A VERIFICAÇÃO DE CONFORMIDADE INICIAL E O JULGAMENTO DAS PROPOSTAS DE ACORDO COM O NOVO REGULAMENTO DO PREGÃO ELETRÔNICO

 

 

 

VICTOR AGUIAR JARDIM DE AMORIM

Doutorando em Direito (UniCEUB). Mestre em Direito Constitucional (IDP). Professor de pós-graduação do IGD, ILB e IDP. Coordenador do curso de pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Pregoeiro do Senado Federal. Advogado e Consultor Jurídico.

 

 

 

 

 

A verificação inicial da conformidade das propostas cadastradas no sistema

 

Com redação diversa daquela constante no §2º do art. 22 do Decreto Federal nº 5.450/2005, o caput do art. 29 da minuta do novo regulamento federal do pregão eletrônico estabelece que "o pregoeiro verificará os valores iniciais das propostas apresentadas, desclassificando aquelas que não estejam em conformidade com os requisitos estabelecidos no edital".

 

O transcrito art. 29 trata da providência a ser adotada pelo Pregoeiro antes de proceder à abertura da fase de lances: a chamada etapa de "verificação inicial da conformidade das propostas", consoante dispõe o inciso VII, art. 4º, da Lei nº 10.520/2002.

 

Cadastrada a proposta na forma do art. 27 do novo regulamento[1], em tal etapa inicial, haverá o pleno sigilo em relação à autoria das ofertas e, também, aos documentos encaminhados via sistema, de modo que eventuais tentativas dos licitantes de se identificarem indevidamente através dos registros, em campo livre, no sistema, acarretará a necessária desclassificação das propostas.

 

Em sede de pregão eletrônico, não é despiciendo frisar que a minuta do novo regulamento, assim como o Decreto nº 5.450/2005, deixou de implementar a faixa de classificação para a fase de lances de que trata o inciso VIII do art. 4º da Lei nº 10.520/2002, segundo o qual somente poderiam registrar lances “o autor da oferta de valor mais baixo e os das ofertas com preços até 10% (dez por cento) superiores àquela”. Dessa forma, não haverá respaldo para uma filtragem do Pregoeiro quanto à “faixa de corte” para o universo dos licitantes aptos à participarem da fase de lances.

 

Considerando que o sigilo quanto à autoria das propostas somente será afastado após a conclusão da fase de lances (art. 27, §7º[2]), o Pregoeiro não terá condições práticas de realizar o afastamento de licitante por ausência de condição de participação, como, por exemplo, nas hipóteses previstas no art. 9º da Lei nº 8.666/1993 e nos casos de vigência de sanções administrativas e judiciais restritivas do direito de licitar e contratar com o Poder Público.

 

Destarte, como base de análise do Pregoeiro para a "verificação da conformidade das propostas" remanesceria apenas as informações básicas preenchidas pelos licitantes quando do cadastramento das ofertas no sistema, de modo que, no pregão eletrônico, somente se admitiria a desclassificação antes da fase de lances quando a desconformidade com os requisitos do edital for manifesta[3] ou quando se estiver diante de preços simbólicos, irrisórios, de valor zero ou que, diante das circunstâncias e das características do objeto, ostentem uma presunção absoluta de inexequibilidade[4].

 

Há que se reconhecer que a sistemática implementada pelo sistema COMPRASNET quanto ao cadastramento inicial das propostas confere um nítido caráter instrumental à etapa que antecede à disputa de lances, uma vez que os elementos de informação que teriam o condão de ensejar a exclusão precoce das propostas relacionados à eventual desconformidade manifesta com o edital (como a indicação de marca e modelo dos produtos) não estarão disponíveis ao Pregoeiro e aos demais recorrentes, restando o “preço” como a única informação relevante. Tanto é verdade, que o caput do art. 29 da minuta do novo regulamento parece estabelecer o "preço" como único parâmetro a ser observado pelo Pregoeiro na etapa de verificação de conformidade inicial das propostas ("o pregoeiro verificará os valores iniciais das propostas apresentadas"[5]).

 

Em tal seara, o TCU, paulatinamente, vem reiterando que a análise definitiva acerca do real atendimento às especificações do edital somente deve ser dar quando do julgamento das propostas que se dá após a fase de lances, devendo, inclusive, ser realizada diligência ou ser oportunizado ao licitante em questão esclarecimentos e complementações acerca das especificações do bem ou serviço ofertado.

 

5. Quanto à primeira irregularidade, qual seja, a recusa da proposta da empresa XXX para os grupos 9 e 10 do Pregão Eletrônico 70/2012, em razão de a licitante não ter feito constar corretamente a marca dos produtos ofertados, manifesto minha concordância com a unidade técnica, no sentido de que se trata de medida de excessivo formalismo e rigor, que foi determinante para que os mencionados grupos fossem adjudicados à empresa YYY., que ofertou valores muito superiores à proposta da empresa XXX, indevidamente desclassificada (R$ 326.637,44, ou 13% superior, para o grupo 9; R$ 12.082.993,30, ou 151% superior, para o grupo 10).

6. Isso porque, apesar de o edital conter disposição no sentido de que cumpria ao licitante indicar, em campo próprio do sistema, a marca e o modelo do produto ofertado, e que o art. 41 da Lei nº 8.666/1993 fixa que a Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, não poderia o gestor interpretar os mencionados dispositivos de maneira tão estreita.

7. Na verdade, as citadas disposições devem ser entendidas como prerrogativas do poder público, que deverão ser exercidas mediante a consideração dos princípios basilares que norteiam o procedimento licitatório, dentre eles, o da seleção da proposta mais vantajosa para a administração.

8. No caso, portanto, caberia ao pregoeiro utilizar-se, zelosamente, da possibilidade de encaminhar diligência às licitantes, nos termos do art. 43, § 3º, da Lei nº 8.666/1993, e igualmente prevista no item 11.5 do edital, a fim de suprir as lacunas quanto às informações dos equipamentos ofertados, medida simples que poderia ter oportunizado a contratação de proposta mais vantajosa.

(Trecho do Voto do Min. Valmir Campelo no Acórdão nº 3.615/2013-Plenário)

 

 

10. Como visto, a representante foi desclassificada do certame em relação aos Grupos 8 e 10 por não haver inserido no Comprasnet todas as informações requeridas pelo item 5.7 do edital, quais sejam: prazo de validade da proposta, procedência do produto, prazo de validade ou garantia do produto, além da indicação indevida do nome do licitante no campo “Marca”, “Fabricante” e “Modelo”.

11. Bem se vê que, além de esses itens extrapolarem os que são usualmente exigidos no campo “Descrição Detalhada do Objeto Ofertado”, do Comprasnet, eles envolvem informações cujos requisitos mínimos já constavam do edital, a exemplo do prazo exigido para a validade da proposta (item 5.2 e o 5.7) e do prazo de garantia do produto (item 31.2 e 5.7.), configurando extremo rigor a desclassificação das empresas pela não inclusão no sistema, além de constituírem dados que já deveriam constar obrigatoriamente da proposta final ajustada pela licitante vencedora.

12. Na mesma linha, as informações inseridas nos itens “Marca” e “Fabricante”, do Comprasnet, tendo em vista a necessidade de manutenção do sigilo das propostas, somente se tornam visíveis nesse sistema oficial após a fase de lances, destacando-se, ainda, que a vencedora dos Grupos 2, 3, 4, 5 e 6 também preencheu esses campos com o seu próprio nome e, diferentemente da representante, não foi desclassificada.

(Voto do Min. André de Carvalho no Acórdão nº 1.807/2015-Plenário)

 

Por fim, caso seja fixado no ato convocatório, o valor estimado da contratação como critério de aceitabilidade das propostas (preço máximo), o cadastro de ofertas com valor superior a tal patamar não enseja a eliminação da proposta antes da etapa de lances, uma vez que os preços ofertados estarão sujeitos à redução durante a disputa[6]. Note-se que a desclassificação motivada por preço superior ao máximo permitido somente se faz possível em sede de julgamento definitivo da proposta, após tentativa de negociação com o licitante.

 

Aceitabilidade inicial e presunção de inexequibilidade das ofertas

 

O TCU possui entendimento consagrado no enunciado da Súmula nº 262[7] no sentido de que, havendo indícios de inexequibilidade da proposta, antes da realização de eventual desclassificação, deverá ser assegurada à licitante a demonstração da viabilidade econômica da oferta.

 

Diante de tal panorama, no bojo de um pregão eletrônico, verificada a presunção relativa de inexequibilidade de determinada proposta, o Pregoeiro se vê impossibilitado de realizar a desclassificação preliminar do licitante antes de oportunizar a comprovação da viabilidade do preço ofertado.

 

Nesse ponto, cabe uma indagação: como observar a Súmula nº 262 do TCU se, antes da abertura da fase de lances, ainda persiste o sigilo quanto aos licitantes que cadastraram propostas? Ora, nesse caso não haveria como assegurar o contraditório prévio...

 

Como resolução do impasse, propõe-se a seguinte conduta ao Pregoeiro: na etapa de aceitação preliminar das propostas, constatada a existência de proposta com presunção de inexequibilidade, deverá informar no chat tal ocorrência, alertando os licitantes que, em razão da Súmula nº 262 do TCU seria inviável a desclassificação da proposta em tal momento, sendo imprescindível a conclusão da fase de lances para identificação a licitante responsável pela oferta. Somente a partir daí, se mostra faticamente possível oportunizar ao licitante a comprovação da viabilidade de sua oferta.

 

Feita tal comunicação, o Pregoeiro deverá alertar os concorrentes que a existência de proposta supostamente inexequível não afeta a fase de disputa, tendo em vista a possibilidade de lances intermediários no pregão eletrônico.

 

Encerrada a disputa de lances e mantida a presunção de inexequibilidade da melhor proposta, o Pregoeiro concederá à respectiva licitante a oportunidade de comprovação da viabilidade econômica e financeira da oferta, decidindo motivadamente a respeito e com subsídio do setor técnico (art. 18, parágrafo único, da minuta do novo regulamento[8]).

 

Julgamento da proposta: aceitabilidade quanto ao preço

Ao contrário do que se observa em relação à etapa de "verificação da conformidade das propostas" de que trata o art. 29 da minuta do novo regulamento, é na oportunidade do julgamento “que deve ser perquirida com afinco a compatibilidade do preço da preço da proposta em relação ao estimado para contratação e o atendimento pelo licitante das exigências habilitatórias dispostas no edital” (Acórdão TCU nº 2.154/2011-Plenário).

 

Com efeito, em observância aos princípios do julgamento objetivo e vinculação ao ato convocatório, o Pregoeiro verificará, com o suporte do setor técnico (art. 18, parágrafo único), se a proposta se afigura substancialmente compatível com os requisitos mínimos estabelecidos no edital.

 

Quanto ao valor, deve o Pregoeiro observar as regras do edital no tocante à eventual fixação de preço máximo e os critérios de adjudicação (por item, por grupo ou global).

 

No caso específico de pregão para serviços comuns de engenharia, é de observar o enunciado da Súmula nº 259 do TCU, segundo o qual, ainda que adotado o critério de menor preço global, os preços unitários que compõem o objeto deverão ser considerados como preços máximos. 

 

Não havendo a fixação de preço máximo e não se tratando de licitação para serviço de engenharia, diante da ausência de critério de aceitabilidade quanto ao preço, entende-se que, na hipótese de o valor da melhor proposta ser superior ao estimado para a contratação, ainda que a oferta se mostre inadequada para a Administração sob o prisma da vantajosidade, o Pregoeiro não disporá de instrumento jurídico e editalício apto para a desclassificação da proposta.

 

Afinal, considerando que a proposta somente poderá ser desclassificada em razão da inobservância de critério de aceitabilidade expressamente previsto no edital, tem-se por indevida a postura do Pregoeiro consistente em recusar uma oferta sem que haja descumprimento do ato convocatório.

 

 

Ora, o fundamento de eventual recusa de proposta pelo Pregoeiro deve ter amparo objeto na lei e/ou no edital, de modo que argumentos concernentes à economicidade e conveniência de contratação de proposta cujo valor seja superior ao estimado compõem o juízo de apreciação discricionária da autoridade superior, quando da homologação do certame. Entendendo pela inconveniência da contratação sob o prisma econômico, tal autoridade deverá empreender a revogação da licitação, ato esse que, inquestionavelmente, não se encontra inserido nas atribuições do Pregoeiro. 

 

Neste ponto, reitero minha preocupação com a comum prática, no sistema COMPRASNET, de “cancelamento na aceitação” de item no qual todos as ofertas participantes são superiores ao valor estimado e não é fixado “preço máximo” no instrumento convocatório. Ora, tal “cancelamento”, a bem da verdade, constitui-se em “revogação”, porquanto o ato de desfazimento do certame se lastreia no pressuposto de inconveniência para a Administração de contratar a então melhor proposta apresentada no certame. Se está a se falar de conveniência e oportunidade para contratação de oferta superior à estimativa inicial de despesa, a competência para apreciar a vantajosidade ou não recai sobre a autoridade superior, sendo indevida imputá-la ao Pregoeiro.

 

Daí o alerta de cautela aos Pregoeiros quanto à ferramenta de “cancelamento” disponibilizada pelo COMPRASNET. No tocante ao desfazimento do certame, o sistema jurídico comporta apenas duas categorias: “anulação” (por vício de legalidade) e “revogação” (por conveniência e oportunidade). A rigor, mostra-se necessária a adequação do COMPRASNET de modo a suprimir a terminologia “cancelamento” e disponibilizar as ferramentas adequadas de desfazimento do certame durante a sua realização (anulação e revogação).

 

Nos certames nos quais é fixado preço máximo e todas as propostas estão acima de tal patamar, o “cancelamento na aceitação” representará, em realidade, a declaração de fracasso do “item” ou “grupo”, de modo que, talvez, a fim de se evitar confusões, o ideal seria o COMPRASNET disponibilizar a ferramenta “declarar fracassado”.

 

Ao Pregoeiro, durante o certame, em atenção ao dever de autotutela, somente compete a anulação de seus próprios atos quando eivados de vício de legalidade. No caso de intenção de desfazimento do certame por ausência de conveniência e oportunidade da Administração, a revogação deverá ser materializada no sistema por parte da autoridade superior.

 

Ademais, se se pretender a revogação no curso da licitação, sugere-se como boa prática, a observância das premissas contidas no enunciado do Acórdão TCU nº 455/2017-Plenário: “constatado fato superveniente a motivar o desfazimento do processo licitatório por inconveniência e/ou inoportunidade, a Administração deve comunicar aos licitantes a intenção de revogação, oferecendo-lhes direito ao contraditório e à ampla defesa prévios, em prazo razoável”.   

 

 

 



[1] Art. 27. Após a divulgação do edital no sítio eletrônico, os licitantes deverão encaminhar, juntamente com os documentos de habilitação exigidos no edital, proposta contendo a descrição do objeto ofertado e o preço, até a data e hora marcadas para abertura da sessão, exclusivamente por meio do sistema, quando, então, encerrar-se-á, automaticamente, essa fase.

[2] § 7º Os documentos que compõem a proposta e a habilitação do licitante melhor classificado somente serão disponibilizados para avaliação do pregoeiro e para acesso público após o encerramento da fase de lances.

[3] Nesse sentido, vide Acórdãos TCU nº 1.807/2015 e nº 2.131/2016, ambos do Plenário.

[4] Nesse sentido, Acórdão TCU nº 1.620/2018 - Plenário.

[5] De forma diversa, dispunha o §2º do art. 22 do Decreto Federal nº 5.450/2005: "O pregoeiro verificará as propostas apresentadas, desclassificando aquelas que não estejam em conformidade com os requisitos estabelecidos no edital".

[6] Nesse sentido, Acórdão TCU nº 2.131/2016 - Plenário.

[7] Enunciado da Súmula nº 262 do TCU: “O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei 8.666/1993 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”.

[8]O pregoeiro poderá solicitar manifestação técnica de outros setores ou da assessoria jurídica do órgão ou entidade, a fim de subsidiar sua decisão”.