Como implantar a prioridade de compras a fornecedores locais e regionais?

 

Andréa Heloisa da Silva Soares

@andrea.hsoares

Formada em Administração e em Direito pela UFMG. Especialista em Direito Público. Atuação há 18 anos com compras, contratos e logística, em funções diversas, desde pregoeira a superintendente. Realização de trabalhos em estruturação de área, processos, normatização, treinamento interno e adequação à LGPD (certificada como Gestora de Privacidade pela TIExames).

 

 

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A contratação pública tem por fim primordial a satisfação de uma necessidade pública: desde a construção de uma estrada ou compra de medicamentos à contratação de serviços terceirizados para o funcionamento da repartição ou compra de material de escritório. Além disso, a contratação também se presta à concretização de políticas públicas, conforme previsão constitucional.

Se política pública é “sistema de decisões públicas que visa manter ou modificar a realidade por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e de alocação dos recursos necessários para se atingir os objetivos estabelecidos”[i], foi necessário pensar na forma de sua implementação dentro do processo de contratação pública respeitando, também, os princípios norteadores como por exemplo a isonomia.

Com o advento da Lei Complementar nº 123[ii], em 2006, e, em especial, sua alteração em 2014 pela Lei Complementar nº 147, a previsão constitucional tomou forma mais concreta e efetiva. Mas alguns institutos, como a prioridade de compra para fornecedores sediados local ou regionalmente, precede de alguns atos para a correta implantação. É a respeito desses pontos que trataremos no artigo.

2 – CONTEXTO HISTÓRICO-LEGAL

A Constituição Federal de 1988[iii], no artigo 170, trata da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Um dos princípios elencados é que deve dar tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país. Esse princípio se concretizou com edição, em 2006, da Lei Complementar nº 123, que regulamentou uma série de tratamentos diferenciados em termos tributários, fiscais, facilidade para acesso a mercados, associativismo, estímulo ao crédito e inovação e simplificação das relações de trabalho, dentre outros.

Também tratou a Constituição, em artigo 179, do tratamento diferenciado pelos entes federados com objetivo de incentivo:

Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

Com a edição da Lei de Licitações nº 8666[iv], em 1993, não houve a previsão de tratamento diferenciado para pequenas empresas, mas apenas a preferência, em igualdade de condições, como critério de desempate, critérios relacionados à origem de bens e serviços:

 I -       (Revogado pela Lei nº 12.349, de 2010)

 II - produzidos no País;

III - produzidos ou prestados por empresas brasileiras.

IV - produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País.

V - produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.

Em 2006, entretanto, foi sancionada a Lei Complementar nº 123 de incentivo às microempresas e empresas de pequeno porte para acesso ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos de forma a ampliar a eficiência das políticas públicas.

3 – LEI COMPLEMENTAR Nº 123: ACESSO AO MERCADO

Os artigos 42 a 49 da Lei nº 123/2006 trazem uma série de dispositivos acerca do tratamento diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte. Alguns são obrigatórios, mas comportam exceções. Outros são facultativos, mas têm um poder grande e um papel importante, em especial para terceirização de serviços e prioridade para fornecedores locais.

A Lei nº 123 dispôs sobre uma série de itens obrigatórios nas licitações: prazo para regularização de documentação fiscal e trabalhista; nas licitações de ampla concorrência, empate ficto e, quando a natureza do objeto for divisível, cota exclusiva de até 25% para ME/EPP e licitação exclusiva para contratações de até R$ 80.000,00[v]. Além disso, para dispensas em função do valor, há preferência para aquisições de fornecedores ME/EPP.

Embora o conceito de empate ficto seja bastante difundido[vi], apenas para ilustrar, exemplificamos a condição. Uma licitante de grande porte vencendo o processo, para sagrar-se classificado precisaria aguardar o exercício do direito de preferência de todas as beneficiárias que se encontrem dentro da margem legal:

Por outro lado, há dois benefícios que a Lei prevê a concessão conforme a conveniência da Administração. Um deles é a obrigatoriedade de subcontratação por empresa de grande porte de até 25%; a intenção aqui é permitir a contratação mesmo quando a vencedora é de grande porte e assim fomentar esse mercado. O outro, que trataremos mais detalhadamente nos próximos itens, é a prioridade de contratação de fornecedores com sede local e regional, mesmo que seu valor final seja de até 10% do valor vencedor. Um exemplo prático:

 

Por fim, há quatro exceções para a obrigatoriedade do direito de preferência. Com exceção da dispensa por valor, as demais hipóteses de dispensa, assim como a inexigibilidade não exigem o benefício afinal são situações que a competição é inviável ou há permissão para a contratação direta. Também há situação em que o tratamento diferenciado pode não ser vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, devendo, nesse caso, constar a motivação no processo. Outra possibilidade é a inexistência de, no mínimo, três fornecedores ME/EPP sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório; sobre esse ponto trataremos no próximo tópico. E há situações em que os benefícios não são concedidos porque a própria Lei nº 123 vedou[vii], no seu artigo 3º, parágrafo 4º.

 

4 – LOCAL E REGIONAL: COMO CARACTERIZAR?

Para quem atuava com contratações públicas em 2006, o surgimento da Lei nº 123 gerou uma dúvida: como aplicar o artigo 49, inciso II, que dispõe sobre a exceção ao benefício quando não há no mínimo três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório?

Alguns justificavam esse número com base na pesquisa de preços, outros no histórico de compras, outros no número de fornecedores no registro cadastral do ente para aquela natureza de fornecimento. Porém, nenhuma dessas opções deixava o gestor confortável sobretudo em relação ao que é “fornecedor regional”. Em função disso, a prefeitura de Guaxupé enviou consulta ao Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, nº 887734[viii], em 2013, para fins de entendimento dessa exceção.

Segundo o TCE-MG, o alcance da expressão “regionalmente”, para fins do art. 49, inciso II, da Lei Complementar nº 123/06, deve ser delimitado, definido e justificado pela própria Administração, no âmbito de cada procedimento licitatório. O Administrador deverá demonstrar, motivadamente, que foram levados em consideração as particularidades do objeto licitado, bem como o princípio da razoabilidade e os objetivos do tratamento diferenciado dispensado às MEs e EPPs, previstos no art. 47[ix] da Lei Complementar nº 123/06. Essa posição foi seguida e citada posteriormente pela PGE-RS[x].

Com a publicação da Lei Complementar nº 147/2014[xi] que alterou a Lei nº 123 e incluiu o parágrafo 3º do artigo 48, a prefeitura de Mariana elaborou consulta ao TCE-MG, nº 932701[xii], para entendimento da prioridade recém acrescentada. Em resposta, o TCE esclareceu de forma bastante precisa, em 2016:

Salvo se de outro modo disposto nas normas locais, a Administração poderá pagar até 10% (dez por cento) a mais do melhor preço válido na licitação para contratar licitantes enquadradas como microempresas ou empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente (art. 48, § 3º, da Lei Complementar nº 123/06).

A aplicação desse benefício não decorre diretamente da lei, sendo necessário que, de forma expressa, constem, no ato convocatório, o percentual de preferência e as regras para a sua concessão, e, na fase interna, além desses elementos, também a justificativa.

No âmbito da administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo estadual, o sentido da expressão “regionalmente”, prevista no art. 48, § 3º, da Lei Complementar nº 123/06, deve ser aquele contido no art. 9º-A, § 1º, do Decreto Estadual nº 44.630/07.

Para os jurisdicionados municipais que não possuam norma específica, aplicam-se as disposições da Consulta nº 887734 quanto ao alcance da expressão “regionalmente”. (grifos nossos)

Desta forma, é necessário definir, por norma local ou no instrumento convocatório, o que o ente entende por local e por regional. Se o primeiro geralmente coincide com o município e não gera muitas dúvidas, o segundo vai variar conforme cada realidade. Pode-se usar alguma classificação de divisão territorial do estado, do IBGE ou mesmo incluir municípios de estados diferentes, sobretudo para aqueles localizados próximos às fronteiras estaduais.

Outro ponto importante desse posicionamento diz respeito ao valor que a beneficiada deve ofertar. A interpretação de que o beneficiado deveria cobrir o melhor lance não é razoável pois se assim fosse o legislador teria estipulado como o fez no caso do empate ficto quando foi afirmado que haveria preferência para cobrir o melhor lance. Já no caso do mercado local e regional, o legislador deu um passo a mais, não falou em preferência, mas em prioridade para contratar quem estivesse dentro da margem prevista do edital sendo essa disposição alinhada à política pública do desenvolvimento local e regional.

5 – COMO FAZER?

A partir dos apontamentos feitos, pode-se sugerir que o caminho mais seguro para o gestor. O primeiro passo é elaborar normativo que explicite sua interpretação do que é local e do que é regional, além de estipular o limite máximo de prioridade a ser concedida nos editais (sendo o máximo legal de 10%). Há decretos em diversos entes para regulamentar como por exemplo: Decreto Federal nº 8538/2015[xiii], Decreto Estadual nº 44630/2007[xiv] de MG, Decreto Municipal nº 9818/2019[xv] de Mariana. A vantagem de ocorrer normatização e não a definição a cada processo licitatório é a redução de questionamentos de mudança de critério em cada licitação com privilégios, restrições ou direcionamentos indevidos.

Havendo uma normatização, cabe ao gestor definir se haverá ou não no edital a concessão do benefício assim como o percentual (limitados ao máximo da normatização). Para maior transparência é interessante replicar no edital as definições de local e regional dispostos no normativo. Obviamente o edital vai refletir o resultado dos estudos preliminares que demostraram ser a prioridade de contratação para os fornecedores locais e regionais um benefício não para um fornecedor, mas para o município como um todo em função da movimentação da economia local, manutenção de empregos e arrecadação de tributos, dentre outros.

Por fim, é fundamental que o município utilize um portal de compras[xvi] capaz de parametrização de local e regional e identificação dos fornecedores com o benefício após o término da sessão de lances. Caso não haja a funcionalidade, todo o procedimento para conceder a prioridade acaba se dando por fora de sistema, em chat, mediante manifestação dos beneficiários o que não é apropriado tecnicamente.

6 - CONCLUSÃO

Um contrato com valor maior, mas com um fornecedor sediado local/regional pode ter um resultado final melhor que um de preço menor, porém sediado fora. Isso porque a riqueza dos municípios está, muitas vezes, no próprio ambiente. Movimentar a economia local gera empregos, arrecadação, desenvolve a região e também, via de regra, tempo de atendimento e manutenção menor além de mais atenção e melhor qualidade do atendimento. Por tudo isso, a prioridade na contratação dos fornecedores locais e regionais é importante e é um mecanismo à disposição dos entes que merece atenção, estudo e utilização.

 



[i] https://politicaspublicas.almg.gov.br/sobre/index.html#O_que_e_politica_publica

[ii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm

[iii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[iv] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm

[v] A referência é o valor de cada lote e não da licitação como um todo porque cada lote é considerado uma licitação isolada.

[vi] Condição em que a pequena empresa que tenha seu último lance em até 5% do primeiro colocado em pregões e 10% nas outras modalidades é considerada em empate e tem o direito de cobrir o lance vencedor.

[vii] § 4º Não poderá se beneficiar do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata o art. 12 desta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica:

I - de cujo capital participe outra pessoa jurídica;

II - que seja filial, sucursal, agência ou representação, no País, de pessoa jurídica com sede no exterior;

III - de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo;

IV - cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não beneficiada por esta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo;

V - cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo;

VI - constituída sob a forma de cooperativas, salvo as de consumo;

VII - que participe do capital de outra pessoa jurídica;

VIII - que exerça atividade de banco comercial, de investimentos e de desenvolvimento, de caixa econômica, de sociedade de crédito, financiamento e investimento ou de crédito imobiliário, de corretora ou de distribuidora de títulos, valores mobiliários e câmbio, de empresa de arrendamento mercantil, de seguros privados e de capitalização ou de previdência complementar;

IX - resultante ou remanescente de cisão ou qualquer outra forma de desmembramento de pessoa jurídica que tenha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-calendário anteriores;

X - constituída sob a forma de sociedade por ações.

XI - cujos titulares ou sócios guardem, cumulativamente, com o contratante do serviço, relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade.

§ 5º O disposto nos incisos IV e VII do § 4o deste artigo não se aplica à participação no capital de cooperativas de crédito, bem como em centrais de compras, bolsas de subcontratação, no consórcio referido no art. 50 desta Lei Complementar e na sociedade de propósito específico prevista no art. 56 desta Lei Complementar, e em associações assemelhadas, sociedades de interesse econômico, sociedades de garantia solidária e outros tipos de sociedade, que tenham como objetivo social a defesa exclusiva dos interesses econômicos das microempresas e empresas de pequeno porte.

[viii] https://www.tce.mg.gov.br/pesquisa_processo.asp?cod_processo=887734

[ix] Promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica

[x] http://www2.pge.rs.gov.br/pareceres/pa16481.pdf   

[xi] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp147.htm

[xii] https://www.tce.mg.gov.br/pesquisa_processo.asp?cod_processo=932701

[xiii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/d8538.htm

[xiv]https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?num=44630&ano=2007&tipo=DEC

[xv]http://www.pmmariana.com.br/uploads/prefeitura_mariana_2018/diario_oficial_pmm/o_monumento_n_1129_27-09-2019.pdf

[xvi] Considerando que essa forma é a preferencial, a forma eletrônica.