As três linhas de defesa na Nova Lei de Licitações

 

Marcus Vinicius de Azevedo Braga


Doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ (GPP/PPED/IE/UFRJ). Auditor Federal de Finanças e Controle. Autor dos livros “Tudo Sobre Controle” e “Vale Quanto Pesa”.

 

1 – INTRODUÇÃO

Após um longo período convivendo com a famosa “Lei 8.666”, foi publicada a Nova Lei de Licitações (NLL), a Lei n ͦ 14.133, de 1 de abril de 2021. Dentre muitas inovações, no que se refere ao desenho da governança trazido mais especificamente no seu Art. 169, ela sujeita as contratações públicas a um paradigma de grande similitude em relação as três linhas (IIA, 2020), modelo internacional que é uma versão atualizada do posicionamento tradicional das três linhas de defesa (IIA, 2013), já um tanto consolidado na gestão pública brasileira. Uma abordagem que merece algumas considerações, passados mais de um ano de publicação da NLL.

2 – DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES

Apesar da NLL utilizar a nomenclatura antiga de linhas “de defesa”, já defasada com o advento do novo modelo em 2020, as nossas análises se darão comparando o modelo apresentado no texto da Lei em relação ao paradigma atual (IIA, 2020), dado que esse é o estado da arte dessa discussão. É uma comparação de um modelo de governança para organizações com um desenho para uma ação específica no âmbito dessas organizações: as ações relacionadas a licitações e contratos. Uma metonímia.

A inserção deste dispositivo na NLL sugere uma busca de se positivar um paradigma que se consagrou em normas infralegais, como por exemplo nos artigos 2-6 da Instrução Normativa Conjunta nº 01/CGU/MPOG (BRASIL, 2016), bem como na Seção II do anexo da Instrução Normativa nº 3/CGU (BRASIL, 2017), na busca de reforçar esses conceitos, em outra estatura normativa, replicada agora para toda a federação, como uma tentativa de se obter maior enforcement.

Uma importação que traz algumas diferenças conceituais em relação a esse modelo internacionalmente reconhecido, como se verá na tabela a seguir:

As análises indicam que a inserção do dispositivo legal se fez de forma  acanhada em relação ao espírito funcional das três linhas, preocupada a NLL em listar atores e não o que se espera destes, tudo isso com sentidos conflitos conceituais, como a alocação do controle externo junto com o interno na terceira linha de defesa, inserindo um órgão cuja característica principal é a alteridade em relação ao gestor dentro de uma estrutura de governança que, na sua matriz, está dentro da gestão, subordinada, inclusive, ao board da organização.

A NLL termina por criar, de forma incompleta e pouco detalhada, um modelo sui generis de governança para o segmento específico de licitações e contratos, inspirado em um modelo internacional reconhecido, mas sem peculiaridades que justifiquem um desenho customizado para as tarefas desse segmento, o que tem o potencial de gerar situações complexas, como o entendimento de que as linhas de defesa seriam escalas hierárquicas na organização em relação a accountability, quando na verdade é uma distribuição de competências que se coordenam nesse modelo.

 Na análise do artigo 169 em conjunto com os demais pontos da NLL que tratam do controle governamental, verifica-se um ânimo no sentido de pautar a organização e a atuação dos órgãos de controle, expandindo via  segmento de licitações e contratos, modelos para o conjunto de atores da federação, o que pode não ter o efeito desejado na implementação desses cânones de governança nas esferas subnacionais, em especial aquelas de estrutura mais acanhada, e sem um ajuste com todo um conjunto normativo de cada ente.

O parágrafo 3°do Art. 169 também tem o potencial de causar conflitos de entendimento, pois ele traz nos seus incisos I e II um rol de obrigações imputadas aos integrantes das três linhas, sendo que nesse desenho temos agentes executivos (primeira linha), consultivos (segunda linha) e avaliativos (terceira linha), e na forma como está redigido, não fica claro quem tem as referidas obrigações, que são bem específicas no texto da lei, tal como remessa ao ministério público de documentos cabíveis para a apuração de irregularidades. Mais um desafio para a regulamentação e para os casos concretos.

 

3 - CONCLUSÃO

A NLL surge em um momento histórico de grande destaque da função controle, da agenda anticorrupção, com a valorização de temas e organizações que atuam nesse sentido, o que faz com que esses assuntos entrem nas pautas legislativas, seja para agregar boas práticas, seja para coibir excessos, e nesse contexto é que precisa ser entendida essa grande e pouco usual presença do tema do controle e a sua organização nesse diploma legal.

Mas, é importante que essas mudanças dialoguem com aspectos consequencialistas, no que ficará na prática de se impor legalmente um modelo similar a um paradigma internacional para o segmento de licitações e contratos, em um cenário normativo com previsões já consolidadas na Carta Magna e em normas legais e infralegais, para que não se tenha um efeito de redução da governança pelos conflitos hermenêuticos, ou ainda, de se ter uma letra morta na recém nascida lei de licitações. 

4 - REFERÊNCIAS

BRASIL. Controladoria-Geral da União. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instrução Normativa Conjunta nº 1, de 10 de maio de 2016. Dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo federal. 2016.

BRASIL. Controladoria-Geral da União. Secretaria Federal de Controle Interno. Instrução Normativa nº 3, de 9 de Junho de 2017. Aprova o Referencial Técnico da Atividade de Auditoria Interna Governamental do Poder Executivo Federal. Brasília, 2017.

IIA BRASIL. Instituto de Auditores Internos do Brasil. Declaração de Posicionamento do IIA: as três linhas de defesa no gerenciamento eficaz de riscos e controles. IIA Brasil. São Paulo, 2013.

IIA BRASIL. Instituto de Auditores Internos do Brasil. Modelo das Três Linhas do IIA 2020. IIA Brasil. São Paulo, 2020.