exatamente ao tratar da ampliação de limites realizada pelo Dec. 9.412/2018, na Apelação Criminal 1500103-08.2018.8.26.0646, conforme razões trazidas no voto do Relator Des. Gilberto Ferreira da Cruz:

 

LICITAÇÃO Crime tipificado no artigo 89, caput, da Lei nº 8.666/93 Atipicidade. Ausência de dolo específico. Decreto Presidencial nº 9.412/98. Norma penal em branco heterogênea. Edição em situação social de normalidade. Retroatividade que se impõe. Abolitio criminis. Absolvição mantida Apelo ministerial desprovido.

(...)

Ora, de acordo com o decreto o valor mínimo considerado na dispensa de licitação foi exasperado de R$ 8.000,00 (oito mil reais) vigentes à época dos fatos para R$ 17.600,00 (dezessete mil e seiscentos reais), ou seja, bem superior aos gastos com abastecimento do veículo da Câmara Municipal no período descrito na denúncia (R$ 9.151,14).

(...)

Referido dispositivo infralegal Decreto nº 9.412/18 objetivou dar concretude ao artigo 37 3 da Constituição Federal e foi produzido em condições sociais normais, isto é, para além de situações excepcionais ou emergenciais, na medida em que editado oito anos depois da crise econômica dos anos 1990 e cinco anos após a edição da Lei nº 8.666/93; demonstrada, nesse contexto, sua perenidade no Estado Democrático de Direito.

Por tais premissas e considerados os princípios da justiça, equidade, proporcionalidade e igualdade, deve retroagir nos termos dos artigos 5º, LV, da Constituição Federal; 2º, parágrafo único 4 , do Código Penal; e 9º, in fine 5 , do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992 (Pacto de San José da Costa Rica). (Apelação Criminal nº 1500103-08.2018.8.26.0646, 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, julg. em 07.01.2021).

 

Antes mesmo da edição do Dec. 9.412/2018 sustentávamos a necessidade de atualização desses limites, especialmente porque o ordenamento jurídico brasileiro determinava ou possibilitava tal atualização, como se pode inferir do art. 120[10] da Lei 8.666/93. É dizer, era de todo incongruente e contraditório punir o agente por inobservância dos limites legais originários, quando o mesmo ordenamento obrigava (e não apenas permitia) a atualização dos mesmos limites, especialmente para imposição de sanções. Trata-se, para o caso, da tese da tipicidade conglobante bem tratada por Eugênio Raúl Zaffaroni[11].

 

Acerca do ponto, assim enfrentamos a temática:

 

Doutro vértice, o tema ganha reforço se enfrentado sob a ótica do direito penal (matriz do direito sancionador também no âmbito administrativo), donde nos valemos como marco teórico das reflexões de Eugenio Raúl ZAFFARONI ao tratar da chamada: tipicidade conglobante, que considera a norma jurídica da qual se extrai o tipo não de modo isolado, mas em função de outras normas, o que pode excluir a lesividade ao bem jurídico tutelado.

 

O eminente penalista argentino assevera: “Assim como não é racional que o direito proíba a mesma conduta que ordena (cumprimento de dever jurídico), tampouco o será a proibição daquilo que o próprio direito fomenta.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alii., Direito penal brasileiro, segundo volume: teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2013, p. 214 e 244).

 

Utilizando-se deste raciocínio, dizemos nós: como se pode sancionar o agente público - quer por improbidade, quer penalmente - por alegada violação ao limite de dispensa de licitação, quando este mesmo valor deveria estar atualizado (no mínimo dentro da recuperação das perdas inflacionarias pelo IGP-M), especialmente quando a regra específica do art. 120 da Lei 8.666/93 fomenta sua atualização?

 

Como punir o administrador por pretensa violação à dispensa que apenas ocorre pela omissão do legislador em cumprir com seu dever? Como sancionar via ação de improbidade ou mesmo em ação penal por descumprimento de norma cujo bem jurídico não foi violado se considerados os valores atualizáveis? Afinal, a vontade do legislador é que o valor nominalmente fixado não fosse descumprido, leia-se: valor corrigível no tempo. Resta preservado o bem jurídico tutelado pela norma jurídica, que consiste na tutela da Administração Pública e seu núcleo de princípios, notadamente os previstos no art. 37, caput, da Constituição da República.[12]

 

As razões acima trazidas para reconhecer a retroatividade da norma penal mais benéfica, a abolitio criminis e da novatio legis in melius igualmente aplicam-se aos processos de improbidade administrativa que visem a imposição de sanções aos agentes públicos por descumprimento dos limites de dispensa agora ampliados.

O tema da natureza jurídica das sanções por improbidade é tema sem consenso no Brasil. Certas sanções por improbidade  se aproximam muito mais do direito penal que do direito civil, a exemplo da suspensão de direitos políticos e perda da função pública. Em verdade, a LIA instituiu um regime sancionador próprio que não se identifica com categorias tradicionais.

 

Entendemos que o Direito Administrativo sancionador autoriza a autonomia e incidência dessas sanções nos processos de improbidade, mas isso não exonera o Direito Administrativo sancionador de aplicar as garantias próprias dos princípios de direito penal, mormente o princípio da tipicidade penal que se estende para além de seus lindes e afeta todo o Direito Administrativo sancionador.[13] Além disso, não há como imaginar possam esses bens jurídicos serem tutelados no âmbito penal, mas paradoxalmente desguarnecidos na seara da improbidade. Portanto, os efeitos da ampliação dos limites e dispensa tem reflexos tanto nas ações penais como na improbidade administrativa.

 

Uma vez que a nova norma penal em branco (atual art. 337-E  do CP c/c art. 75, I e II da Lei 14.133/2021) estabelece novos limites para dispensa de licitação que devem incidir de imediato (novatio legis in melius), ante o princípio da  retroatividade da lei mais benigna (art. 5º , XL da CF c/c art. 2º, parágrafo único do Código Penal e art. 9º do Pacto de San José da Costa Rica), deve ser extinta a punibilidade para os casos em que os valores de dispensa estejam abaixo do atual teto normativo quer no âmbito penal ou nas ações e improbidade administrativa.

 

3. Expressa revogação da “inobservância de formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” prevista no art. 89 da lei 8.666/93. Ocorrência de parcial abolitio criminis por redução da abrangência do tipo penal do art. 337-E do Código Penal.

 

Para além da alteração dos limites de dispensa de licitação vista acima, igualmente houve parcial abolitio criminis. Com a atual redação do art. 337-E do CP, dada pelo art. 178 da Lei 14.133/2021, o crime de contratação direta deixou de tipificar a conduta de inobservância de formalidades pertinentes nas dispensas ou inexigibilidades de licitação. Cotejemos a redação dos dispositivos legais:

Lei 8.666/93

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: (Revogado pela Lei nº 14.133, de 2021) (grifo nosso)

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. (Revogado pela Lei nº 14.133, de 2021)

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público. (Revogado pela Lei nº 14.133, de 2021)

 

Lei 14.133/2021

Contratação direta ilegal

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Perceba-se que houve restrição do tipo penal na atual redação. Agora, o tipo está limitado a admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses legais, eliminando do texto legal “deixar de observar formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, como previsto no art. 89 da 8.666/93.

 

Portanto, a norma jurídica agora é mais restritiva (princípio da taxatividade), limitada exclusivamente a “admitir, possibilitar ou dar causa a contratação direta fora das hipóteses legais” (no caso de dispensa por valor observando apenas os limites do art. 75, I e II da Lei 14.133/2021), não mais constituindo crime deixar de “observar formalidades” para dispensa ou inexigibilidade, ocorrendo parcial abolitio criminis do tipo penal.

 

Claro que em razão do valor já era discutível a incidência da observância de formalidades no tipo penal do 89 para menor valor, porquanto o art. 26 da lei 8.666/1993 já excluía de maiores formalidades os incisos I e II do art. 24. Todavia, para demais hipóteses de contratação direta a inobservância das formalidades poderia levar ao cometimento de crime.

 

A atual redação do art. 337-E do CP expurgou definitivamente qualquer crime por alegada inobservâncias das formalidades legais para dispensa de licitação, descriminalizando essa conduta.

 

Mas também houve alterações no tocante a quem pode concorrer para prática desse crime. O crime do atual art. 337-E do CP apenas pode ser cometido pelo agente que exerça função pública, que tenha especial atribuição para agir nos processos de licitação pública. Trata-se de crime próprio praticado por intraneus (agente público).

 

Todavia, o crime do art. 337-E do CP admite concurso de agentes, nos termos do art. 29 do Código Penal. Portanto, na redação atual não apenas o beneficiário que celebrou contrato pode ser considerado partícipe, mas qualquer pessoa que concorra para prática da ilicitude.[14]

 

Na redação revogada do art. 89 o beneficiário externo ou o extraneus era limitado pelo parágrafo único, vejamos:

 

Art. 89 (...).

 

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

 

Não há mais esta previsão na atual redação do art. 337-E do Código Penal. Portanto, a incidir o princípio da taxatividade da norma penal, todos aqueles que de algum modo agem em concurso de pessoas no caput do art. 337-E poderão ser corréus (art. 29 do CP) mesmo que não tenham se beneficiado ou celebrado contrato com a Administração.

 

4. Conclusão

 

A edição da Lei 14.133/2021 ao revogar expressamente o art. 89 e introduzir o atual art. 337-E do Código Penal c/c art. 75, I e II da Lei 14.133/2021) estabeleceu novos limites para dispensa de licitação por valor que devem incidir de imediato (novatio legis in melius), ante o princípio da retroatividade da lei mais benigna (art. 5º , XL da CF c/c art. 2º, parágrafo único do Código Penal e art. 9º do Pacto de San José da Costa Rica).

 

Mesmo que o administrador público opte por aplicar os limites de dispensa por valor nos patamares da lei 8.666/1993 (regime de transição), para fins penais a incidência dos valores da Lei 14.133/2021 é imediata, ainda que admitida a vigência de duas normas complementares à norma penal em branco do art. 337-E (art. 24, I e II da Lei 8.666/1993 e art. 75 da lei 14.133/2021), posto que aqui se está a considerar bem jurídico tutelado pelo Direito Penal cuja violação apenas pode ocorrer em parâmetros maiores que os anteriores (R$ 50.000,00 e R$ 100.000,00), com nova valoração dos fatos pelo legislador, de modo que os limites mais benéficos têm plena incidência para fins penais e sancionatórios (art. 2º do Código Penal).

 

Todos os processos crime ou ações de improbidade administrativa que discutem descumprimento dos limites de R$ 8.000,00 ou R$ 15.000,00 (ou mesmo os limites ampliados pelo Dec. 9.412/2018 de R$ 17.600,00 para compras e serviços e R$ 33.000,00 para obras e serviços de engenharia) por exercício financeiro, mesmo que anteriores à entrada em vigor da Lei 14.133/2021, devem ter extinta a punibilidade.

 

O art. 337-E do Código Penal procedeu parcial abolitio criminis, pois não mais prevê na elementar objetiva do tipo: “deixar de observar formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade” (art. 89 da 8.666/1993). A norma jurídica agora é mais restritiva (princípio da taxatividade), limitada exclusivamente “admitir, possibilitar ou dar causa a contratação direta fora das hipóteses legais”.

 

Houve ampliação do concurso de pessoas para aqueles que tenham concorrido para consumação da ilegalidade prevista no caput do art. 337-E, não mais limitado os extraneus aos beneficiados que contratem com o Poder Público, ampliando o legislador o rol daqueles que concorram para a prática do crime.

 



[1] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/rodrigo-valgas-dos-santos/problemas-decorrentes-da-ausencia-de-atualizacao-dos-limites-de-dispensa-previstos-no-art-24-i-e-ii-da-lei-8666-93. Aceso em 16 de abr. de 2021.

 

[2] Art .120. Os valores fixados por esta Lei poderão ser anualmente revistos pelo Poder Executivo Federal, que os fará publicar no Diário Oficial da União, observando como limite superior a variação geral dos preços do mercado, no período.

[3] Conforme feliz dicção de Marçal JUSTEN FILHO sobre o revogado art. 89 da Lei 8.666/1993: “O crime não se perfaz pela pura e simples contratação com dispensa ou inexigibilidade de licitação. O ponto essencial é a dispensa ou inexigibilidade praticadas intencionalmente, visando frustrar a exigência de competição. Ora, isso significa que o crime somente se aperfeiçoa quando o agente tinha consciência clara e precisa da irregularidade perante o direito administrativo.” Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 1.169

[4] Casos supremos de aplicação do princípio da novatio legis in mellius (CP, art. 2º, parágrafo único): HC 111.246, rel. min. Dias Toffoli, j. 11.12.12, Primeira Turma; RHC 109.847, rel. min. Dias Toffoli, j. 22.11.11, Primeira Turma; HC 110.040, rel. min. Gilmar Mendes, j. 8.11.11, Segunda Turma.

 

[5] Art. 5º - XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

 

[6] Artigo 9º - Princípio da legalidade e da retroatividade

Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.

 

[7] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 18. ed., São Paulo: Saraiva, 2014, v. I, p. 73.

 

[8] Idem, p. 75.

 

[9] CAMPOS, Wilson Knoner. O crime do artigo 89 da Lei 8.666/93 e a abolitio criminis na contratação direta. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-14/wilson-knoner-crime-art-89-lei-866693-abolitio-criminis#:~:text=O%20crime%20do%20artigo%2089%20da%20Lei%208.666%2F93%20(dispensa,mero%20exaurimento%20do%20ato%2C%20sendo Acesso em 16 de abr. de 2021.

[10] “Art.  120. Os valores fixados por esta Lei poderão ser anualmente revistos pelo Poder Executivo Federal, que os fará publicar no Diário Oficial da União, observando como limite superior a variação geral dos preços do mercado, no período.” Embora a norma diga que referidos valores “poderão” ser anualmente revistos, o fato é que para fins sancionatórios, onde está em jogo a liberdade dos indivíduos, entendemos que a lógica deôntica a ser observada é de verdadeira obrigatoriedade da atualização dos valores para fins punitivos.

 

[11] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alii., Direito penal brasileiro, segundo volume: teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2013, p. 214 e 244.

[12] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/rodrigo-valgas-dos-santos/problemas-decorrentes-da-ausencia-de-atualizacao-dos-limites-de-dispensa-previstos-no-art-24-i-e-ii-da-lei-8666-93. Aceso em 16 de abr. de 2021.

 

[13] Acerca do tem bem assevera Fábio Medina OSÓRIO: “Um ato ímprobo é, por definição, típico. Há ilícitos inclusive que antes de serem penais, são, sobretudo, administrativos. O processo de adequação típica não é fenômeno privativo do direito penal, e sim uma exigência que se estende para além dos domínios penais, perpassando todo o campo punitivo, inclusive o direito administrativo sancionador15, por força do devido processo legal e da legalidade que embasam o Estado Democrático de Direito. Daí a conexão da improbidade com conteúdos e matérias atinentes à própria atividade administrativa, aos aspectos técnicos da boa gestão e aos institutos de direito disciplinar e criminal.” Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, (Edição Especial): Administração Pública, Risco e Segurança Jurídica, 2014, p. 459.

 

[14] Na redação do revogado art. 89 da Lei 8.666/1993, tínhamos exceção à teoria monística da ação, pois havia prévio condicionamento a obtenção de benefício para celebração de contrato, como bem elucida Cezar Roberto BITENCOURT: “Dito de outra forma, ainda que alguém (extraneus) tenha concorrido para a consumação da ilegalidade, senão houver se beneficiado celebrando contrato com o Poder Público não responderá como partícipe desse crime.” Direito penal das licitações: São Paulo: Saraiva, 2012, p. 136.