A Intervenção Federal no Rio de Janeiro e as compras públicas: o que a imprensa não conta
Renato Fenili
Diretor da Central de Compras da Câmara dos Deputados
Entre os dias 3 a 5 de dezembro, tive a satisfação de, por indicação do Gabinete da Intervenção Federal no Rio de Janeiro (GIF) e da Presidência da República, conduzir capacitação a agentes públicos de segurança daquele estado, no âmbito, logicamente, da própria intervenção.
Oportunidade de imergir em realidade complexa no âmbito das aquisições públicas nacionais. Afinal, nos últimos anos, nada menos do que quinze membros do primeiro escalão do governo foram presos, em decorrência de fraudes em licitações. E, para piorar, na quinta-feira anterior ao curso (que se iniciou em uma segunda-feira), o governador Pezão também foi preso. Um adendo: o curso foi ministrado na Escola do TCE/RJ que, em 2017, teve cinco de seus conselheiros afastados e cujo então presidente já foi condenado em meados deste ano. Sui generis.
Morei no Rio de Janeiro de 2000 a 2004. Retornei em 2006, por mais um ano. Testemunhei, nesta última década, o declínio social e econômico do estado, que se estende, também, ao nível municipal. Em passado muito recente, cidades como Mangaratiba, São Gonçalo, Silva Jardim, e São Sebastião do Alto (em um rol não exaustivo, infelizmente), tiveram seus prefeitos detidos por desvios em licitações. No último dia 10, o prefeito de Niterói foi preso, suspeito de receber propina de empresas de ônibus. São espelhos que se repetem em um script macabro, que tem em Sérgio Cabral o expoente maior. “O Estado do Rio de Janeiro, nas últimas décadas, perdeu a sua capacidade de caminhar por si só”, analisa uma das alunas.
Entro em sala. Presentes, cerca de 40 agentes públicos estaduais: bombeiros, policiais civis e militares, membros do próprio GIF e funcionários de secretarias (de administração penitenciária, de obras etc.). A cereja do bolo: parcela considerável do contingente era da Secretaria de Segurança (que congrega, hoje, as polícias civil e militar) e que, consoante o governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, será extinta em 1 de janeiro. Em outras palavras, esse contingente corre o risco de estar desempregado em semanas.
Minha missão era ensinar. Semear o mínimo de governança em aquisições públicas. O resultado: voltei tendo aprendido mais do que ensinei, certamente. E, confesso, posso hoje testemunhar o quão rasas têm sido as abordagens midiáticas sobre a intervenção. Faço, aqui, uma síntese apertada sobre os traços inerentes aos agentes públicos estaduais que labutam nas contratações públicas e ao próprio GIF.
1) Os agentes públicos estaduais no processo de compras públicas
Em franca inferência, o que se denota é uma gestão operacional e intermediária vitimada pela falta de governança estratégica.
O debate aqui se volta integralmente à gestão de pessoas. O contingente é de colaboradores que querem, a todo instante, fazer o melhor. Sem demagogia. Profissionais dedicados, éticos e capazes. Vivenciaram, contudo, o descaso temporal com relação à capacitação, a interferência política danosa, a rotatividade errática. Carecem de reconhecimento, e se sentem, grosso modo, desqualificados por serem a eles imputados a pecha da instrução de processos de forma morosa e desacertada. A moral foi abalada. E precisa ser, com urgência, resgatada.
As adversidades que se avultam a essas pessoas são gigantescas. Extrapolam as fronteiras estritas do direito administrativo e recaem no mundo real. Relacionam-se à compra de alimentação para presídios, sem um orçamento para tanto. Ao fornecimento de medicamentos a hospitais que carecem do básico, e que vivem de contratações emergenciais e de reconhecimentos de dívidas. À necessidade de se proverem equipamentos básicos de segurança a policiais que morrem nas ruas todos os dias. São problemas que deveriam ser faceados pela cúpula de gestão, mas, seja por dolo ou culpa, pesa nos ombros das instâncias administrativas inferiores.
Estabilidade, estrutura, melhores salários e uma concreta e robusta gestão por competências. Não é mais do mesmo. É a realidade do que os agentes públicos estaduais que se dedicam às compras precisam. E, ao próximo governo, teço um registro, na esperança de ser ouvido: não se desfaça do capital intelectual da equipe de compras da Secretaria de Estado de Segurança. Trata-se de ativo intangível de valor incomensurável, dotado de propensão a dar forma à espinha dorsal na relação de agência com o cidadão.
2) O Gabinete da Intervenção do Governo Federal
O GIF é a estrutura responsável, em nível estratégico, por dar suporte às ações do interventor federal. A intervenção, entenda, é de cunho administrativo. E, frisa-se facearam um desafio, no mínimo, hercúleo: como empenhar, em seis meses (e com a nossa legislação), R$ 1,2 bilhões em seis meses, atendendo as estritas demandas de segurança do estado do RJ?
Bom, no papel de Diretor da Central de Compras da Câmara dos Deputados, com uma experiência de (alguns) anos à frente da instrução de processos de compras, assevero: é uma missão praticamente impossível. Agora, somem-se os seguintes ingredientes: como vencer esse desafio com uma equipe de compras que não havia trabalhado junto, e que passaria a se debruçar a atender necessidades de um contexto até certo ponto desconhecido, com demandas dos mais variados tipos?
Surpreendentemente, ao que se desenha, parcela muito significativa desse montante será, de fato, empenhado até o final do ano. Há uma série de pregões agendados nos próximos dias.
A imprensa, contudo, vem criticando o fato de, até o dia 10 de dezembro, “apenas” R$ 470 milhões de reais terem sido empenhados. Esquecem, contudo, que isso representa mais do que dois anos de investimento estadual na área de segurança (2,4 anos, em arredondada precisão), em série histórica. Esquecem que uma licitação, no Brasil, dura meses – às vezes anos.
Se o mote anterior era gestão de pessoas, aqui não é diferente. Os militares que compõem o GIF foram voluntários. Vieram de diversas partes do País e estão alojados no RJ, sem suas famílias. O ideal, ao que se depreende, patente em visita do Gabinete, é deixar o melhor legado ao próximo governo – legado este que se estende em capacitações a agentes públicos, e à confecção de normas voltadas a assegurar a devida governança pública.
Dos dois lados – agentes públicos estaduais e GIF – veem-se pessoas que não se mantêm na neutralidade em uma conjuntura de forte crise moral. Moldam base de esperança a um Rio de Janeiro desacreditado. O caminho é longo. Mas possível.