A Inteligência Artificial (IA) é um conjunto de tecnologias que permite a máquinas simular habilidades cognitivas humanas, como aprendizado, raciocínio e tomada de decisão. A IA já não é mais uma promessa distante da ficção científica. Surgida na década de 1950, com os primeiros estudos de Alan Turing e, posteriormente, com o desenvolvimento do primeiro programa de xadrez, a IA percorreu um longo caminho até chegar ao estágio atual. O avanço computacional, aliado ao crescimento exponencial de dados disponíveis, permitiu que ela se tornasse parte do cotidiano profissional de diversas áreas.
Hoje, a IA é uma realidade acessível, moldando processos decisórios, automatizando tarefas repetitivas e ampliando a capacidade analítica de profissionais e organizações. Contudo, seu uso ainda provoca sentimentos ambíguos: entusiasmo pelas possibilidades que oferece e apreensão quanto à sua real contribuição, ética e impacto no trabalho humano.
No setor público, especialmente nas compras governamentais, a adoção da IA tem ganhado força. As promessas são muitas: mais eficiência, menos erros e maior transparência. Mas até que ponto isso está de fato ocorrendo? E como garantir que a tecnologia seja uma aliada, e não uma substituta da análise?
Apesar da atmosfera global, críticos como o professor Aswath Damodaran alertam que a adoção acrítica da IA pode gerar custos maiores que benefícios, especialmente se as organizações subestimarem desafios técnicos, éticos e humanos. No contexto das compras públicas, onde a eficiência e a transparência são cruciais, a IA desperta tanta esperança quanto inquietação. Alguns profissionais veem na IA uma aliada para reduzir gargalos burocráticos, outros têm a perda de autonomia analítica e a padronização excessiva.
Este artigo busca justamente refletir sobre esses polos. A partir de uma visão técnica e de casos práticos, será feita uma análise das oportunidades, riscos e inquietações que o uso da IA nas compras públicas vem despertando, destacando a importância da interação humana e da qualificação crítica no uso dessas ferramentas.
O Poder da IA na Agilidade e precisão das Compras Públicas
A principal vantagem da IA reside em sua capacidade de processar grandes volumes de dados com velocidade e precisão, reduzindo custos operacionais e erros humanos. Em países como Singapura e Estados Unidos, as plataformas de IA já auxiliam na detecção de fraudes em licitações, análise de risco de fornecedores e automação de documentos.
No Brasil, instituições como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) têm iniciativas pioneiras na aplicação de inteligência artificial para aprimorar a fiscalização de processos licitatórios e contratos públicos. O TCU, por exemplo, desenvolveu o sistema ALICE (Análise Lógica de Informações para Controle Externo), uma plataforma baseada em IA que automatiza a análise de contratos e editais, identificando inconsistências, sobrepreços e possíveis irregularidades. ALICE utiliza técnicas de aprendizado de máquina para comparar preços praticados em licitações com valores de mercado, além de verificar a conformidade com normas legais e técnicas. Em 2022, o sistema foi fundamental na deteção de desvios em contratos de obras públicas, como a cobrança de valores superiores aos praticados no setor, contribuindo para economia de milhões de reais aos cofres públicos.
Já a CGU emprega sistemas de aprendizado de máquina em suas auditorias, com destaque para o uso da ferramenta MARA (Monitoramento Automatizado de Recursos da Administração), que cruza bases de dados para identificar padrões suspeitos em contratações pública e tem investido em soluções como o Painel de Monitoramento de Compras Públicas, que utiliza algoritmos para cruzar dados de licitações, fornecedores e histórico de contratações, identificando padrões suspeitos, como empresas que participam repetidamente de certos meses sem vencer ou gestores que concentram decisões em poucos fornecedores. A ferramenta também se integra ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS), permitindo alertas automáticos quando há tentativa de contratação de empresas com histórico de irregularidades. Um caso paradigmático foi a identificação de um esquema de fraudes em licitações para aquisição de equipamentos médicos durante a pandemia, onde a IA cruzou dados de CNPJs e localizações geográficas para mapear operações fictícias.
Um caso emblemático é o Reino Unido, onde o Serviço de Compras Governamentais implementou algoritmos para identificar padrões em milhões de contratos, otimizando negociações e reduzindo desperdícios. No setor de saúde, os sistemas de IA preveem demandas por medicamentos, permitindo compras mais assertivas. Essas aplicações não substituem servidores, mas ampliam sua capacidade de focar em decisões estratégicas.
A IA tem revolucionado a forma como tarefas operacionais e analíticas são realizadas. Nos processos de compras públicas, isso significa ganho de tempo em análises comparativas, elaboração de documentos, revisão de conformidade e até mesmo sugestão de fornecedores com base em dados históricos.
A IA consegue mapear riscos de forma preditiva, com base em bancos de dados internos e externos, e emitir alertas automáticos sobre possíveis inconsistências nos processos licitatórios. Além da eficiência, a IA pode democratizar o acesso às informações. Em regiões com recursos limitados, chatbots e assistentes virtuais podem criar roteiros de orientações para pequenos municípios sobre normas de licitação, jurisprudências.
Porém, é preciso cuidado. A velocidade e volume de informação tratados não garantem, por si só, decisões mais acertadas. A assertividade depende da qualidade dos dados, dos parâmetros configurados e, sobretudo, da análise humana posterior que valida, ajusta e interpreta os resultados sugeridos.
Nesse sentido, a IA deve ser vista como uma ferramenta de apoio, e não como um substituto do pensamento crítico e da expertise técnica. O papel dos profissionais responsáveis permanece central: cabe a eles filtrarem, interpretar e contextualizar as informações trazidas pela tecnologia.
IA nos Estudos Técnicos Preliminares, Projetos Básicos e Termos de Referência
Um dos usos mais promissores da IA nas compras públicas está na elaboração de esboços iniciais de Estudos Técnicos Preliminares (ETP), dos Projetos Básicos e dos Termos de Referência (TR). Esses documentos exigem detalhamento técnico, fundamentação legal e análise de viabilidade que, muitas vezes, consomem tempo e recursos das equipes envolvidas.
A IA pode auxiliar, por exemplo, na sugestão de modelos de TR com base em bases de dados de licitações anteriores, incluindo jurisprudência, catálogos técnicos e experiências anteriores do próprio órgão. Ferramentas como ChatGPT, Claude podem gerar uma estrutura base que acelera significativamente a produção desses documentos.
Em Portugal, o governo central tem testado o uso de IA para gerar minutas automatizadas de TR a partir de bancos de dados padronizados. O Tribunal de Contas da União (TCU) testou IA para revisar TRs em projetos de infraestrutura, identificando inconsistências técnicas. No Japão, algoritmos analisam especificações de materiais, oferecendo alternativas mais econômicas. Contudo, como alertam especialistas, a IA não entende o contexto político, social ou ambiental de um projeto. Um TR automatizado pode, por exemplo, omitir critérios de sustentabilidade ou cumprimento de desafios locais, exigindo revisão humana rigorosa.
Ainda assim, é fundamental destacar que esses documentos não podem ser robotizados integralmente. A análise crítica sobre a viabilidade técnica, os riscos envolvidos e a adequação do objeto ao interesse público permanecem uma responsabilidade humana. A IA oferece uma base, mas cabe ao gestor aprimorá-la.
Portanto, a robotização sem curadoria representa um risco: pode gerar documentos tecnicamente corretos, mas inadequados ao contexto específico. A atuação conjunta entre ferramenta e analista é o caminho mais seguro e eficaz.
Desafios e inquietações
Apesar do potencial, a adoção da IA enfrenta obstáculos significativos. O primeiro é a qualidade dos dados: se os algoritmos forem treinados com informações tendenciosas ou incompletas, os resultados serão igualmente problemáticos. No setor público, onde decisões definem alocações de milhões, isso pode amplificar desigualdades. Por exemplo, um sistema de IA mal calibrado pode favorecer empresas com histórico de contratação, prejudicando novos fornecedores.
Apesar das vantagens, há desafios reais na adoção da IA no setor público. O primeiro é cultural: muitos profissionais ainda veem a tecnologia como uma ameaça ao seu trabalho, e não como uma aliada. Outro entrave é a falta de qualificação técnica para uso das ferramentas de forma estratégica.
Além disso, o uso da IA levanta preocupações éticas e jurídicas, como a opacidade dos algoritmos ("caixa-preta"), o viés dos dados e a responsabilização por eventuais falhas nas decisões automatizadas. Como responsabilizar uma máquina por um erro num TR mal estruturado?
Cumpre alertar ainda, que, sob a ótica da boa governança, é de extrema importância que na elaboração dos documentos da fase preparatória da licitação – Estudo Técnico Preliminar e Termo de Referência/Projeto Básico – sejam observadas as diretrizes do planejamento estratégico e do Plano de Obras, Plano Diretor de TI, Plano de Logística Sustentável e Plano de Contratação Anual.
Desse modo, a IA deve estar preparada para essa elaboração dos documentos iniciais da contratação considerando o alcance e a transversalidade dos aspectos inerentes aos planos estratégicos e suas derivações. Com efeito, essa medida representa um grande desafio, visto que a IA não consegue avaliar de forma abrangente e crítica todas essas informações para estruturar os documentos em conformidade e atrelado a missão e estratégias da organização.
Não somente, mas também por esse motivo, sequer temos, nas organizações púbicas, os planos estratégicos estruturados, sistematizados e alinhados, conforme relatório da Controladoria Geral da União[1].
Em análise das contratações realizadas nos anos de 2022 e 2023 pelas Unidades Auditadas, foi constatado que, com exceção de algumas contratações de TIC, não há nos ETP demonstração de vinculação ao planejamento estratégico organizacional; indicação do item do PCA a que a contratação se refere, nem demonstração de vinculação aos objetivos, indicadores e metas do PLS.
Se há uma dificuldade dos próprios agentes públicos elaborarem os planos e alinharem as contratações as diretivas fixadas como prioritárias, como a IA vai conseguir estruturar os documentos da fase preparatória com uma abordagem mais holística? O que teremos são documentos sem conexão e desalinhados com o contexto da organização, enfraquecendo sua missão e seu propósito.
Por fim, há também o risco de dependência tecnológica excessiva de IA, onde os profissionais deixam de desenvolver suas capacidades analíticas e passam a aceitar passivamente as sugestões da IA, sem questionamento ou personalização. Um estudo da Universidade de Harvard mostrou que profissionais que utilizam IA de forma passiva tendem a perder a capacidade de resolução de problemas complexos. Por fim, há o desafio regulatório: como garantir que a IA respeite leis como o Marco Legal da Liberdade Econômica e o Novo Regime de Licitações?
Essas apreensões são legítimas e devem ser discutidas abertamente. O entusiasmo com a tecnologia não pode obscurecer a necessidade de um uso ético, responsável e equilibrado.
Caminhos a seguir e perspectivas futuras
O futuro da IA nas compras públicas passa, necessariamente, pela capacitação. É preciso formar profissionais capazes de interagir criticamente com as ferramentas, questionar os resultados gerados e adaptar as soluções ao contexto estratégico e específico do seu órgão ou setor.
Para maximizar os benefícios da IA, é essencial investir em treinamento. Países como Estônia e Coreia do Sul implementaram programas nacionais para treinar servidores em alfabetização digital, incluindo ética e governança de algoritmos. No Brasil, iniciativas como o Plano Estratégico de Tecnologia da Informação (PETI) podem integrar módulos específicos de IA aplicada à gestão pública.
Experiências internacionais mostram que a integração bem-sucedida da IA no setor público depende menos da tecnologia em si, e mais de processos de governança e formação. Na Holanda, servidores públicos passam por capacitações contínuas sobre ética em IA. Na Coreia do Sul, há diretrizes detalhadas sobre a responsabilidade humana em decisões assistidas por algoritmos.
No Brasil, é urgente promover uma cultura de uso consciente da tecnologia. Isso envolve desde a inclusão de temas de IA nos cursos de formação de gestores públicos, até a criação de diretrizes normativas sobre o uso dessas ferramentas em compras e contratações.
A IA é uma ferramenta poderosa, mas precisa de estrutura organizacional adequada e condutores preparados. Seu valor está justamente em ampliar a capacidade humana de tomar decisões melhores, mais rápidas e mais bem fundamentadas — e não em substituir o discernimento que só o ser humano pode ter.
Comentários Finais
O futuro das compras públicas passa por uma convivência harmônica entre tecnologia e análise crítica, onde a IA seja instrumento de transformação e não de alienação. O caminho é, portanto, de integração e não de substituição.
A robotização excessiva pode levar à homogeneização de documentos, ignorando particularidades regionais. É crucial que os técnicos mantenham um papel ativo, utilizando a IA como uma "base estruturada", mas não como fonte final de autoridade.
A IA não é um substituto para a inteligência humana, mas uma descoberta de sua evolução. Nas compras públicas, seu uso responsável pode reduzir desperdícios, aumentar a transparência e democratizar o acesso aos serviços. No entanto, sem uma abordagem crítica e investimentos em pessoas, o risco é ampliar os vínculos existentes ou criar desigualdades.
No futuro, a IA pode evoluir para sistemas híbridos, onde humanos e máquinas trabalham em sinergia. Imagine um sistema que não apenas sugere editais, mas simula cenários de risco em tempo real, ajudando os gestores a tomar decisões informadas. Para isso, porém, é preciso priorizar a ética, a inclusão e a preservação da expertise humana. A IA deve ser uma ferramenta para elevar nossa capacidade analítica, não para substituí-la. O futuro depende de como equilibrarmos inovação com prudência.
Referências Bibliográficas
DAMODARAN, Aswath. The AI Mirage: Why Artificial Intelligence May Be More Cost than Benefit for Most Companies. Blog Musings on Markets, 2024.
TURING, Alan. Computing Machinery and Intelligence. Mind, v. 59, n. 236, 1950.
SERVIÇO DE AQUISIÇÕES GOVERNAMENTAIS (Reino Unido). IA em Contratações Públicas: Estudos de Caso e Melhores Práticas . Londres: Cabinet Office, 2022. Disponível em: https://www.gov.uk . Acesso em: 02 mai. 2024.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Relatório sobre a Aplicação de Inteligência Artificial em Processos Licitatórios . Brasília: TCU, 2023. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br . Acesso em: 02 mai. 2024.
[1] Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2024/07/cgu-avalia-estruturas-e-processos-de-governanca-e-gestao-de-contratacoes-publicas. Acesso em 2/5/25.