A SEGURANÇA JURÍDICA E A QUALIDADE DAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS NO CONTEXTO DO MARCO LEGAL BRASILEIRO

 

Rafael Sérgio de Oliveira

Procurador Federal da AGU

Mestre em Direito

Doutorando em Ciências-Jurídico Políticas

Colaborador e Fundador do Portal L&C

 

 

Nos dias 3, 4 e 5 de dezembro de 2018 ocorreu em Brasília, na sede da Confederação Nacional dos Municípios – CNM, o I Fórum Nacional de Compras Públicas. O evento foi promovido pela Rede Nacional de Compras Pública – RNCP (compraspublicasbrasil.gov.br) e teve como foco discutir relevantes temas sobre licitação e contrato em todos os níveis da Federação e no tocante aos aspectos internacionais.

Tivemos a honra de participar do fórum como palestrante do Painel 5, relativo ao marco legal brasileiro de contratação pública e seus aspectos de segurança jurídica. Em linhas gerais, o foco do painel foi a aplicação das leis de compras governamentais nos processos de licitação e contrato e a responsabilização das instituições e dos agentes envolvidos em tais processos.

O tema indicado pela organização do evento foi bastante pertinente para o momento em que vivemos, quando se clama por segurança jurídica em matéria de Direito Público[1] e se fala em flexibilização e simplificação da contratação governamental[2]. Fala-se de um apagão das canetas dos gestores, o que seria provocado pelo excesso de interpretações das normas pelas instâncias de controle e jurídicas e pelas (supostas) constantes punições aplicadas pelos órgãos de controle aos agentes públicos, sobretudo.

Não é estranho ao debate da segurança jurídica a discussão acerca da flexibilidade e da rigidez. Principalmente nos países latinos, que seguem tradicionalmente o regime da civil law, a segurança é identificada com a rigidez. No terreno do Direito Público, além da crença de que a rigidez acarreta a previsibilidade, acredita-se também que o estreitamento da bitola do feixe de escolhas do agente público resulta numa maior moralidade. Esse é o pensamento que informa a Lei Geral de Licitação e Contrato Administrativo brasileira, a Lei nº 8.666/1993. Há no pano de fundo do referido diploma, como menciona André Rosilho, um fetichismo legal, baseado “na ideia de que as normas jurídicas seriam capazes de objetivamente fornecer todos os parâmetros adequados e necessários à boa contratação, minimizando, a todo custo, o papel dos agentes públicos nos processos de compras governamentais”[3].

Acontece, entretanto, que os anos de convivência com a marco legal de licitação e contrato brasileiro, geralmente interpretado com a lente da rigidez, têm mostrado que menos discricionariedade não acarreta, necessariamente, previsibilidade, eficiência e moralidade. A rigor, o que se ouve atualmente são vozes que reclamam por maior segurança jurídica – inclusive do ponto de vista institucional –, qualidade da atuação do Estado e probidade.

A discussão entre flexibilidade e rigidez relacionada à segurança jurídica lembra-nos do caso das pontes. Quem já ficou preso em um tráfego de veículos sobre uma ponte sabe que as pontes balançam. Segundo a engenharia, tal fenômeno ocorre porque há espaços entre os blocos que as formam, pois se assim não fosse as pontes cairiam devido às variações de temperatura que acarretam a dilatação dos seus blocos. Isto é, a engenharia percebeu que a segurança das construções, muitas vezes, necessita de flexibilidade para se adaptar as variáveis com as quais convivem.

Não temos dúvida que tal flexibilidade é mais necessária ainda no campo da gestão. Uma postura rija do legislador retira do gestor a capacidade de bem enfrentar as variáveis – e elas não são poucas – encontradas quando da atuação do Estado. Na seara da contratação pública, campo com grande interface entre o público e o privado, o número de variáveis é imenso, motivo pelo qual a rigidez legislativa dificulta a atuação eficiente da Administração.

No Brasil, a tenacidade presente na Lei Geral de Licitação e Contrato Administrativo, que impõe um regime geral aplicável também a situações com regulamentação específica, não tem dado conta dos problemas inerentes à dinâmica realidade enfrentada pela Administração. Alia-se a isso a atuação dos órgãos de controle e de advocacia pública, que sempre emitem ordens e pareceres a serem obedecidos pelos gestores.

Na verdade, a existência de um regime legal rígido demanda mais a atuação das instâncias de controle e jurídicas do que a atuação do gestor. Em nossa atuação, na qualidade de membro de uma das carreiras da Advocacia-Geral da União, verificamos rotineiramente a busca do gestor por uma solução para pseudoproblemas jurídicos. Não resta dúvida que os órgãos de advocacia de Estado, de controle e jurisdicionais devem dirimir conflitos no plano abstrato e no dos casos concretos. Entretanto, esses órgãos devem ser cautelosos nesse mister, pois há de se respeitar os limites dados pela norma para a interpretação e a discricionariedade do gestor.

Enxergamos, inclusive, essa ideia na Lei nº 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB. Esse diploma legal trouxe em si o consequencialismo para o fazimento e o desfazimento das tarefas públicas, impondo ao gestor, aos órgãos de controle e jurisdicionais o dever de fundamentar suas decisões com a exposição de elementos jurídicos e de fatores exógenos aos sistemas do Direito[4]. Notemos que a consideração de fatores estranhos ao mundo jurídico (aspectos ligados à economia, engenharia, sociologia, psicologia etc.) mantém a decisão controlável com o respeito às competências do gestor público.

O fato é que, no campo das licitações e dos contratos, as ciências administrativas e econômicas, a engenharia, a sociologia e a psicologia já desenvolveram técnicas que possibilitam a aferição da qualidade da atuação do gestor com base em critérios próprios dessas matérias e estranhos ao Direito. Ou seja, a contratação pública necessita ser vista com a multidisciplinariedade que lhe é peculiar. Já percebemos esse movimento no Brasil. As autoridades contratantes têm cada vez mais buscado conhecimentos em temas relativos à governança pública, inclusive por impulso dos órgãos de controle.

Ressaltamos que o oferecimento de maior discricionariedade ao gestor não implica liberdade pessoal. A maior discricionariedade deve sempre ser acompanhada de uma carga de compromisso público, a ser aferido pela diligente atuação do gestor e pela qualidade de suas entregas.

Mais uma vez mencionamos a Lei nº 13.655/2018, que incluiu o art. 28 na LINDB para admitir a responsabilização dos administradores públicos apenas nos casos de erro grosseiro[5] e de dolo. Percebemos que a legislação reconhece que o erro perdoável é natural da atividade pública, mas que a falha decorrente de uma atuação sem o compromisso público merece a devida punição. Assim, é preciso que se atente para a necessidade de qualificação[6] dos agentes contratantes para o alcance da segurança jurídica. Se o controle deve conferir liberdade ao administrador para atuar dentro de parâmetros técnicos, deve o Estado oferecer aos seus agentes o arcabouço científico pertinente, sob pena de a alteração legislativa não surtir o efeito desejado.

Enfim... não há dúvida que o conjunto legislativo contribui, mas quem mais pode fazer pela segurança jurídica são os aplicadores das leis. É essencial que a política de contratação pública tenha como foco a profissionalização e a qualificação das autoridades contratantes. Sem isso, serão apenas leis, o que no Brasil já há aos montes.



[1] Vejamos o debate ocorrido em 2018 para a promulgação da Lei nº 13.655/2018, norma apelidada de Lei de Segurança Jurídica, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

[2] CARANTA, Roberto; DRAGOS, Dacian Cosmin. La mini-rivoluzione del diritto europeo dei contratti pubblici. In: Urbanistica e Appalti. Nº 5/2014. Milano: Wolters Kluwer Italia, 2014, p. 497. ESTORNINHO, Maria João. Curso de Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2014, p. 118.

[3] ROSILHO, André. Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 91.

[4] Sobre o tema: FREITAS, Rafael Véras de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A nova LINDB e o consequencialismo jurídico como mínimo essencial. Acesso em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/opiniao-lindb-quadrantes-consequencialismo-juridico.

[5] Sobre o conceito de erro grosseiro:

OLIVEIRA, Odilon Cavallari. O que é o erro grosseiro da LINDB? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-e-o-erro-grosseiro-da-lindb-14102018.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Erro Grosseiro – Análise crítica do Acórdão nº 2.391/2018 do TCU. Disponível em: https://www.zenite.blog.br/o-erro-grosseiro-analise-critica-do-acordao-no-2-3912018-do-tcu/.

[6] O Tribunal de Contas da União já decidiu que a falta de qualificação necessária para a atuação não isenta o gestor da penalidade cabível (Acórdão nº 2.449/2018-Plenário).


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