A NECESSIDADE DE SEGURANÇA JURÍDICA NAS NORMAS QUE DISCIPLINAM AS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS

 

DIEGO ORNELLAS DE GUSMÃO

Procurador Federal

 

INTRODUÇÃO

 

O presente estudo tem por objetivo enfrentar a sucessão de normas infralegais que disciplinam a contratação de serviços terceirizados no âmbito da Administração Pública Federal.

O ponto central da discussão diz respeito às inovações trazidas pela Instrução Normativa nº 07, de 20 de setembro de 2018, que alterou o art. 75 da Instrução Normativa n. 05, de 26 de maio de 2017, ambas da Secretaria de Gestão do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Desenvolvimento, no ponto específico relativo ao tratamento a ser dado aos contratos decorrentes de processos autuados e registrados anteriormente à vigência da IN SEGES n. 05.

Diante das inovações legislativas que alteraram o tratamento das situações de transição entre o regime jurídico anterior e o atual, necessário se faz a interpretação das normas infralegais à luz do princípio da segurança jurídica, agora reforçado pela Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, como será visto.

 

1. SUCESSÃO DE NORMAS. SEGURANÇA JURÍDICA. REGRAS DE TRANSIÇÃO.

 

Inicialmente cabe destacar a profusão de atos infralegais que disciplinam as contratações públicas federais, gerando muitas dificuldades em conseguir compreender todo o conjunto normativo vigente e aplicável nas contratações públicas, quanto mais quando o legislador altera dispositivos que dizem respeito a direito intertemporal, o que demanda um esforço hermenêutico significativo, exigindo do gestor público redobrada atenção.

Como se sabe, no âmbito da Administração Pública Federal, a contratação de serviços terceirizados é atualmente regida pela Instrução Normativa n. 05, de 26 de maio de 2017, da Secretaria de Gestão do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Desenvolvimento, conforme determina o art. 1º do referido normativo[1].

Anteriormente, a disciplina da contratação dos serviços terceirizados constava da Instrução Normativa n. 2, de 30 de abril de 2008, da extinta da Secretária de Logística e Tecnologia da Informação do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

A IN SEGES n. 05, de 2017, ao trazer uma substancial modificação na fase de planejamento da contratação em relação à disciplina da IN SLTI n. 02, de 2008, buscou ressalvar a sua aplicação em relação a esse momento pré-contratual, permitindo com que os procedimentos instaurados antes de sua entrada em vigor tivessem seu curso normal, sem a necessidade da Administração praticar novos atos processuais à luz da recente normatização.

A IN SEGES n. 05, de 2017, definiu de maneira bem clara as fases do planejamento da contratação (art. 19, I; arts. 20 a 32), e da seleção do fornecedor (art. 19, II; arts. 33 a 38), que constituem o procedimento de contratação.

O parágrafo único do art. 75 da IN SEGES n. 5, de 2017, na sua redação original, ressalvou de sua aplicação os atos procedimentais relativos aos processos instaurados antes de sua entrada em vigor, conforme dispositivo que merece ser colacionado:

 

Art. 75 (...)

Parágrafo único. Permanecem regidos pela Instrução Normativa nº 2, de 2008, os procedimentos administrativos autuados ou registrados até a data de entrada em vigor desta norma.

 

Analisando o referido dispositivo, a Procuradoria Geral Federal emitiu o PARECER n. 00006/2017/CPLC/PGF/AGU, que entendeu pela obrigatoriedade da aplicação da IN n. 05, de 2017, para os processos instaurados após o dia 25 de setembro de 2017, quando se encerrou o prazo de vacatio legis, na forma do art. 75, caput, da IN n. 05, de 2017, devendo todos os feitos serem regidos em sua totalidade pela nova normatização.

No referido parecer também ficou consignado que a ressalva do parágrafo único do art. 75 da IN SEGES n. 05, de 2017, restringe-se à fase do planejamento da contratação e à seleção do fornecedor e, uma vez alcançado o objetivo do procedimento, que é o contrato administrativo, passa a incidir o novo regime jurídico da IN SEGES n. 5 na fase de gestão contratual.

Dessa forma, orientou a Procuradoria Geral Federal que, a contar de sua vigência, a Instrução Normativa n. 5 será aplicada a todos os contratos em relação à gestão e fiscalização, à renovação/prorrogação da vigência contratual, à aplicação de sanções, e aos motivos que levem à rescisão contratual[2].

Não obstante, quase um ano após o início da vigência da IN SEGES n.05, de 2017, foi editada a Instrução Normativa SEGES nº 07, de 20 de setembro de 2018, que incluiu os §§ 1° e 2° ao art. 75, trazendo uma nova orientação, determinando que não só os procedimentos mas também os contratos anteriores à vigência da IN SEGES n. 05, de 2017, sejam integralmente regidos pela antiga IN SLTI nº 2, de 30 de abril de 2008, inclusive no que tange às renovações contratuais.

Considerando a relevância da inovação legislativa, cumpre colacionar os referidos dispositivos:

 

Art. 75. (...)

§ 1 º Permanecem regidos pela Instrução Normativa nº 2, de 2008, todos os contratos decorrentes dos procedimentos administrativos autuados ou registrados até a data de entrada em vigor desta norma.

§2º Incluem-se na previsão do §1º deste artigo, as respectivas renovações ou prorrogações de vigência desses contratos, ainda que venham a ocorrer já na vigência desta Instrução Normativa.

 

Note-se que a alteração efetuada pela IN n. 07, de 2018, um ano após a vigência da IN 05, de 2017, tem por consequência a superação da orientação constante do PARECER n. 00006/2017/CPLC/PGF/AGU, ganhando a antiga IN SLTI n. 02, de 2008, uma sobrevida (ultratividade), regendo a fiscalização e o gerenciamento dos contratos firmados com base neste normativo, além do processo de renovação e prorrogação contratual desses mesmos contratos.

É preciso destacar que decorre do comando constitucional do art. 5º, caput, o direito à segurança, determinando que o ambiente normativo tenha a capacidade de conciliar as mudanças com o valor da segurança jurídica, evitando que pessoas e organizações vivam em permanente risco e instabilidade.

Com todas as vênias, a inclusão dos §§ 1° e 2° ao art. 75 da IN n. 05 pela IN n. 07, de 2018, gerou um estado de insegurança jurídica em relação aos processos e rotinas administrativas que seguiram a redação original do parágrafo único do seu art. 75, uma vez que determinou uma mudança normativa sem fazer qualquer ressalva em relação a situações pretéritas, não levando em consideração todos os atos processuais produzidos e os termos aditivos firmados em um ano de vigência da IN n. 05, de 2017, tudo fundamentado em orientação de parecer jurídico de órgão da Advocacia-Geral da União.

A aplicação literal da nova normatização pode gerar situações de verdadeira perplexidade, com a desconstituição de atos e contratos validamente produzidos segundo as orientações administrativas vigentes na época.

Diante desse quadro, é imperioso fazer uma leitura da inovação legislativa à luz do postulado da segurança jurídica, em especial segundo a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro-LINDB, com as inovações da Lei 13.655, de 2018.

Em primeiro lugar, as autoridades públicas devem buscar aumentar a segurança jurídica na aplicação normas pela edição de atos complementares, conforme determina o art. 30 da LINDB nos seguintes termos:

 

Art. 30.  As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.

Parágrafo único.  Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.

 

Em essência, segundo Odete Medauar[3], segurança jurídica diz respeito à estabilidade das situações jurídicas. Expressa a condição do indivíduo com o sujeito ativo e passivo das relações sociais, quando, podendo saber quais são as normas jurídicas vigentes, tem fundadas expectativas de que elas se cumpram. A sociedade necessita de uma dose de estabilidade, decorrente sobretudo do sistema jurídico. A segurança jurídica permite tornar previsível a atuação estatal e esta deve estar sujeita a regras fixas. Diz respeito, assim, à estabilidade da ordem jurídica e à previsibilidade da ação estatal.

Nesse ponto, interessante é a lição de Humberto Ávila[4], que defende que, se o Estado de Direito é a proteção do indivíduo contra a arbitrariedade, somente um ordenamento acessível e compreensível pode desempenhar essa função. Estado de Direito ou é seguro, ou não é Estado de Direito.

Para Humberto Ávila[5], a segurança jurídica é norma principiológica composta por três elementos: a cognoscibilidade, a confiabilidade e a calculabilidade. Para que a cognoscibilidade seja afirmada, é preciso que os cidadãos tenham possibilidade de acesso e entendimento da norma. Já a confiabilidade assegura a estabilidade e a segurança quanto à permanência de seu conteúdo, permitindo a racionalidade do processo de mudança, reconhecendo que as transformações são indispensáveis sem permitir que ocorram de forma abrupta. Por fim, a calculabilidade exige que haja previsibilidade do ordenamento jurídico, impedindo que o cidadão seja surpreendido, permitindo que antecipe as consequências alternativas atribuíveis pelo Direito a fatos ou a atos próprios ou alheios.

Com base nessas premissas, a segurança jurídica, segundo Humberto Ávila, possui duas dimensões, a saber: estática e dinâmica.

A dimensão estática refere-se às questões de conhecimento e comunicação, ou seja, requisitos que o Direito deve apresentar para que o cidadão possa conhecer e se orientar pelas normas, sendo uma espécie de segurança para o indivíduo frente ao Direito, e obtida através do próprio direito.[6]

Ainda na dimensão estática, temos a cognoscibilidade material, que abrange a acessibilidade, abrangência e possibilidade de identificação da norma; e a cognoscibilidade intelectual, que se refere ao entendimento da norma, que deve ser linguisticamente clara (com conteúdo determinado) e coerente, em face do ordenamento como um todo.[7]

Já a dimensão dinâmica refere-se às mudanças, tanto das leis como da jurisprudência, no decorrer do tempo, com garantias a fatos passados e previsibilidade aos acontecimentos futuros.[8] Neste sentido, o Direito deve ser confiável e calculável.[9]

A confiabilidade abrange a questão da estabilidade, que será possível através da permanência das normas (conteúdo: cláusulas pétreas e normas: durabilidade do ordenamento), intangibilidade de situações por razões objetivas (tempo: Decadência e Prescrição; consolidação de situações: ato jurídico perfeito, direito adquirido, coisa julgada, fato gerador ocorrido) e intangibilidade de situações por razões subjetivas (confiança).[10]

A calculabilidade, por sua vez, envolve a anterioridade, continuidade normativa (suavidade e regras de transição), vinculatividade normativa pela limitação, tempestividade (duração razoável do processo) e proibição de arbitrariedade.[11]

Pois bem, a segurança jurídica da atuação estatal deve estar presente quando houver mudanças do enunciado da norma, ou mudar a sua interpretação, que são atitudes que acabam produzindo consequências semelhantes. Dai a necessidade de igual proteção no tocante à preservação das relações jurídicas constituídas antes da alteração.

Tendo isso em conta, foi incluído na LINDB o art. 24, que trata da vedação não só à aplicação retroativa de norma jurídica, mas também à interpretação administrativa retroativa, conforme dispositivo assim lançado:

 

Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

 

O referido dispositivo está em perfeito diálogo com o disposto no inc. XIII[12] do parágrafo único do art. 2º da Lei 9784, de 1999, que já previa a vedação à interpretação retroativa da norma administrativa.

A legitimidade de qualquer ato jurídico deve ser aferida segundo a legislação vigente no momento de sua prática. É essencial e indispensável que cada cidadão ou agente público, ao agir ou decidir, sempre saiba, antecipadamente, quais serão as consequências de sua opção. Para isso servem as normas jurídicas: para permitir essa antevisão; e para assegurar que aquelas determinadas consequências irão perdurar ao longo do tempo.

As normas jurídicas se aplicam no tempo, às situações de fato, conforme ocorram em um determinado momento, sendo da natureza da lei reger casos futuros (natura legis est decidire casus futuros).

De fato, os atos processuais praticados sob vigência da lei revogada mantêm plena eficácia depois de promulgada a lei nova, embora ditando preceitos de conteúdo diferente. Tempus regit actum: a lei processual prevê apenas para o futuro, ou seja, para os atos processuais ainda não realizados ao tempo em que se iniciou a sua vigência.[13]

Considerando a regra da irretroatividade das leis e o princípio do tempus regit actum, a legislação nova não tem força para invalidar ou reduzir efeitos do ato ou contrato consumado com observância dos requisitos da lei anterior.

A definição de ato jurídico perfeito consta do art. 6º da LINDB, sendo o ato “já consumado segundo a lei vigente do tempo ao tempo em que se efetuou”, servindo o novel art. 24 da LINDB uma complementação ao sistema de segurança jurídica.

Podemos tomar de empréstimo o disposto no art. 14 do Código de Processo Civil de 2015[14], que traz regra sobre a aplicação imediata da lei processual aos processos em curso, ressalvando que devem ser respeitados os atos processuais já praticados e seus respectivos efeitos.

Esta regra é aplicável aos processos administrativos, por força do art. 15 do CPC/2015[15].

Percebe-se que foi adotado o sistema do isolamento dos atos processuais, segundo o qual a lei nova, encontrando um processo em desenvolvimento, respeita a eficácia dos atos processuais já realizados e disciplina o processo a partir da sua vigência. Por outras palavras, a lei nova respeita os atos processuais realizados, bem como os seus efeitos, e se aplica aos que houverem de realizar-se.[16]

Com base nessa lição, os atos já́ praticados são isolados, e sua validade e seus efeitos não poderão ser alterados pela nova legislação.

Entendimento diverso causará o efeito retroativo da nova legislação, o que é vedado pelo ordenamento jurídico (CF, art. 5º, XXXVI).

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 493, o Supremo Tribunal Federal seguiu o voto memorável do ministro MOREIRA ALVES[17], que, com base na lição de MATTOS PEIXOTO, definiu sobre os três graus de retroatividade de uma norma (máxima, média e mínima), nos seguintes termos:

 

Dá-se retroatividade máxima, também chamada restitutória, quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados. Está nesse caso, por exemplo, a lei canônica que aboliu a usura e obrigava o credor solvável a restituir ao devedor, aos seus herdeiros ou, na falta destes, aos pobres, os juros já recebidos. Também o era a lei francesa de 12 de brumário, do ano II (3 de novembro de 1793), que admitiu esses naturais à sucessão paterna e materna em igualdade de condições com os filhos legítimos, desde 14 de julho de 1789, data em que, segundo as leis revolucionárias da época, les droits de la nature ont repris leur empire. A retroatividade operava radicalmente no passado, até a data referida, refazendo mesmo as partilhas definitivamente julgadas. A retroatividade é média, quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes da sua vigência. Exemplo: uma lei que diminuísse a taxa de juros e se aplicasse aos já vencidos, mas não pagos.

Enfim, a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a data em que ela entra em vigor. Tal é a Constituição de Justiniano que limitou a seis por cento, em geral, após sua vigência, a taxa de juros dos contratos anteriores. No mesmo caso está o Decreto nº 22.626, de 07 de abril de 1933, Lei de Usura, que reduziu a doze por cento, em geral, as taxas dos juros vencidos após a data da sua obrigatoriedade.

 

Dessa forma, não é juridicamente válido determinar a aplicação da revogada IN SLTI N. 02, de 2008, aos atos processuais já praticados e aos contratos já firmados com base na própria IN 05, de 2017, pois haveria aplicação retroativa da nova legislação, com o risco de alterar os seus efeitos (retroatividade mínima), e até mesmo de desconstituir atos já praticados (retroatividade máxima), o que não é possível nem desejado.

Surge a questão dos atos futuros por força da inclusão dos §§ 1° e 2° ao art. 75 da IN n. 05 pela IN n. 07, de 2018: passarão esses novos atos e termos aditivos a serem regidos pela antiga IN SLTI 02, de 2008, mesmo tendo todo o processo de gerenciamento e fiscalização dos contratos observado a IN 05, de 2007, segundo a orientação do parecer 06/2017 da PGF?

Pela regra de direito intertemporal, a lei processual nova deve respeitar os atos processuais já realizados, bem como os seus efeitos, aplicando-se somente aos atos subsequentes que não tenham nexo imediato e inafastável com o ato praticado sob o regime da lei antiga ou com os seus efeitos[18].

Contudo, entendo que essa solução pode também gerar problemas práticos, além de causar um retrocesso.

E preciso destacar que a IN n. 05, de 2017, é fruto de diversas orientações por parte do Tribunal de Contas da União[19], que propôs medidas para o aperfeiçoamento da governança e da gestão das contratações realizadas pela Administração Pública Federal, dentre elas a previsão de uma fase de planejamento de contratações bem clara, com modelo de documento de formalização da demanda, a previsão de gestão de riscos, com o gerenciamento e fiscalização dos contratos, incluindo o procedimento de renovação contratual.

A IN n. 05, de 2017, trouxe, assim, uma mudança de paradigma no plano do direito positivo, revogando a antiga IN n. 02, de 2008, da SLTI que, apesar de seus evidentes méritos, possuía lacunas que foram colmatadas com o novo normativo, passando a ser obrigatória a sua disciplina para os órgãos e entidades integrantes do Sistema Integrado de Serviços Gerais.

Percebe-se que as orientações trazidas pela IN 05, de 2017, atendem ao direito fundamental à boa administração, que decorre dos princípios da Administração Pública insculpidos no art. 37, caput, da Constituição, concretizando o direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem.[20]

Pois bem, uma vez feitas as devidas adaptações nos contratos firmados anteriormente à vigência da IN n. 05, de 2017, não cabe retroceder e voltar a aplicar uma legislação revogada e considerada insuficiente pela Corte de Contas para atender a boa gestão pública.

A própria ideia de processo é de um caminhar para frente, não devendo haver retrocessos.

Nos valemos da lição de Guilherme Rizzo Amaral[21], que bem se aplica aos processos administrativos:

 

À medida em que vão sendo praticados os atos processuais pelas partes, pelo juiz ou mesmo por terceiros que participem do processo, diferentes situações jurídicas vão surgindo e, com elas, novas posições jurídicas são assumidas pelas partes que, com isso, adquirem direitos à prática de novos atos processuais, num caminhar constante rumo à tutela jurisdicional definitiva.

 

Dessa forma, é preciso fazer a devida interpretação dos novos §§ 1° e 2° do art. 75 da IN n. 05, de 2017, considerando o princípio da segurança jurídica, motivo pelo qual entendo que nos processos em que houve a observância das regras IN n. 05 no que tange ao gerenciamento dos contratos, inclusive nas renovações contratuais, os atos anteriores e os futuros devem seguir essa normatização, sem retroceder ao antigo regime da IN SLTI  n. 02, de 2008.

Assim, mesmo que o contrato decorra de processo autuado ou registrado antes da vigência da IN 05, não obstante a alteração trazida pela IN 07, de 2018, os atos de gerenciamento dos contratos e os termos aditivos deverão permanecer regidos pela IN n. 05, de 2017.

E o que fazer com as situações em que, não obstante o disposto na redação original do art. 75 da IN n. 05, de 2017, e da orientação da PGF constante no Parecer 06/2017, a Administração permaneceu aplicando a antiga IN SLTI n. 02, de 2008, para os atos de gerenciamento dos contratos e respectivas renovações contratuais?

Para essa situação, deve ser aplicado um regime de transição, servindo a alteração trazida pela IN n. 07, de 2018, como medida para dar validade a essas situações, permitindo que sejam convalidados.

Para tanto, entendo cabível fazer uma interpretação ampliativa do art. 23 da LINDB, que prevê a necessidade de regras de transição, concretizando a calculabilidade do cidadão e dos agentes públicos, para que não haja mudanças bruscas no ordenamento jurídico.[22]

Cabe colacionar o disposto no art. 23 da LINDB:

 

Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

 

Segundo Marilda de Paula Silveira[23], o art. 23 da LINDB garante que as alterações e correções sejam inerentes ao sistema sem que se tenha que conviver com a imprevisibilidade absoluta. Tal dispositivo avança na implementação de instrumentos que concretizam a segurança jurídica, desprende-se da solução binária e privilegia as circunstâncias de cada caso. Apresenta alternativa intermediária para as hipóteses em que a tradição doutrinária e jurisprudencial não permite operar de modo “proporcional, equânime e eficiente, e sem prejuízo aos interesses gerais”. Nesses casos, impõe-se que as decisões administrativas prevejam regime de transição quando norma indeterminada promover modificação que acarrete deveres ou condicione direitos.

A norma do art. 23 da LINDB, ainda na lição de Marilda de Paula[24], implementa a compreensão de que a utilização de uma fórmula geral (one size fits all) não é compatível com a perspectiva democrática, tampouco com o cenário de concretização da segurança jurídica. Pois é a construção individual de alternativas (raciocínio tópico), inseridas no seu devido contexto, que efetivamente leva à implementação da legitimidade do exercício da função administrativa e da própria ação estatal. A ideia, por conseguinte, é abandonar-se a lógica da invalidação com efeitos ex tunc ou ex nunc, ou a simples preservação do ato inválido praticado, e se migrar para o paradigma segundo o qual o princípio da segurança jurídica impõe a avaliação, sempre motivada, da necessidade de adoção em cada caso de um regime jurídico de transição em favor dos administrados.

Dessa forma, deve-se conferir aos §§ 1° e 2° do art. 75 da IN n. 05, de 2017, o tratamento de um regime de transição, que servirá para convalidar eventuais atos de gerenciamento de contratos e renovações contratuais que indevidamente seguiram a regulamentação da IN SLTI n. 02, de 2008, e que continuará a ser utilizada nos atos de gerenciamento e renovação contratual para esses processos.

Por outro lado, é possível utilizar as orientações constantes da IN SEGES n° 05/2017 para os processos que foram instaurados antes da vigência da referida norma, considerando se tratarem de boas práticas administrativas, resultantes da orientação firmada pelo Tribunal de Contas da União.

 

2. CONCLUSÃO.

 

O princípio da segurança jurídica deve servir de norte para a interpretação de qualquer inovação legislativa, motivo pelo qual não é juridicamente válido simplesmente determinar a aplicação da revogada IN SLTI N. 02, de 2008, aos atos já praticados com base na IN SEGES n. 05, de 2017.

Mesmo que o contrato decorra de processo autuado ou registrado antes da vigência da IN SEGES n. 05, de 2017, esta norma permanecerá regendo os futuros atos de gerenciamento dos contratos e seus respectivos termos aditivos.

Cabe conferir aos §§ 1° e 2° do art. 75 da IN SEGES n. 05, de 2017, o tratamento de um regime de transição (art. 24, LINDB), que servirá para convalidar eventuais atos de gerenciamento de contratos e renovações contratuais que indevidamente seguiram a regulamentação da IN SLTI n. 02, de 2008, quando deveriam ter obedecido a IN SEGES n. 05, de 2017, e que continuará a ser utilizada nos atos de gerenciamento e renovação contratual para esses processos..

Por ser uma norma que contém boas práticas administrativas, resultante de orientações da Corte de Contas, o gestor público pode decidir pela aplicação da IN SEGES n. 05, de 2017, nos processos que foram instaurados antes da vigência da referida norma.

 

REFERÊNCIAS

 

AMARAL, Guilherme Rizzo. Estudos de direito intertemporal e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 22.

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2009.

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. I.

MARQUES, Paula Cristina Mariano. Segurança Jurídica e a Extrafiscalidade Tributária. Revista Quaestio Iuris, vol.05, nº01. ISSN 1516-0351, p. 346-359.

MEDAUAR, Odete. Segurança Jurídica e Confiança Legítima. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da UniBrasil. Jan/Jul 2008, ISSN 1678-2933, p. 227-231.

SANTOS, Moacyr Amaral dos. Primeiras linhas de direito processual civil. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2004.

SILVEIRA, Marilda de Paula. in: Flávio Henrique Unes Pereira (coord.). SEGURANÇA JURÍDICA E QUALIDADE DAS DECISÕES PÚBLICAS: desafios de uma sociedade democrática. Estudos sobre o Projeto de Lei no 349/2015, que inclui, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, disposições para aumentar a segurança jurídica e a eficiência na aplicação do direito público. Brasília: Senado Federal. 2015.

 



[1] Art. 1º As contratações de serviços para a realização de tarefas executivas sob o regime de execução indireta, por órgãos ou entidades da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, observarão, no que couber: [...]

[2] Do PARECER n. 00006/2017/CPLC/PGF/AGU foi exarada a CONCLUSÃO DEPCONSU/PGF/AGU Nº 137/2017, com o seguinte teor: I. A INSTRUÇÃO NORMATIVA N. 05, DE 26 DE MAIO DE 2017, DA SECRETARIA DE GESTÃO DO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E DESENVOLVIMENTO, PASSARÁ A VIGER NO DIA 23 DE SETEMBRO DE 2017, SÁBADO, CONSIDERANDO O DISPOSTO NO § 1° DO ART. 8° DA LEI COMPLEMENTAR 95, DE 1998;

II. COMO SOMENTE PODEM SER PRATICADOS ATOS PROCESSUAIS EM DIAS ÚTEIS, A INSTRUÇÃO NORMATIVA N. 5, DE 2017, SERÁ EFETIVAMENTE APLICADA AOS PROCESSOS DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS AUTUADOS OU REGISTRADOS A PARTIR DO DIA 25 DE SETEMBRO DE 2017, SEGUNDA-FEIRA;

III. NÃO SERÁ APLICADA A INSTRUÇÃO NORMATIVA N. 5, DE 2017, À FASE INTERNA DOS PROCESSOS DE CONTRATAÇÃO AUTUADOS OU REGISTRADOS ANTES DO DIA 25 DE SETEMBRO DE 2017;

IV. APÓS 25 DE SETEMBRO DE 2017, SERÁ APLICÁVEL A INSTRUÇÃO NORMATIVA N. 5, DE 2017, AOS CONTRATOS FIRMADOS ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DO REFERIDO NORMATIVO OU DECORRENTES DE PROCESSOS INSTAURADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEGISLAÇÃO ANTERIOR, REFERENTES À GESTÃO E FISCALIZAÇÃO DOS CONTRATOS, RENOVAÇÃO/PRORROGAÇÃO DA VIGÊNCIA CONTRATUAL, A APLICAÇÃO DE SANÇÕES, E MOTIVOS QUE LEVEM À RESCISÃO CONTRATUAL.

V.  NÃO É ADMISSÍVEL À ADMINISTRAÇÃO CRIAR OBRIGAÇÕES NA FASE DE GESTÃO CONTRATUAL, COM BASE NA INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 05, DE 2017, QUE NÃO FORAM EXIGIDAS NO MOMENTO DA SELEÇÃO DO FORNECEDOR, POR FORÇA DA APLICAÇÃO DA INSTRUÇÃO NORMATIVA N° 02, DE 2008

[3] MEDAUAR, Odete. Segurança Jurídica e Confiança Legítima. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da UniBrasil. Jan/Jul 2008, ISSN 1678-2933. p. 228.

[4] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 207.

[5] ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 291-2.

[6] ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 290.

[7] MARQUES, Paula Cristina Mariano. Segurança Jurídica e a Extrafiscalidade Tributária. Revista Quaestio Iuris, vol.05, nº01. ISSN 1516-0351, p. 351. ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 290.

[8] MARQUES, Paula Cristina Mariano. Op. cit., loc. cit.

[9] ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 291.

[10] MARQUES, Paula Cristina Mariano. Op. cit., p. 352; ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 291.

[11] MARQUES, Paula Cristina Mariano. Op. cit., loc. cit.; ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 292.

[12] XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

 

[13] MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. I, n. 42, p. 100-101.

[14] Art. 14.  A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

[15] Art. 15.  Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

[16] SANTOS, Moacyr Amaral dos. Primeiras linhas de direito processual civil. V. 1 . 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. I, p. 32.

[17] STF - ADIn 493, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Revista Trimestral de Jurisprudência n. 143, p. 740-741.

[18] AMARAL, Guilherme Rizzo. Estudos de direito intertemporal e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 22.

[19] TCU: acórdão 2622/2015-Plenário; acórdão 2353/2016-Plenário, v.g.

[20] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 22.

[21] AMARAL, Guilherme Rizzo. Op. Cit. p. 17.

[22] ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 267.

[23] SILVEIRA, Marilda de Paula. in: Flávio Henrique Unes Pereira (coord.). SEGURANÇA JURÍDICA E QUALIDADE DAS DECISÕES PÚBLICAS: desafios de uma sociedade democrática. Estudos sobre o Projeto de Lei no 349/2015, que inclui, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, disposições para aumentar a segurança jurídica e a eficiência na aplicação do direito público. Brasília: Senado Federal. 2015. p. 24.

[24] SILVEIRA, Marilda de Paula. Op. cit., p. 24-25.