Improbidade de hermenêutica e Administração Pública inovadora: ser ou não ser, eis a questão.

 

 

Anderson Pedra

@andersonspedra

Advogado e Consultor (Anderson Pedra Advogados). Procurador do Estado do Espírito Santo. Pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra). Doutor em Direito do Estado (PUC-SP). Professor de Direito Constitucional e Administrativo da FDV/ES. Membro Fundador do Instituto Nacional da Contratação Pública (INCP).

 

1 - INTRODUÇÃO

 

Constantemente a Administração Pública e seus gestores são legitimamente cobrados por uma atuação mais eficiente, exigindo-se uma melhor gestão da res publica com a utilização de mecanismos e práticas inovadoras e disruptivas que objetivem atender de forma ótima as políticas públicas.

Costuma-se ainda nesse processo de cobrança comparar a atuação da gestão pública com a privada, mesmo sem a indispensável modulação já que o regime jurídico publicista possui suas amarras características. Focar no resultado e na meritocracia é quase um mantra para a aproximação dos modelos de gestão numa espécie de fuga para o modelo privado de gestão.

2 – LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E GESTÃO PÚBLICA

           

Atendendo a esses reclamos sociais o legislador nacional vem alterando[1],[2],[3] o ordenamento jurídico com a edição de enunciados normativos que possam proporcionar um melhor ambiente de gestão e, assim, aprimorar o ambiente de negócios para atrair melhores colaboradores (pessoas físicas ou jurídicas) e a celebração de negócios (contratos administrativos) mais vantajosos para a Administração Pública.

Para atender a tal desiderato e melhorar o ambiente da gestão pública e de seus negócios afastando a seleção adversa e diminuindo o custo transacional, indispensável, então, garantir segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.[4]

Nessa toada de proporcionar segurança jurídica para a aplicação do direito público, tanto para o agente público quanto para o particular[5] que celebra negócios com a Administração, o legislador promoveu profunda e necessária reforma na Lei de Improbidade Administrativa (LIA) (Lei nº 8.429/1992) por meio da Lei nº 14.230/2021, sendo o que interessa para o presente ensaio a inclusão do seguinte parágrafo no art. 1º da LIA: “§ 8º Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário.

Como se percebe, o legislador, ao incluir o § 8º ao art. 1º da LIA, pretendeu afastar uma eventual “improbidade presumida” nos casos em que a aplicação do direito público viesse a adotar interpretação jurisprudencial não pacificada.

Destaca-se que o novel texto da LIA sequer cogita da utilização de interpretação doutrinária minoritária ou isolada, ou de decisão judicial ou acórdão, mas de “jurisprudência”, ou seja, de um entendimento relativamente consolidado por alguma instância judicial, “mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente”.

Pois bem, apesar do cuidado do legislador ao mencionar a expressão “jurisprudência”, o STF, em decisão monocrática de 27 de dezembro último, na ADI nº 7.236 MC/DF, deferiu medida cautelar para suspender a eficácia de diversos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa, incluídos ou alterados pela Lei nº 14.230/2021, dentre eles o § 8º do art. 1º.

Para o decisum, “embora o propósito do legislador tenha sido proteger a boa-fé do gestor público [...] deve ser reconhecido que o critério estabelecido no art. 1º, § 8º da LIA, é excessivamente amplo e resulta em insegurança jurídica apta a esvaziar a efetividade da ação de improbidade administrativa [...] comprometendo, inclusive, a regularidade da atividade administrativa e efetividade da tutela da probidade.”

Como dito anteriormente, a alteração legislativa na LIA visa proporcionar segurança jurídica aos atos e contratos administrativos, aos agentes públicos e a aqueles que se relacionam com a Administração Pública: outros agentes públicos ou particulares (pessoas físicas ou jurídicas).

Infelizmente, com o deferimento da cautelar na ADI nº 7.236, verifica-se o risco de surgimento de uma nova “improbidade presumida”[6] – que deve ser contida; tendente a permitir uma “improbidade de hermenêutica”[7] – o que é inadmissível! Com essa provável insegurança jurídica em que por uma simples opção interpretativa poder-se-á lançar o agente público e o particular como requerido numa ação de improbidade administrativa em razão de um suposto equívoco técnico interpretativo quando o ato hipoteticamente ímprobo vier a ser fundamentado em posições controvertidas na ciência (jurídica ou não) ou na jurisprudência.

 

Não se pode perder de vista que com o suposto fundamento de tutelar a probidade administrativa e um eventual não retrocesso ao combate à corrupção, estar-se-á, na essência, incentivando uma seleção adversa e majorando o custo transacional; já que celebrar negócios com a Administração Pública trará uma insegurança jurídica ao contrato e ao contratado que poderá ter que responder conjuntamente por improbidade administrativa em razão, somente, de uma escolha interpretativa do gestor público. Frise-se que não se está aqui a tratar de eventual condenação, mas a “simples” demanda judicial, seu custo e dissabores, notadamente num ambiente de integridade em que particulares são excluídos de um processo de seleção[8] “apenas” por estarem “respondendo” a processo.

Não se pode olvidar que ao longo da história a LIA foi manuseada de modo disfuncional, servindo como lança de longo alcance; contundente para o ataque, mas sem qualquer precisão e atingindo agentes públicos e particulares que cometeram meras irregularidades ou realizaram escolhas administrativas e interpretativas equivocadas.

Soma-se ainda que o risco de escolher uma linha interpretativa vanguardista e eventual responsabilização por improbidade administrativa impedirá ainda mais uma Administração Pública inovadora, disruptiva, condenando-a sempre as mesmas práticas, aos mesmos entendimentos e colocando em risco o direito fundamental a boa administração pública.

Dia a dia observa-se cada vez mais um medo[9] na atuação dos agentes públicos e que ocasiona uma letargia administrativa. A decisão administrativa é protelada em razão da paralisia que acomete quem está numa situação de perigo por receio de ser responsabilizado; e eventual “improbidade de hermenêutica” somente agravará essa letargia administrativa.

 

 

Receia-se que a inovação administrativa encontre dificuldades com essa decisão do STF, pois soluções disruptivas possuem riscos que lhe são inerentes, inclusive de não darem certo, de não se tornarem opção prevalecente. Quem irá empreender com risco de ser considerado ímprobo?

Consolidando esse entendimento do STF tem-se o risco de os gestores públicos e mesmo os particulares em colaboração[10] com a Administração Pública desacelerarem em ideias, em comportamento empreendedor e em interpretações inovadoras com o receio de eventual responsabilização.

A LIA deve servir como um escudo protetor (segurança jurídica) para o bom agente público e o bom particular, ao mesmo tempo que deve dotar os órgãos de controle de meios adequados para atingir apenas os desonestos, os que agem intencionalmente e não os que praticaram meras irregularidades ou escolhas administrativas ou interpretativas equivocadas. Para isso já temos outras leis e suas consequências administrativas e políticas.

Como dito, a improbidade de hermenêutica e a insegurança jurídica inerente poderá ainda incentivar uma seleção adversa em razão de eventual desincentivo aos particulares mais preparados/experientes (bons fornecedores) que poderiam ter seus nomes e marcas já consolidados expostos numa ação de improbidade administrativa; risco esse menor para o fornecedor recém-chegado no mercado, ou àqueles pouco comprometidos (maus fornecedores).

Ser ou não ser inovador, eis a questão!

3 – CONCLUSÃO

 

 

 

A resposta é: sejamos inovadores, utilizando-se da devida motivação, clara e congruente, afinal, a motivação é indispensável mecanismo de verificação de integridade da decisão administrativa, fundamentando a escolha a partir de uma perspectiva científico-doutrinária ou jurisprudencial, sempre com a devida referência.

Ao agente público lhe foi atribuído o dever de ser inventivo, de buscar soluções alvissareiras, disruptivas, notadamente a fim de efetivar o direito fundamental à boa administração e o dever de eficiência.[11]

Por fim, a “improbidade de hermenêutica” não encontra morada no ordenamento jurídico brasileiro e é inadmissível sua utilização como mecanismo dificultador para a inovação na Administração Pública brasileira.

 

 

 



[1] “Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.” (Decreto-lei nº 4.657/1942 – LINDB com as alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018). Vale a pena conferir o seguinte texto vetado do mesmo dispositivo: “§ 1º Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.”

[2]Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. [...] § 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.” (Lei nº 13.869/2019 – Lei de Abuso de Autoridade).

[3]Art. 73. Na hipótese de contratação direta indevida ocorrida com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratado e o agente público responsável responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.” (Lei nº 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

[4] Nessa senda, tem-se a ementa da Lei nº 13.655/2018: “Inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.”

[5] Frisa-se que o particular, pessoa física ou jurídica, também se sujeita as sanções previstas na LIA (art. 2º, par. único da Lei nº 8.429/1992).

[6] Destaca-se nesse sentido o entendimento do STJ em face da redação original do art. 10, inc. VIII da LIA e o dano presumido (in re ipsa) na hipótese de contratação sem licitação (STJ, 1ª Turma, AREsp nº 391.086/SP; STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp n° 1.526.652/RN; dentre outros).

[7] PEDRA, Anderson Sant’Ana; SILVA, Rodrigo Monteiro da. Improbidade administrativa. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 99.

[8] Não é incomum empresas privadas não permitirem, em razão da sua política de compliance, colaboradores pessoas físicas ou jurídicas que estejam respondendo a processo, mesmo sem condenação.

[9] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

[10] Além da celebração do contrato com novos parâmetros de gestão: remuneração variável (art. 144) e alocação de risco (art. 103); com novos regimes de contratação (art. 46); como novo modelo de contratação Building Information Modeling (BIM) (art. 19, § 3º) para obras e serviços de engenharia e arquitetura; novo critério de julgamento por maior retorno econômico (art. 39); destaca-se ainda, dentre outros modelos de colaboração em que o particular ganha um certo protagonismos na inovação nas contratações públicas: o diálogo competitivo (art. 32) e o procedimento de manifestação de interesse (art. 81). Todos os dispositivos citados são da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

[11] PEDRA, Anderson Sant’Ana. Comentário ao art. 5º. In: FORTINI, Cristiana; OLIVIERA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Belo Horizonte: Fórum, 2022. v. 1. p. 146 e 80.