RETROSPECTIVA 2018: O QUE É PRECISO COMPREENDER PARA SEGUIR EM FRENTE

 

 

Daniel de Andrade Oliveira Barral

Procurador Federal da AGU e Fundador e Colaborador do Portal L&C.

 

Rafael Sérgio de Oliveira

Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

Mestre em Direito e Especialista em Direito Público.

Pós-graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa.

Procurador Federal da AGU e Fundador e Colaborador do Portal L&C.

 

 

Considerações Iniciais

Com a passagem das festas e a virada de ano, inicia-se um período de avaliação no qual uma retrospectiva dos últimos 12 meses é indispensável para compreender as transformações que a atividade contratual do Estado sofreu nos últimos tempos. Trata-se de prática salutar no sentido em que nos permite avaliar o conjunto das realizações e traçar metas para o próximo ciclo que se avizinha. Ou seja, é preciso olhar para trás para seguir em frente!

Para aqueles que lidam com a temática envolvendo as contratações públicas o ano foi marcado por um ritmo intenso de inovações normativas e por novas interpretações da ordem jurídica vigente. Diversos órgãos atuantes na seara das licitações e contratos trouxeram normas e entendimentos que contêm em si mudanças de fundo no que diz respeito à compreensão do processo de contratação pública brasileiro. Destacamos abaixo alguns desses pontos.

 

1.    Em nível de leis

 É fato que a legislação brasileira sobre contratação pública, já há um tempo, merece mudanças. Podemos perceber essa necessidade em diversos movimentos praticados pelos órgãos do Estado brasileiro. Um deles foi a criação do Regime Diferenciado de Contratação Pública – RDC[1], que veio com uma finalidade específica de realizar a Copa do Mundo Fifa de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, mas que aos poucos foi sendo estendido a determinadas áreas consideradas prioritárias pelo governo[2]. Essa postura legislativa demonstra que o Estado tem sentido dificuldade de cumprir bem o seu papel com o Regime Geral de Contratação Pública hoje instalado em solo pátrio.

Essa percepção pode ser confirmada com a tramitação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei (PL) nº 1.292/1995, que tem como base o Projeto de Lei do Senado nº 559/2013, cujo objeto é instituir normas sobre licitação e contrato da Administração Pública. Mencionado PL contou com substitutivo do Deputado Federal João Arruda (MDB-PR) e foi aprovado no último 5 de dezembro[3] em comissão especialmente criada para a sua apreciação após o Governo do então Presidente Michel Temer incluir o tema entre 15 de suas prioridades de atuação no Congresso Nacional no ano de 2018.

Nesse cenário, o que se observa é que enquanto não se tem um novo regime de contratação pública no Brasil algumas posturas legais e infralegais têm alterado substancialmente a atividade contratual do Estado, seja porque mexem diretamente no sistema de contratação pública, seja porque alteram o regime aplicado à Administração Pública como um todo.

No plano das leis, destacamos dois diplomas publicados em 2018: a Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, e a Lei nº 13.726, de 8 de outubro de 2018.

A primeira é a apelidada Lei da Segurança Jurídica em matéria de Direito Público. Ela alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-lei nº 4.657/1942) para incluir, dentre outras coisas, o consequencialismo na tarefa decisória das autoridades públicas. Com isso, o art. 20 da LINDB atualmente exige que a fundamentação de decisões em âmbito público considere as consequências práticas da decisão quando tenham por base valores jurídicos abstratos. A ideia é conferir maior segurança jurídica pela consideração legal expressa dos elementos exógenos ao sistema jurídico (aspectos ligados à economia, engenharia, sociologia, psicologia etc.), tornando controlável a decisão de fazimento ou de desfazimento de um ato ou contrato[4].

A Lei nº 13.655/2018 veio também para, em seu art. 28, delimitar as hipóteses de responsabilização dos agentes públicos por decisões tomadas com erro grosseiro e ou com dolo. A par de toda a discussão do que venha a ser erro grosseiro[5], enxergamos no art. 28 o mesmo intuito de conferir ao bom gestor a proteção necessária para a prática de atos benéficos ao interesse público, o que muitas vezes é – ou era – freado pelo receio de eventual punição decorrente dos riscos naturalmente resultantes de uma decisão.

O segundo diploma, a Lei nº 13.726/2018, tem o intuito de desburocratizar a atividade da Administração Pública pela racionalização de atos e procedimentos administrativos “mediante a supressão ou a simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude” (art. 1º). Nessa linha, a Lei em comento procura dispensar exigências como o reconhecimento de firma, autenticação de documentos, juntada de documento pessoal e outras.

Constatamos que ambas as leis influenciam a atividade dos agentes públicos que lidam com licitação e contrato. Não resta dúvida que a atividade contratual do Estado resvala diretamente na prestação dos serviços públicos aos cidadãos, dependendo a célere e qualificada entrega ao cidadão da eficiente atuação contratual do Estado. Assim, as leis sob análise trazem em si a ideia de simplificação e flexibilização (racionalizada), temas que estão na ordem do dia da contratação pública. A Lei nº 13.655/2018 busca conferir maior qualidade às decisões públicas, na medida em que exige um critério de controle mais racional e relacionado ao caso concreto e às peculiaridades estranhas ao sistema jurídico; já a Lei nº 13.726/2018, por sua vez, visa a eliminar atos desnecessários para a proteção do interesse público e para a segurança jurídica das relações de Direito Público.

 

2.    Em nível de decretos presidenciais

No patamar da regulamentação presidencial, diversos foram os decretos publicados em 2018 relacionados a licitação e contrato em nível federal. A análise desses atos regulamentares nos faz enxergar pontos de conexão com as ideias de flexibilização e simplificação mencionadas no tópico anterior, assim como aspectos ligados à racionalização do gasto público e às funções instrumentais (horizontais) da contratação pública.

Na linha de controle do gasto público, sempre um ponto relevante em matéria de contratação pública, foram publicados os Decretos nº 9.280, de 6 de fevereiro de 2018, e 9.287, de 15 de fevereiro de 2018. O primeiro determina a compra de passagens aéreas sempre na classe econômica[6] e o segundo restringe o uso de veículos oficiais[7].

No que toca à simplificação e flexibilização, verificamos o Decreto nº 9.412, de 18 de junho de 2018, que atualizou os valores limites para a utilização das modalidades de licitação convite e tomada de preços[8], alterando, por via de consequência, os limites da dispensa de licitação em razão do valor (art. 24, incisos I e II, da Lei nº 8.666/1993)[9]. Os referidos limites foram consideravelmente elevados, de modo que o gestor passa a ter maior flexibilidade de atuação, já que terá mais margem para aplicar a dispensa e as modalidades mais simples (convite e tomada de preços)[10].

Em relação à função instrumental da contratação pública, destacamos o Decreto nº 9.450, de 24 de julho de 2018, que instituiu a Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional – PNAT. O art. 5º do mencionado diploma obriga a Administração contratante a exigir nos contratos de serviços com montante anual superior a R$ 330.000,00 que o contratado empregue mão de obra formada por presos ou por pessoas egressas do sistema prisional. Trata-se de medida voltada para à ressocialização do preso, razão pela qual se encaixa em uma postura ligada à função instrumental dos contratos públicos[11].

Outro diploma relevante nesse contexto é o Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018, norma que regulamentou a execução indireta de serviços da Administração Pública federal. A rigor, o Decreto nº 9.507/2018 não trouxe nada que não já fosse praticado na contratação de serviços em nível federal. Se olharmos bem para o Decreto em análise, verificaremos que ele pouco inovou quando comparado com o que o antecedia, o Decreto nº 2.271/1997. Ainda assim, as inovações trazidas pelo Decreto nº 9.507/2018 já constavam na Instrução Normativa SEGES/MPDG nº 5/2017, que trata da contratação de serviços no âmbito da Administração Pública federal.

Por fim, fugindo do viés de flexibilização verificado em algumas das normas anteriormente mencionadas, há o Decreto nº 9.488, de 30 de agosto de 2018, que veio, sobretudo, para restringir a utilização de ata de registro de preço por órgãos não participantes, os aderentes (art. 22, do Decreto nº 7.892/2013)[12]. Entretanto, é preciso ressaltar que o Decreto nº 9.488/2018 trouxe ao art. 22 do Decreto nº 7.892/2013 um instituto que se coaduna com a ideia contida na retromencionada Lei nº 13.655/2018, a Lei da Segurança Jurídica. É o estudo de eficiência, viabilidade e economicidade do ato de adesão à ata de registro de preço (§ 1º-A do art. 22 do Decreto nº 7.892/2013), instrumento que vai ao encontro da necessidade de fundamentação consequencialista exigida pelo atual art. 20 da LINDB.

Como se observa, na linha do que ocorreu em âmbito legislativo, no plano regulamentar também há uma forte preocupação em conferir à contratação pública uma maior eficiência, o que se constata pela racionalização (e flexibilização) dos procedimentos e pela integração da atividade contratual às demais políticas pública (função instrumental).

 

3.    Em nível de Instruções Normativas

É no nível das Instruções Normativas que encontramos uma atividade legislativa mais profunda no que toca à contratação pública. Aos nossos olhos, seria possível dizer que a Secretária de Gestão – SEGES do então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão se esforçou para suprir o descompasso já asseverado entre as necessidades do Poder Público e às leis vigentes sobre licitação e contrato.

Várias são as normas editadas pelo Ministério do Planejamento com o intuito de incluir entre as temáticas da contratação pública aspectos ligados a governança, planejamento, gestão de risco, análise econômica das compras públicas e outros. Ou seja, a SEGES tem se esforçado em atualizar, na medida do possível, a legislação relativa a licitação e contrato. Registre-se que tal postura não foi adotada apenas em 2018, pois ainda em 2017 foi editada a Instrução Normativa SEGES/MPDG nº 5/2017, que regulamenta a contratação de serviços. Sem dúvida a IN nº 5/2017 foi a norma que mais buscou atualizar as normas de licitação e contrato, incluindo na contratação de serviço práticas forjadas ao longo dos últimos anos com o intuito de conferir maior eficiência à atividade do Estado[13].

Tal postura continuou no ano de 2018, merecendo destaque a Instrução Normativa nº 1/2018, que regulamenta o Sistema de Planejamento e Gerenciamento das Contratações[14]. Na linha da governança pública aplicada às contratações, a IN nº 1/2018 dispõe sobre o planejamento da contratação, o gerenciamento de riscos, os estudos preliminares e estabelece normas para a elaboração do Plano Anual de Contratações.

Essa preocupação com o planejamento e, de uma maneira mais ampla, com o gerenciamento das tarefas ligadas à contratação pública é mais uma conduta que muito contribui para a eficiência das licitações e contratos. Trata-se de uma preocupação que cada vez mais tem entrado na pauta dos agentes públicos brasileiros. A gestão focada no resultado é, sem dúvida, um elemento que veio para ficar.

 

4.    No âmbito do Tribunal de Contas da União

Também no âmbito do Tribunal de Contas da União tivemos decisões relevantes, que merecem estar nesta retrospectiva tanto pela necessidade de observância de suas disposições nos processos de contratações quanto pelos potenciais reflexos na forma de organização da gestão pública.

O primeiro ponto de destaque é o evidente movimento de ampliação das competências institucionais por parte do TCU. A mais recente decisão neste sentido foi a que determinou a submissão da OAB ao controle do tribunal (AC-2573/18-P - BRUNO DANTAS[15]).

 

Referida decisão é motivo de controvérsia no meio jurídico por aparentemente colidir com o entendimento do STF na ADIn 3.026. Segundo o Relator Bruno Dantas o precedente do STF não tratou do dever de prestar contas ao TCU, mas sim a respeito da exigência de concurso público para ingresso nos quadros da OAB. Confira trecho do voto do ministro relator:

Sob a vigência da CF/88, ainda não houve pronunciamento do STF sobre a submissão da OAB ao TCU. O Supremo nunca apreciou esta questão. O que restou deliberado, portanto, foi que o art. 79, § 1º, Lei 8.906/1994, não era inconstitucional, e que o seu caput não estabelecia a exigência de serviço público para ingresso nos quadros da OAB. Toda a fundamentação construída na citada ação foi dirigida ao pedido, logo os argumentos utilizados na ADI 3.026/DF não podem ser transportados para uma segunda causa absolutamente distinta.

Não se pode juntar argumentos esparsos para tentar ampliar a eficácia de um julgado ao arrepio da lei, pois isso significa usar palavras soltas sem saber os contextos em que foram usadas.

A despeito das eloquentes considerações do eminente Ministro é provável que esta questão seja alçada à apreciação do Supremo Tribunal Federal no ano de 2019, em razão do inconformismo manifestado pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, sustendo a aplicabilidade das razões de decidir do precedente do STF ao caso.

De igual modo, chama atenção a decisão tomada pelo plenário do TCU em agosto deste ano (AC-1758/18-P - AUGUSTO NARDES[16][17]) sustentado a competência do Tribunal para declarar a inconstitucionalidade incidental de leis no exercício de suas funções controladoras, albergada pela Súmula 347 do STF[18]. Ocorre que a decisão colide com outra, tomada seis meses antes, pelo STF, por intermédio de Medida Cautelar em Mandado de segurança 35.410, quando firmou o entendimento de que não se insere no rol de competências da Corte de Contas o exercício do controle difuso de constitucionalidade nos seus julgamentos, conforme se depreende da leitura dos trechos da referida decisão:

 

Na presente hipótese, são relevantes os fundamentos do mandado de segurança quanto à plausibilidade do direito. Dentro da perspectiva constitucional inaugurada em 1988, o Tribunal de Contas da União é órgão técnico de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, cuja competência é delimitada pelo artigo 71 do texto constitucional.

(...)

É inconcebível, portanto, a hipótese do Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer função jurisdicional, permanecer a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, sob o pretenso argumento de que lhe seja permitido em virtude do conteúdo da Súmula 347 do STF, editada em 1963, cuja subsistência, obviamente, ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988. Eis o teor do referido enunciado: O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. Com efeito, os fundamentos que afastam do Tribunal de Contas da União – TCU a prerrogativa do exercício do controle incidental de constitucionalidade são semelhantes, mutatis mutandis, ao mesmo impedimento, segundo afirmei, em relação ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ (DIREITO CONSTITUCIONAL. 33. Ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 563 e seguintes):

(...)

Na mesma linha de consideração, registram-se na CORTE, em casos análogos, posições favoráveis ao que sustenta o impetrante: MS 25.888 MC, Rel. Min. GILMAR MENDES, julgado em 22/3/2006; MS 29.123 MC, Rel. Min. GILMAR MENDES, julgado em 2/9/2010; MS 28.745 MC, Rel. Min. ELLEN GRACIE, julgado em 6/5/2010; MS 27.796 MC, Rel. Min. CARLOS BRITTO, julgado em 27/1/2009; MS 27.337, Rel Min. EROS GRAU, julgado em 21/5/2008; MS 26.783 MC-ED, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 5/12/2011; MS 27.743 MC, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 1º/12/2008. Diante do exposto, presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, DEFIRO O PEDIDO LIMINAR para suspender os efeitos do ato impugnado na TC 021.009/2017-1, unicamente, em relação aos substituídos pelo impetrante e, consequentemente, determinar que o Tribunal de Contas da União, nos casos concretos submetidos a sua apreciação, se abstenha afastar a incidência dos os §§ 2º e 3º dos artigos 7º e 17 da Medida Provisória 765/2016, convertida na Lei 13.464/2017. (MS 35410 MC, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 15/12/2017, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 31/01/2018 PUBLIC 01/02/2018)

Este é outro tema que deveria merecer atenção por parte do STF no ano de 2019, seja para rever o verbete sumular ou, em caso de reafirmar a competência do TCU nesta matéria, esclarecer os seus contornos e limites.

O ano de 2018 também foi marcado pela atenção do Tribunal para os reflexos nas contratações públicas das alterações legislativas. No AC-2131/18-P – R: AUGUSTO NARDES[19], o Tribunal alertou que a Administração exclua o pagamento das horas in itinere dos contratos administrativos em razão da alteração da CLT pela reforma trabalhista entronizada pela Lei n. 13.467, de 2017.

Outro acórdão digno de registro, este relatado pelo Exmo. Min. Augusto Nardes, é o AC 1855/18-P[20] foi o que determinou a publicação do inteiro teor de todos os contratos administrativos, anexo e aditivos, preferencialmente de modo aberto. Esta determinação está alinhada com as melhores práticas internacionais[21][22] e busca ampliar a oferta de informações a todos os envolvidos no processo de compras públicas.

Outra importante decisão foi aquela tomada no julgamento do AC-2569/18-P - AROLDO CEDRAZ[23] em que o TCU entendeu válida a utilização pela Administração Pública do Código de Defesa do Consumidor em seus contratos administrativos. É importante consignar que a aplicação do CDC aos contratos administrativos sempre foi tema tomado por profunda controvérsia no âmbito dos tribunais brasileiros, sendo aplicada a teoria finalista mitigada[24] para a Administração Pública, conforme demonstra o precedente citado abaixo, do STJ:

 

PROCON. MULTA. RELAÇÃO ADMINISTRATIVA.

Trata-se de RMS interposto por editora contratada por secretaria municipal para prestar serviço de publicidade. Sucede que a contratante, alegando vício no contrato, fez reclamação ao Procon, que, ao reconhecer o vício do contrato, multou a editora. Destacou a Min. Relatora que a hipótese trata da aplicabilidade do CDC nas relações administrativas, em que o cerne da controvérsia estaria em determinar se há relação de consumo entre a editora e a contratada. Ressalta que o contrato, embora eivado de nulidades (falta de competência da pessoa que assinou; envio por fax e não informação ao órgão público das condições do contrato), tem nítida feição de contrato administrativo, em que a Administração detém supremacia justificada pelo interesse público. Para a Min. Relatora, não houve relação de consumo e, na espécie, devem incidir as normas do direito administrativo pertinentes à exclusão daquelas relativas ao direito privado, especialmente quando se trata de aplicação de penalidades. Observa saber que a doutrina admite a incidência do CDC nos contratos administrativos, mas somente em casos excepcionais, em que a Administração assume posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, o que não ocorreu no caso, por consistir em simples contrato de prestação de publicidade. Dessa forma, aponta que o Procon não poderia multar a editora por lhe faltar competência para atuar em relação que não seja de consumo. Com essas considerações, a Turma deu provimento ao recurso para anular o ato administrativo que determinou a aplicação da multa e que a Administração abstenha-se de inscrever a impetrante na dívida ativa. RMS 31.073-TO, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 26/8/2010.

Ainda assim, esta recente decisão observa a jurisprudência anterior da corte de contas federal, conforme se constata pela leitura dos Acórdãos nº 696/2010, nº 892/2010, nº 1879/2011, nº 2179/2011 e nº 3343/2012 do Tribunal de Contas da União.

Outra consolidação da jurisprudência do TCU, que tinha sido iniciada por ocasião do julgamento do paradigmático AC 1214/2013-P, foi a legitimação da contratação de diversos serviços em um contrato único, conhecido como Facilities Full, concluindo a virada da jurisprudência do TCU a respeito da intepretação do instituto do parcelamento do objeto previsto no art. 23, § 1º da Lei Geral de Licitações.

O parcelamento do objeto deve ser adotado apenas na contratação de serviços de maior especialização técnica, uma vez que, como regra, ele não propicia ampliação de competitividade na contratação de serviços de menor especialização. 16/10/2018 AC-10049/18-2 ANDRÉ DE CARVALHO

 

É legítima a contratação conjunta de serviços terceirizados, sob gestão integrada da empresa contratada, no regime de empreitada por preço global e com enfoque no controle qualitativo ou de resultado, devendo a Administração, na fase de planejamento da contratação, estabelecer a composição dos custos unitários de mão de obra, material, insumos e equipamentos, bem como realizar preciso levantamento de quantitativos, em conformidade com o art. 7º, § 2º, inciso II, c/c o art. 40, § 2º, inciso II, da Lei 8.666/1993, o art. 9º, § 2º, do Decreto 5.450/2005 e a Instrução Normativa Seges/MPDG 5/2017. 24/10/2018 AC-2443/18-P WALTON ALENCAR RODRIGUES

 

Em licitações de serviços diversos em contrato único Facilities Full, a permissão de formação de consórcios e a possibilidade de subcontratação de serviços são meios que podem amenizar a restrição a concorrência decorrente da junção de inúmeros serviços em único objeto. 23/10/2018 AC-10264/18-2  ANA ARRAES

 

Considerações Finais

A análise dos elementos acima indicados nos leva a concluir que há um movimento na contratação pública voltado para uma buscar por maior eficiência. A preocupação em oferecer aos gestores mais flexibilidade e segurança jurídica, o que tem sido feito por meio de uma dose maior de confiança, vem como um instrumento para alcançar melhores resultados.

Ao contrário do que se possa pensar, esse movimento não vem sendo informado por um viés de subjetividade, o que dificultaria o controle das decisões públicas. Na verdade, a ideia de fundo é conferir flexibilidade para uma atuação mais qualificada no que diz respeitos a aspectos estranhos ao sistema jurídico, mas bem próximos do mister da gestão pública. Por isso que muitas das normas e decisões aqui comentados se preocupam com pontos da governança pública. Esses pontos são fundamentados em técnicas muito bem desenvolvidas e passíveis de controle em todas as searas (administrativa, de controle e judicial).

Há de se observar, todavia, que essa nova postura importa numa maior qualificação e, mais do que isso, profissionalização dos gestores atuantes em licitação e contrato. Ressaltamos que tal qualificação deve ir além dos aspectos jurídicos, alcançando também temas relacionados a outras ciências (econômicas, administrativas etc.). Isto é, pelo que se nota, o sistema jurídico tem imposto à Administração Pública, sobretudo nos temas relacionados à contratação pública, que considere em sua atividade a multidisciplinariedade que lhe é merecida.



[1] Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.

[2] Obras e serviços de engenharia relacionados com o SUS, com unidades de atendimento socioeducativo e com a melhoria da mobilidade urbana, ações ligadas à segurança pública, à ciência, à tecnologia e à inovação.

[3] Vide: http://www.licitacaoecontrato.com.br/noticia/comissao-nova-lei-licitacao-contrato-aprova-pl-marco-legal-contratacao-publica06122018.html

[4] Sobre o tema: FREITAS, Rafael Véras de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A nova LINDB e o consequencialismo jurídico como mínimo essencial. Acesso em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/opiniao-lindb-quadrantes-consequencialismo-juridico.

[5] Sobre essa questão remetemos o leitor para os seguintes textos: NIEBUHR, Joel de Menezes. Erro Grosseiro – Análise crítica do Acórdão nº 2.391/2018 do TCU. Acesso em: https://www.zenite.blog.br/o-erro-grosseiro-analise-critica-do-acordao-no-2-3912018-do-tcu/.

[6] http://www.licitacaoecontrato.com.br/noticia/decreto-determina-compra-de-passagens-sempre-na-classe-economica08022018.html

[7] http://www.licitacaoecontrato.com.br/noticia/decreto-restringe-o-uso-de-carro-por-servidores-federais16022018.html

[8] Compreendemos que os mencionados valores dos incisos I e II do art. 23 da Lei nº 8.666/1993 são limites para a aplicação das modalidades convite e tomada de preços porque a concorrência pode ser utilizada em qualquer hipótese (art. 23, § 4º, da Lei nº 8.666/1993).

[9] http://www.licitacaoecontrato.com.br/noticia/governo-publica-decreto-limites-modalidades-licitatorias20062018.html

[10] Ainda sobre casos de dispensa, tivemos o Decreto nº 9.637/2018, que regulamentou os casos de dispensa em razão de segurança nacional. Vide: http://www.licitacaoecontrato.com.br/noticia/dispensa-licitacao-casos-seguranca-nacional28122018.html.

[11] Sobre o tema: BARRAL, Daniel. Ainda sobre a cota de Presos. Quando aprenderemos? Acesso em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/lecComenta/sobre-a-cota-de-presos-quando-aprenderemos24092018.html.

[12] Sobre os limites, sugerimos a seguinte leitura: OLIVEIRA, Rafael Sérgio de. Novas regras sobre registro de preço em âmbito federal. Acesso em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/lecComenta/novas-regras-registro-preco-ambito-federal03092018.html

[13] Importante ressaltar que antes da IN nº 5/2017 o Ministério do Planejamento já havia editado a Instrução Normativa nº 6/2013, norma que trazia em si diversos pontos sugeridos pelo Acórdão nº 1.214/2013, decisão do Plenário do Tribunal de Contas da União cujo foco foi a modernização da terceirização de serviços.

[14] Acerca da interligação entre a IN nº 5/2017 e a IN nº 1/2018: GUSMÃO, Diego Ornellas de. IN 01 x IN 05: o diálogo das fontes no regime de planejamento das contratações públicas federais. Acesso em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo/in01xin05-dialogo-fontes-regime-planejamento-contratacoes-publicas-federais20062018.html.

[15] A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por força do art. 71, inciso II, da Constituição Federal, submete-se à jurisdição do TCU, uma vez que a sua natureza de autarquia e o regime público e compulsório dos tributos que arrecada impõem que, como qualquer outro conselho profissional, a OAB deva estar sujeita aos controles públicos. 07/11/2018 AC-2573/18-P BRUNO DANTAS

[16] Compete ao TCU a apreciação da constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em caráter incidental e a cada caso concreto que lhe é submetido (Súmula STF 347), com efeitos apenas entre as partes, haja vista que a declaração de inconstitucionalidade em abstrato, com efeito erga omnes, compete somente ao STF.     01/08/2018 - AC-1758/18-P - AUGUSTO NARDES

[17] Também por ocasião do AC-2737/18-P relatado pelo Exmo. Min. VITAL DO RÊGO o TCU entendeu pela “ineficácia” de leis e medidas provisórias que tratem de desvinculação de receitas, por se tratarem de matéria reservada a lei complementar, em evidente análise “em bloco” da constitucionalidade destas legislações. Confira: As leis e as medidas provisórias que dispuseram de forma geral sobre a desvinculação de recursos dos fundos especiais e daqueles legalmente vinculados à finalidade específica, de que tratam o art. 73 da Lei 4.320/1964 e o art. 8º, parágrafo único, da LC 101/2000 (LRF) , careceram de eficácia, pois invadiram matéria constitucionalmente restrita às leis complementares. 28/11/2018 - AC-2737/18-P - VITAL DO RÊGO

[18] Súmula 347 do STF: O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.

[19] A Administração, com fundamento no art. 65, inciso II, alínea d, e § 5º, da Lei 8.666/1993, deve promover a revisão de contrato que preveja o pagamento de horas in itinere (destinado a remunerar o tempo despendido pelo empregado de casa até o local de trabalho e o seu retorno), com a consequente glosa dos valores indevidamente pagos a esse título, uma vez que referida despesa não é mais cabível com a entrada em vigor da Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), a qual alterou o art. 58, § 2º, da CLT. 12/09/2018 - AC-2131/18-P - AUGUSTO NARDES.

[20] Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal devem promover a publicação do inteiro teor de todos os seus contratos administrativos, inclusive anexos e aditivos, em seus sítios oficiais na Internet, em atendimento ao art. 8º, § 1º, inciso IV, da Lei 12.527/2011 (LAI) , preferencialmente em formato aberto (art. 8º, § 3º, inciso III, da mesma lei) e que permita a pesquisa de texto. 15/08/2018 - AC-1855/18-P - AUGUSTO NARDES

[21] Neste sentido confira o Checklist for Supporting the Implementation of OECD Recommendation of the Council on Public Procurement: Transparency disponível em: http://www.oecd.org/governance/procurement/toolbox/search/Checklist%2001%20Transparency.pdf acesso em 28 de dezembro de 2018.

[22] Segundo apontou o Diagnóstico institucional: primeiros passos para um plano nacional anticorrupção. Michael Freitas Mohallem, Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo. –FGV-RIO, Tornar públicos dados desconexos e incompletos não é suficiente para que se tenha transparência efetiva. Segundo este estudo a transparência efetiva só se faz presente quando os dados disponibilizados são úteis e compreensíveis para os cidadãos (Fox, 2007; Hood & Heald, 2006; Meijer, 2013; Michener & Bersch, 2013).

[23] A Administração Pública pode invocar a Lei 8.078/1990 (CDC) , na condição de destinatária final de bens e serviços, quando suas prerrogativas estabelecidas na legislação de licitações e contratos forem insuficientes para garantir a proteção mínima dos interesses da sociedade, como nas aquisições de softwares produzidos por grandes fabricantes mundiais em que há imposição de contratos de adesão ou cláusulas abusivas à Administração. 07/11/2018 - AC-2569/18-P - AROLDO CEDRAZ

[24] o explicar os fundamentos da teoria finalista mitigada, a Min. Nancy Andrighi, ensinou que: “Em outras palavras, a teoria finalista vem sendo mitigada com fulcro no art. 4º, I, do CDC, fazendo a lei consumerista incidir sobre situações em que, apesar do produto ou serviço ser adquirido no curso do desenvolvimento de uma atividade empresarial, haja vulnerabilidade de uma parte frente à outra. Assim, o direito do consumidor pode ser considerado o direito do contratante hipossuficiente à tutela jurídica diferenciada, sendo irrelevante a distinção pessoa física/jurídica para fins de constatação da vulnerabilidade da parte e recebimento da proteção diferenciada”. (Resp. 1132642, rel. Min. Nancy Andrighi, rel. para o Acórdão Min. Massami Uyeda, j.05/08/2010, p.18/11/2010)

 

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