A DISPENSA DE LICITAÇÃO PARA CONTRATAÇÕES NO ENFRENTAMENTO AO CORONAVÍRUS
Gabriela Pércio
Advogada, especialista em Direito Administrativo, Mestre em Gestão de Políticas Públicas, consultora em licitações e contratos, autora da obra "Contratos Administrativos - Manual para Gestores e Fiscais, incluindo Sistema de Registro de preços, RDC e Lei das Estatais", 3ª ed., 2020, Editora Juruá
Rafael Sérgio de Oliveira
Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas. Mestre em Direito. Pós-Graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa. Participante do Programa Erasmus+ na Università degli Studi di Roma. Procurador Federal da AGU. Fundador do Portal L&C. Palestrante e Professor em diversos cursos de pós-graduação no Brasil.
Ronny Charles Lopes de Torres
Advogado da União. Doutorando em Direito. Mestre em Direito Econômico. Pós-graduado
em Direito tributário. Pós-graduado em Ciências Jurídicas. Coordenador (junto com o Prof. Jacoby Fernandes) da pós-graduação em Licitações e contratos, da Faculdade Baiana de Direito. Professor do Centro de Ensino Renato Saraiva (CERS). Membro da Câmara Nacional de licitações e contratos da Consultoria Geral da União. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (10ª Edição. Ed. JusPodivm); Direito Administrativo (Co-autor. 9ª Edição. Ed. Jus Podivm); RDC: Regime Diferenciado de Contratações (Co-autor. Ed.Jus Podivm); Terceiro Setor: entre a liberdade e o controle (Ed. Jus Podivm), Licitações e contratos nas empresas estatais (Co-autor. Ed. Jus Podivm). Improbidade administrativa (Co-autor. 4ª edição. Ed. Jus Podivm).
INTRODUÇÃO
A Organização Mundial da Saúde reconheceu no dia 11 de março de 2020 que o coronavírus, responsável pela doença catalogada como COVID-19, se espalhou por diversas partes do mundo, a ponto de tal situação merecer ser caracterizada como uma pandemia. No Brasil, já há vários casos e algumas partes do território nacional já foram consideradas em situação de transmissão comunitária, aquela em que não é mais possível rastrear a origem da contaminação. Tal realidade favorece o aumento drástico do contágio viral e dificulta o combate à situação pandêmica.
Com isso, os governos federal, estaduais, distrital e municipais têm adotado severas medidas de combate à transmissão do coronavírus, almejando que, assim, os danos causados pela COVID-19 à saúde da população e à economia da nação brasileira sejam o menor possível. Nesse ponto, ressalta-se a Lei nº 13.979, de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Tal é a gravidade da situação que, por solicitação do Presidente da República, o Congresso Nacional reconheceu no Decreto Legislativo nº 6, de 2020, a ocorrência de estado de calamidade pública. Ressaltamos que o efeito desse decreto é, exclusivamente, o de dispensar o Poder Executivo federal de atingir os resultados fiscais previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias relativa ao ano de 2020 (Lei nº 13.898, de 2019).
Obviamente que muitas das ações do Estado para o enfrentamento da COVID-19 gerarão a necessidade de contratações de bens, serviços, insumos e até obras. Todavia, a prevalecer a legislação vigente sobre licitação e contrato, essas contratações não alcançariam o seu objetivo, seja porque entregariam o seu objeto com atraso, ou mesmo porque não chegariam a um bom fim. Com isso, a Lei nº 13.979, de 2020, traz diversos dispositivos relativos a contratações públicas[1].
No que tange à matéria de licitação e contrato, as regras da Lei nº 13.979 se encaixam no conceito de “norma geral” para efeito do art. 22, inciso XXVII, da Constituição, pelo que se trata de normas nacionais, aplicando-se às entidades federais, estaduais, municipais e distritais. A despeito disso, importante mencionar que o diploma legal de combate ao coronavírus, sob os olhos da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB, é uma norma específica e, por isso, de aplicação limitada às posturas de combate à COVID-19, bem como restrita ao tempo em que durar a crise que ocasiona a necessidade de enfrentamento do vírus.
Um dos dispositivos da lei em estudo se refere à dispensa de licitação para enfrentamento da emergência do coronavírus, prevista em seu art. 4º. Analisamos nos tópicos seguintes os requisitos para a aplicação dessa dispensa.
1 – DA DISPENSA DE LICITAÇÃO PARA ENFRENTAMENTO DO CORONAVÍRUS
Conforme já dito, uma das medidas previstas no mencionado diploma legal é a excepcional hipótese de contratação de bens, serviços e insumos sem licitação, nos casos em que o objeto contratado tiver como finalidade o combate ao coronavírus. O art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020, prevê que a licitação é dispensável nesses casos com o seguinte texto:
Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
§ 2º Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
§ 3º Excepcionalmente, será possível a contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido. (grifo nosso)
Conforme expressamente preconizado no artigo acima transcrito, trata-se de hipótese de contratação direta temporária e destinada a uma política de saúde pública específica, o enfrentamento da emergência decorrente do coronavírus. Passado todo esse contexto de combate à transmissibilidade do referido vírus e de tratamento das pessoas acometidas pela COVID-19, esse caso de dispensa de licitação não poderá mais ser aplicado. Ou seja, o art. 4º acima transcrito é uma norma de vigência temporária, nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Sua vigência está vinculada ao estado de emergência decorrente do coronavírus.
É lícito dizer que a aplicação escorreita da contratação direta em análise exige a presença de alguns requisitos de ordem temporal, material e procedimental (formal). Quanto ao temporal, é a já mencionada emergência em decorrência do coronavírus. Os requisitos materiais e procedimentais serão analisados nos tópicos seguintes.
1.1 – Dos requisitos materiais para a dispensa do art. 4º da Lei nº 13.979
As exigências de ordem material dizem respeito ao objeto da contratação e à configuração dos fatos geradores da dispensa prevista no art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020.
Quanto ao objeto, a dispensa aqui estudada não se aplica às obras. O caput do art. 4º da lei em comento se refere à contratação de bens, serviços, incluídos os de engenharia, e insumos. Com isso, eventuais obras necessárias para o combate ao coronavírus não poderão ser contratadas pela dispensa da Lei nº 13.979. Configurada a situação de urgência e calamidade pública decorrente do coronavírus, a contratação da obra deverá ter como fundamento o art. 24, IV, da Lei nº 8.666, de 1993.
Assim, o primeiro elemento a ser observado é o objeto contratual, que poderá ser bem, serviço ou insumo. É importante ressaltar que os bens a serem adquiridos não necessitam ser novos. O art. 4º-A da Lei nº 13.979, 2020, expressamente autoriza a Administração a usar a dispensa para contratação de equipamentos usados. Essa mesma permissão também se aplica àqueles equipamentos que sejam incluídos como acessórios em uma contratação de serviço. O fato é que, possivelmente, a fabricação de alguns produtos não será suficiente para satisfazer as necessidades públicas. A alta demanda por produtos relacionados ao combate da pandemia não será equivalente à capacidade de oferta, seja no âmbito nacional ou internacional. Por isso, a Administração está autorizada a adquirir equipamentos usados, devendo o fornecedor se responsabilizar pelas boas condições de uso e funcionamento do bem (art. 4-A da Lei º 13.979, de 2020).
As ações de combate ao coronavírus se darão em diversas vertentes, o que demandará posturas públicas que nem sempre serão de cunho sanitário. Isso quer dizer que surgirão necessidades relacionadas, por exemplo, a comunicações orientativas à população. Assim, o objeto da contratação não será necessariamente um bem ou serviço da área de saúde. Aliás, a lei deixa isso claro quando autoriza a contratação de serviço de engenharia.
Quanto aos fatos que oportunizam a aplicação do art. 4º em estudo, eles estão listados no art. 4º-B do mesmo diploma legal, que diz:
Art. 4º-B Nas dispensas de licitação decorrentes do disposto nesta Lei, presumem-se atendidas as condições de:
I - ocorrência de situação de emergência;
II - necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;
III - existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e
IV - limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Assim, para a incidência da hipótese de contratação direta em análise, é preciso que: a) vigore a emergência de combate ao coronavírus (temporal); b) haja necessidade de atendimento imediato para o enfrentamento do vírus; c) estejam em risco em decorrência do coronavírus pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens públicos ou particulares; e d) limitação da contratação ao necessário para o atendimento da emergência.
Embora a norma transcrita fale que esses elementos são presumidos, entendemos que deve o gestor tomar o cuidado de expor minimamente nos autos cada um desses requisitos. Em nossa avaliação, o que é dispensada é a ampla comprovação das alegações, que podem ser vertidas de forma simplificada no processo. Ou seja, a presunção afasta a necessidade de prova, mas não a de motivação. Seria irrazoável imaginar que a simples invocação do art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020, fosse o suficiente para já se inferir toda a situação indispensável para a aplicação da Lei. É preciso lembrar que a Lei nº 13.979, de 2020, procura simplificar e flexibilizar[2] o processo de contratação, mas sem abrir mão de princípios básicos da administração pública, como é o caso do princípio da publicidade (art. 37 da Constituição). Expor minimamente nos autos o motivo da dispensa é condição para a transparência do ato, que merecerá a devida fiscalização social e das instâncias competentes no seu devido tempo.
Dito isso, para possibilitar a identificação de tais requisitos, a justificativa simplificada juntada aos autos deverá responder aos seguintes questionamentos:
a) O objeto a ser contratado é bem, serviço ou insumo?
b) A Lei 13.979 está em vigor?
c) Por que o bem, insumo ou serviço que se pretende contratar está no contexto da contenção da crise?
d) Que riscos a falta do bem, insumo ou serviço que se pretende contratar trará à segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, no contexto da contenção da crise?
e) A contratação, considerando o quantitativo e o prazo do contrato, conforme o caso, está limitada à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência?[3]
Cabe aqui asseverar que esses são os únicos elementos a serem considerados. Tal assertiva é relevante porque tem surgido questionamentos acerca da incidência do inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993, nas hipóteses do art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020. O inciso mencionado fala da contratação por dispensa em caso de emergência ou de calamidade pública. Entretanto, a licitação dispensável admitida no art. 4º da Lei de Combate ao Coronavírus é de aplicação independente, e não conjugada (ou condicionada) aos requisitos da contratação emergencial prevista no regime geral. Ou seja, trata-se de um novo e específico caso de dispensa, cuja incidência não depende de nenhum outro requisito, previsto em outro dispositivo.
Uma questão que também merece ser observada é a possibilidade de a dispensa incidir em contratações nas quais o vínculo com a pandemia não seja de ordem direta, mas apenas indireta. A tomada de algumas medidas diretamente relacionadas ao combate da COVID-19 implicará mudanças na forma de atuação do Estado na prestação de outros serviços à população. Com o isolamento social, por exemplo, haverá necessidade de contratações voltadas à estruturação da prestação de serviços públicos não sanitários a distância. Assim, seria lícita a hipótese de dispensa de licitação do art. 4º em estudo para contratação de uma ferramenta de educação a distância apta a garantir que um dado ente da federação continue a oferecer os serviços em tempos de restrição ao convívio social[4].
Com isso, é preciso se ter em mente que o enfrentamento da emergência de saúde pública a que se refere o art. 4º denota contratações diretamente voltadas para o combate ao coronavírus, bem como contratações indiretamente relacionadas à eliminação do vírus.
Disso se dessume outra regra, a de que a dispensa aqui analisada NÃO é restrita a órgão e entidades da área de saúde. Primeiramente, devemos lembrar que órgãos estranhos à área sanitária podem vir a contratar bens e serviços relacionados diretamente ao combate do coronavírus. Isso se sucederia, por exemplo, caso uma unidade administrativa da área de infraestrutura adquirisse álcool gel, termômetros e testes de infecção do vírus, tudo com o intuito de ofertar um ambiente de trabalho de menor transmissibilidade do vírus para o seu público interno e externo. Além disso, esses órgãos e entidades estranhos à matéria sanitária, necessitarão recorrer à dispensa em foco para se adaptarem a eventuais posturas relacionadas diretamente ao enfrentamento da COVID-19 (como o isolamento social, por exemplo).
1.2 – Dos requisitos procedimentais para a dispensa do art. 4º da Lei nº 13.979
A Lei nº 13.979, de 2020, é um diploma específico e destinado ao enfrentamento de uma situação temporária e excepcional. Desse modo, sua aplicação ocorre nas situações extraordinárias destinadas ao combate ao coronavírus e sua interpretação deve sempre estar focada nessa finalidade, de modo que eventuais entraves legais ao enfrentamento da pandemia atualmente vivida devem ser superados sob pena de um mal maior à saúde da população brasileira.
Focada nesse intuito de atender às demandas de combate à transmissibilidade do coronavírus, assim como aos efeitos da doença COVID-19, a Lei nº 13.979, de 2020, simplificou consideravelmente o procedimento de contratação, afastando, total ou parcialmente, a aplicação de alguns institutos exigidos pelo regime geral de contratação pública, previsto na Lei nº 8.666, de 1993. Ou seja, no aspecto procedimental, deve-se recorrer à Lei nº 8.666, de 1993, nas contratações por dispensa de licitação destinadas ao enfrentamento do coronavírus apenas naquilo que não conflite, expressa ou implicitamente, com o procedimento e com a finalidade premente de proteção da saúde, previstos na Lei nº 13.979, de 2020.
Nessa linha, apontamos que a Lei de Combate ao Coronavírus expressamente simplifica o procedimento de contratação por dispensa de licitação nos seguintes pontos:
a) Dispensa da elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns (art. 4º-C);
b) O gerenciamento de risco não é exigido na fase da contratação, mas apenas na execução do contrato (art. 4º-D);
c) Aceitação de projeto básico simplificado, no qual contenha os elementos previstos no art. 4-E, § 1º, da Lei em comento;
d) Possibilidade de, excepcionalmente, o gestor dispensar, mediante justificativa, a estimativa de preço exigida pelo § 1º, inciso VI, do art. 4-E da Lei nº 13.979, de 2020; e
e) Dispensa da apresentação dos documentos relativos à habilitação, excepcionalmente e mediante justificativa, nas situações em que houver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, ressalvadas as habilitações relativas à regularidade com a Seguridade Social e o cumprimento do disposto no art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição (trabalho de menores) (art. 4º-F).
Em relação aos pontos mencionados nos itens a e b supra, não há maiores considerações a fazer, até porque tais documentos são exigidos em atos infralegais, como o Decreto nº 10.024, de 2019, e a Instrução Normativa SEGES nº 5, de 2017. Em relação aos demais, faremos algumas considerações sobre cada um deles.
1.2.1 – Do projeto básico simplificado (art. 4º-E da Lei nº 13.979)
No intuito de desburocratizar e simplificar a contratação na situação de emergência gerada pela pandemia do coronavírus, a Lei admite um projeto básico mais simples, sem o detalhamento daquele previsto no art. 6º, IX, da Lei nº 8.666, de 1993. Segundo o § 1º do art. 4º-E, o principal documento de planejamento da contratação deve conter: a) declaração do objeto; b) fundamentação simplificada da contratação; c) descrição resumida da solução apresentada; d) requisitos da contratação; e) critérios de medição e pagamento; f) estimativa do preço; e g) adequação orçamentária.
Notemos que o projeto básico deve conter uma justificativa da contratação (art. 4º-E, § 1º, II), sendo que tal justificativa deve ser simplificada. É nessa justificativa onde se deve indicar os elementos referidos no art. 4º-B, lembrando que, conforme já mencionado, a presunção instituída nesse último dispositivo isenta o gestor de levar ao processo documentos que busquem comprovar a fundamentação exposta.
1.2.2 – Das regras sobre estimativa do preço e justificativa do preço na Lei nº 13.979
Em relação à estimativa do preço, ressaltamos que ela não se confunde com a justificativa do preço. Em regra, a estimativa deve constar no projeto básico simplificado, conforme exigência do art. 4º-E, § 1º, inciso VI, da Lei nº 13.979, de 2020. De acordo com esse dispositivo, a estimativa de preço deve ser levantada com os seguintes parâmetros: a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.
Tal estimativa tem significativa utilidade para os casos de licitação, mas nas situações de contratação direta, embora se trate de uma prática salutar, sua exigência deve ser mitigada, sobretudo numa situação de crise como a ora enfrentada. A grande ampliação da demanda por determinados insumos e aparelhos relacionados ao combate à COVID-19 geram extraordinária variação de preços, o que pode comprometer a eficácia do modo tradicional de estimar custos de forma paramétrica ou expedita.
Por isso, inclusive, que o § 2º do citado art. 4º-E dispensa a estimativa de preço em casos excepcionais. Já a justificativa de preço não é dispensada, pois ela se refere ao próprio preço definido concretamente no contrato. Assim, a Administração deve, minimamente, justificar os preços contratados, inclusive com a indicação da excepcionalidade da situação, que fundamenta eventuais preços elevados.
Ainda sobre a justificativa do preço, é importante mencionar que o § 3º do art. 4º-E da Lei nº 13.979, de 2020, desvincula o preço estimado do preço contratado, autorizando expressamente a Administração a contratar valores superiores ao estimado em decorrência das oscilações de mercado, tudo mediante justificativa nos autos.
1.2.3 – Da exigência de documentos de habilitação na Lei nº 13.979
Em relação aos documentos de habilitação, pelo texto do art. 4º-F[5] da Lei em estudo, pode-se concluir que eles devem ser exigidos nas contratações com base na Lei de Combate ao Coronavírus. O fato é que o art. 4º-F apenas dispensa a exigência de documentos de habilitação nos casos de restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço, o que nos faz presumir que nos demais casos esses documentos devem ser exigidos.
É importante destacar que a restrição de mercado a que alude o art. 4º-F da Lei 13.979, de 2020, se configura não apenas nos casos de restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço do objeto no mercado, mas também nas situações em que a Administração tem dificuldades em encontrar no mercado empresas em condições de preencher os requisitos de habilitação. Esta inovação legislativa permite o afastamento, excepcional, mediante justificativa, da apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou de outros requisitos de habilitação, ressalvando a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição.
Salientamos que a possibilidade de não exigir documentos de habilitação ali prevista não se limita aos comprovantes da regularidade fiscal e trabalhista, aplicando-se a quase toda a habilitação. Os únicos documentos que a o texto legal não admitiu expressamente o afrouxamento foram a comprovação de que futuro contratado não descumpre as leis trabalhistas em relação aos menores (art. 7º, XXXIII, da Constituição) e de regularidade com Seguridade Social (art. 195, § 3º, da Constituição).
Porém, chamamos a atenção para o fato de que, considerando a aplicação supletiva da Lei nº 8.666, de 1993, todos os documentos da habilitação podem ser dispensados, independentemente de restrição de mercado, nos casos de compra para pronta entrega, quais sejam, aquelas aquisições de execução imediata e integral sem obrigações futuras, aplicando-se o disposto no art. 32, § 1º, da Lei nº 8.666. Desse modo, nesses casos, independentemente do valor da contratação, é possível que a Administração dispense a exigência de regularidade fiscal e trabalhista, assim como os demais requisitos da habilitação, inclusive a regularidade com a Seguridade Social e a declaração de obediência ao inciso XXXIII do art. 7º da Constituição. Essa decisão será tomada no exercício do juízo de conveniência e oportunidade do gestor, sempre visando à segurança da contratação e à satisfação da necessidade de emergência pública.
Obviamente, mesmo com a autorização dada pelo legislador, não é, em princípio, conveniente abrir mão de requisitos que resguardem o cumprimento das obrigações pactuadas. Por outro lado, justifica-se o afastamento das exigências que não possuem tal função.
Neste prumo, entendemos que, para fornecimento de bens para pronta entrega, a despeito da regra incluída no artigo 4º-F da Lei nº 13.979, de 2020, pela Medida Provisória 926, por aplicação supletiva do §1º do art. 32 da Lei nº 8.666, de 1993, o afastamento das exigências habilitatórias pode se dar, inclusive, em relação à regularidade relativa à Seguridade Social e ao cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição, uma vez que tais exigências foram regulamentadas pelo legislador ordinário, que admitiu seu afastamento, junto com os demais requisitos, no já citado texto do §1º do art. 32 da Lei nº 8.666.
Ademais, para além de uma análise estrutural, urge uma análise econômica sobre a questão posta, que reflita sobre os efeitos das sanções legais sobre o comportamento, assemelhando as sanções aos preços, para fins de análise do comportamento das pessoas[6]. Esta reflexão impõe que se perceba que em um ambiente de demanda extraordinariamente ampliada, com poucos fornecedores e prestadores de serviços disponíveis para os contratos que se necessita com urgência, a exigência de filtros habilitatórios não identificados com a função dada pelo constituinte de garantia do cumprimento das obrigações (art. 37, inciso XXI, da Constituição), apenas geram a disfunção de restringir as opções do mercado.
A adequada compreensão do direito positivado não pode ser alcançada com desprezo aos fatos sociais ou a outros ramos do conhecimento; ao revés, ela exige do jurista sensibilidade à realidade posta, ao fenômeno da “práxis”[7]. Vale salientar que em matéria de Direito Público essa obrigação da interpretação da norma aderente à realidade foi legalmente consagrada no art. 20 da LINDB[8], dispositivo cuja inclusão se deu pela Lei nº 13.655, de 2018.
Para além disso, o atual momento de crise acentua a relevância do direito fundamental à vida e à saúde, impondo a eficiência e a redução de gargalos burocráticos que prejudiquem seu alcance.
Nesse diapasão, prestigiando uma ação eficiente por parte da Administração, notadamente em um momento emergencial como este, nada obstante a ausência de previsão expressa nas regras estabelecidas pela Medida Provisória 926, entendemos que pode o gestor, na utilização da dispensa de licitação prevista no art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020, aplicar a regra prevista no §1º do art. 32 da Lei nº 8.666, para, no caso de fornecimento de bens ou insumos para pronta entrega, deixar de exigir requisitos de habilitação, inclusive em relação à prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição[9].
Não sendo o caso de compra com entrega imediata e integral, no caso de mercado restrito, consoante regra prevista no art. 4º-F da Lei nº 13.979, a regularidade com a Seguridade Social e a declaração de obediência às regras constitucionais que tratam de trabalho de menores (art. 7º, XXXIII, da Constituição) devem ser exigidas a priori, mas caso a Administração tenha considerável dificuldade de encontrar fornecedor ou prestador de serviço que comprove esses elementos da habilitação, nada obstará sua dispensa, isso porque o bem maior no caso é o direito à saúde e à vida (art’s. 5º e 6º da Constituição), representados na ação de combate à pandemia[10].
1.2.4 – Da inaplicabilidade do art. 26 da Lei nº 8.666 à dispensa do art. 4º da Lei nº 13.979
Da análise das regras acima citadas, verifica-se que a Lei nº 13.979, de 2020, não excetuou a aplicação do art. 26 do procedimento de contratação por dispensa de licitação para o enfrentamento da emergência em decorrência do coronavírus. Conforme já dito, apesar de a norma em estudo ter trazido regras que demonstram a estrutura de um procedimento próprio para as contratações voltadas para o combate ao coronavírus, tal normatização não foi em nível suficiente para se afastar de todo a aplicação do regime geral nessa hipótese de contratação excepcional. Isto quer significar que não é possível se afirmar, a priori, a inaplicabilidade das normas previstas na Lei nº 8.666, de 1993, aos procedimentos de contratação fundados na Lei nº 13.979.
Conforme já dissemos aqui, no aspecto procedimental, deve-se recorrer à Lei nº 8.666, de 1993, nas contratações por dispensa de licitação destinadas ao enfrentamento do coronavírus apenas naquilo que não conflite, expressa ou implicitamente, com o procedimento e com a finalidade premente de proteção da saúde, previstos na Lei nº 13.979. Daí surge a questão: a dispensa prevista no art. 4º da Lei de Combate ao Coronavírus deve seguir o rito do art. 26 da Lei nº 8.666, de 1993?
Em nossa avaliação, a resposta é a de que o art. 26 da Lei Geral de Licitações Contratos – LGLC não se aplica, em caráter supletivo, necessariamente, à dispensa aqui analisada. Vejamos o que preconiza o art. 26 da Lei nº 8.666, 1993:
Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2º e 4º do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos.
Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso;
II - razão da escolha do fornecedor ou executante;
III - justificativa do preço;
IV - documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
Como se percebe do caput do art. 26, seus comandos não se aplicam às hipóteses de dispensa em geral. O texto legal não se refere às dispensas enquanto instituto, mas, sim, a hipóteses especificamente previstas nos §§ 2º e 4º do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, todos da Lei nº 8.666, de 1993. Assim, não há que se falar em sua aplicação à hipótese do art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020.
Nesse sentido, acompanhamos o entendimento cristalizado no Parecer nº 2/2020/CNMLC/CGU/AGU, no sentido de que a aplicação do art. 26 da Lei nº 8.666 seria cabível no caso da dispensa do art. 4º da Lei nº 13.979 apenas a título de analogia. Porém, as circunstâncias que envolvem a dispensa em estudo não se equiparam a nenhuma daquelas dispensas previstas na Lei nº 8.666, mesmo o caso da dispensa em caso de emergência ou de calamidade pública, prevista no art. 24, IV, da LGLC. Não é demais rememorar que o intuito da Lei nº 13.979, de 2020, é flexibilizar e desburocratizar para garantir agilidade na atuação estatal para a defesa dos direitos à saúde e à vida. Com efeito, entendemos que a Lei de Combate ao Coronavírus tem seu rito (simplificado e flexível) próprio.
A título de comparação, julgamos relevante apontar que, pela aplicação do art. 26 da Lei nº 8.666, o procedimento de contratação por dispensa de licitação no regime geral de contratação deve obedecer às seguintes etapas: a) ratificação do reconhecimento da dispensa pela autoridade superior; b) publicação do ato de dispensa no órgão de imprensa oficial; c) caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa; d) razão da escolha do fornecedor; e) a justificativa do preço contratado; e f) documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
Em uma comparação com a Lei nº 13.979, podemos verificar que algumas dessas fases do art. 26 da Lei nº 8.666 ou são completamente desarrazoadas ou já se aplicam à dispensa para o enfretamento da crise do coronavírus por força de outros mandamentos jurídicos. De pronto, ressaltamos que deixamos de fazer essa análise comparativa em relação ao item f do parágrafo anterior, pois entendemos que ele não tem aderência às circunstâncias fáticas da contratação ora analisada.
No que toca à ratificação, é cediço que se trata de um mecanismo de controle para a prática de uma postura excepcional, que é a contratação sem licitação. Todavia, no caso da Lei nº 13.979, cujo foco é a agilidade, percebemos que tal espécie de controle não é desejada. Reparemos que a Lei em estudo presume no seu art. 4º-B as condições fáticas que dão causa à contratação sem licitação. Consoante já asseveramos, tal presunção tem o efeito de desobrigar o gestor de provar os elementos da dispensa elencados no art. 4º-B mencionado. Pois bem, se é assim, se a Lei presume os fatos geradores da dispensa, não seria razoável imaginar que ela deseja um controle sobre tais pontos. Com isso, no regime da dispensa da Lei nº 13.979, de 2020, é suficiente que a autoridade com competência regimental para tanto reconheça a hipótese de dispensa, expondo de maneira simplificada no processo os elementos apontados nos incisos do art. 4º-B da referida Lei.
Nesse mesmo prumo, verificamos que, quanto à caracterização da situação de calamidade (Parágrafo único, I, do art. 26 da Lei nº 8.666), esse ponto também é resolvido pelo art. 4º-B, que trata da matéria de forma específica, fazendo incidir sobre esse requisito a presunção legal mencionada no paragrafo anterior (inciso I). Dessa forma, se há disciplinamento específico na Lei de Combate ao Coronavírus, não há que se falar em aplicação da norma do regime geral.
Quanto à razão da escolha do contratado, também acompanhamos aqui o Parecer nº 2/2020 da Advocacia-Geral da União. Nessa manifestação jurídica se aponta que a exposição da razão de escolha do contratado nas contratações diretas não decorre de dispositivo legal, mas sim do princípio constitucional da impessoalidade (art. 37 da Constituição) conjugado com o princípio republicano (art. 1º da Constituição). Assim, nas dispensas baseadas na Lei nº 13.979 deverá ser exposto nos autos a razão da escolha do contratado, mas não por força do previsto no art. 26 da Lei nº 8.666, e sim em razão dos cânones constitucionais mencionados.
Na questão da justificativa do preço, conforme já exposto no item 1.2.2 deste artigo, a Lei nº 13.979 também trouxe suas próprias regras, motivo pelo qual não se pode falar de analogia.
No ponto relativo à publicação na imprensa oficial, entendemos que essa é uma decorrência dos princípios da publicidade e da transparência, existindo tal dever independentemente de previsão legal específica. Ainda assim, o § 2º do art. 4º da Lei nº 13.979 trouxe regras específicas sobre a publicação das contratações fundadas na referida Lei, razão pela qual deixamos para abordar esse aspecto da publicidade com maior detalhe no item a seguir.
Dito isso, o que se verifica é que não há aderência entre o procedimento do art. 26 e a hipótese de dispensa da Lei de Combate ao Coronavírus, o que afasta por completo o cabimento de analogia. A rigor, aos nossos olhos, a aplicação desse dispositivo aos casos de dispensa aqui em estudo tem o potencial de frustrar o objetivo de combate às questões decorrentes do coronavírus, pelo que recomendamos o afastamento do procedimento previsto no art. 26 da Lei º 8666 das dispensas calcadas no art. 4º da Lei nº 13.979.
A despeito disso, temos ouvido relatos de gestores que indicam que alguns sistemas não autorizam o processamento da dispensa sem a ratificação da autoridade superior. Nesses casos, deve gestor procurar adequar seu procedimento aos parâmetros do sistema, isso como forma de adequar à aplicação da Lei nº 13.979 à prática do órgão ou entidade contratante.
1.2.5 – Da publicação da dispensa do art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020
Quanto à publicação do ato de reconhecimento da dispensa, ressaltamos que a Lei nº 13.979, de 2020, impõe uma superpublicização da dispensa de licitação para combate ao coronavírus. A Lei nº 13.979, de 2020, estabelece em seu art. 4º:
“§2º Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
O dispositivo suscita dúvidas quanto à necessidade de publicação na imprensa oficial. Em nosso entender, ao contrário do que ocorre com outros requisitos do processo de contratação, visando sua simplificação, não há razões para flexibilizar a regra de publicidade, ao contrário, há razões para ampliá-la. Por isso, parece-nos que a Lei nº 13.979, de 2020, não pretendeu substituir a publicação na imprensa oficial pela publicação em sítios oficiais, mas, sim, impor uma superpublicização das contratações destinadas ao combate ao coronavírus.
Isso se mostra especialmente importante quando falamos do pregão, cujo prazo de publicidade foi reduzido à metade em razão da necessária celeridade. Contudo, é fundamental que a competição seja preservada e, até mesmo, ampliada, para aumentar as chances de sucesso na licitação, o que inclui a obtenção de melhores preços. No que tange às contratações emergenciais, a maior publicidade se justifica, rigorosamente, pela necessidade de maior transparência neste período, em que inúmeras contratações emergenciais ocorrerão. A exceção, neste caso, ficaria por conta do valor da contratação, dispensando-se a publicação na imprensa oficial quando não superar os limites previstos nos incisos I e II da Lei nº 8.666, de 1993, na linha do que consta na Orientação Normativa nº 34, da AGU.
Acontece, entretanto, que essa não foi a interpretação adotada no multicitado Parecer nº 2/2020/CNMLC/CGU/AGU. Segundo essa manifestação jurídica, o § 2º do art. 4º da Lei nº 13.979 impõe um regime de publicidade próprio às contratações baseadas na referida Lei, de modo que não seria necessária a publicação na imprensa oficial. Em nossa visão, esse é um posicionamento passível de adoção apenas no caso da criação em âmbito nacional, ou ao menos por cada ente da federação, do sítio oficial específico na rede mundial de computadores a que faz referência o art. 4º, § 2º, da Lei de Combate ao Coronavírus.
Se tal sítio oficial específico, que congregue a publicação de todas as contratações fundadas na emergência do coronavírus, não for criado e for dispensada a publicação na imprensa oficial, as publicações dessas contratações estarão com a publicidade difusa, já que cada órgão ou entidade publicará em seu site suas contratações. Isso, sem dúvida, não atende aos parâmetros da transparência. Ou seja, a imprensa oficial é o meio que reúne toda a informação atinente à Administração Pública. Se alguém deseja saber algo a respeito da Administração Pública, sabe que deve buscar essa informação na imprensa oficial. Haver um meio de referência para a transparência é condição indispensável para obediência aos princípios mais caros no trato da coisa pública. Assim, se se pretende substituir a imprensa oficial no caso das contratações relacionadas ao coronavírus, alterando o ponto no qual se concentram as publicações, deve-se criar o meio adequado para tanto, que é o sítio específico de nível nacional, ou, ao menos, estadual, distrital ou municipal[11], onde seriam reunidas todas as contratações relacionadas ao combate à COVID-19[12]. Uma publicação difusa, embora disponibilizada na rede mundial de computadores, seria prejudicial à efetiva publicidade dos atos da Administração (art. 37 da Constituição).
2 – DA CONTRATAÇÃO POR INEXIGIBILIDADE DE FORNECEDOR EXCLUSIVO PROIBIDO DE CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO (ART. 4º, § 3º, da LEI Nº 13.979)
Julgamos conveniente fazer algumas considerações em relação ao § 3º do art. 4º da Lei de Combate ao Coronavírus. A despeito do § 3º referido está inserido no art. 4º, que trata de hipótese de licitação dispensável, ele é um típico caso de inexigibilidade de licitação.
No caso, a lei autoriza a contratação de fornecedora exclusiva de bem ou serviço mesmo que tal empresa esteja apenada com sanção de declaração de inidoneidade ou de suspensão do direito de licitar com o Poder Público. Nessa situação, a competição é inviável, de modo que não se pode falar de dispensa de licitação em tal hipótese. É caso cristalino de inexigibilidade. Entretanto, na linha do quanto consta no Parecer nº 2/2020/CNMLC/CGU/AGU, entendemos que eventual enquadramento da contratação baseada no § 3º do art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020, como uma dispensa de licitação deve ser encarada como uma “mera atecnia”, não comprometendo a legalidade do procedimento.
Cabe salientar que o permissivo legal em estudo, dada a gravidade da crise, merece intepretação que lhe confira maior efetividade em relação ao objetivo da norma, que é o de municiar a Administração Pública das ferramentas necessárias para combater a pandemia. Nesse diapasão, entendemos que o sentido do § 3º do art. 4º é o de relevar qualquer punição impeditiva do direito de licitar ou de contratar com a Administração Pública, independentemente do seu fundamento legal e da autoridade que a aplique. Assim, na situação em tela, devem ser relevadas sanções aplicadas ao fornecedor exclusivo com fundamento: a) no art. 87 da Lei nº 8.666, de1993; b) no art. 7º, da Lei nº 10.520, de 2002; c) no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa; e d) no art. 46 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, assim como em dispositivos das leis estaduais dos respectivos Tribunais de Contas[13].
3 – DA APLICAÇÃO DA DISPENSA DO ART. 4º DA LEI Nº 13.979, DE 2020, ÀS EMPRESAS ESTATAIS
Como é cediço, as estatais têm seu regime licitatório e contratual regido pela Lei nº 13.303, de 2016, e não mais pela Lei nº 8.666, de 1993. Por conta disso, é possível que surjam dúvidas sobre a aplicação das regras de contratação da Lei nº 13.979, de 2020 às licitações e contratações das estatais.
A dúvida deve ser superada. O regime excepcional de contratação admitido pelo artigo 4º da Lei nº 13.979, de 2020 é sim aplicável às estatais. Não há, no texto desta Lei, qualquer restrição subjetiva à aplicação de seu regime jurídico especial às estatais que contratem bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da COVID-19.
A aplicação desse regime contratual tem restrição dada apenas em seu aspecto objetivo, qual seja, sua utilização nas medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Ora, há diversas estatais que serão fundamentais nessas ações; cite-se, por exemplo, a EBSERH, importante estatal da área federal de saúde. Como admitir que estatais cuja vocação seja a atuação nesta área tão sensível, não pudessem utilizar um regime contratual excepcional criado para tal enfrentamento?
Sendo a Lei nº 13.979 especial em relação à Lei das estatais, aplicam-se suas regras às contratações das estatais que envolvam seu limite objetivo, qual seja, contratações necessárias ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da COVID-19. Este foi o entendimento também defendido por Renila Bragagnoli, segundo a qual “deve prevalecer as disposições da Lei nº 13.979/2020, por se tratar de medida especial e temporária que busca o pleno enfrentamento à pandemia do coronavírus”[14].
Por certo, as estatais, embora submetidas ao regime geral da Lei nº 13.303, de 2016, poderão adotar as regras da Lei nº 13.979, de 2020, nas ações de combate à COVID-19.
Há maior dificuldade hermenêutica, contudo, em relação à aplicação das regras do artigo 4-I da Lei nº 13.979 às estatais. Isto porque o regime contratual previsto pela Lei nº 13.303 optou por um regime contratual desprovido da prerrogativa extraordinária de alterações unilaterais.
Segundo o referido dispositivo, “a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato”.
Contudo, embora esta regra aparente trazer consigo a prerrogativa extraordinária de acréscimo ou supressões unilaterais, estranha ao regime jurídico da Lei nº 13.303, de 2016, na verdade, convém observar que o artigo 4º-I define que os contratos “poderão” prever cláusula que obriguem a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões em até 50%. Nessa “faculdade”, surgem duas constatações:
· Em primeiro: esta previsão contratual é facultativa e nem sempre deverá ser indicada. Bom perceber que tal disciplinamento de alteração unilateral pode ser compreendido como um risco para a empresa fornecedora, prejudicando a oferta, seja pela restrição da competitividade ou pela ampliação do custo. Necessário, então, que a administração pública analise economicamente o mercado fornecedor, para avaliar sobre a conveniência desta previsão contratual.
· Em segundo, materialmente, não haverá propriamente o exercício de prerrogativa extraordinária, pois a alteração unilateral, neste caso, dependerá de previsão contratual, o que a tornará, pragmaticamente, uma prerrogativa consensualmente admitida.
Assim, a grande diferença, em relação ao regime jurídico das estatais envolve, na verdade, a ampliação dos percentuais admitidos de alteração contratual.
4 – OS CONTRATOS DECORRENTES DA DISPENSA BASEADA NA LEI Nº 13.979
A Lei nº 13.979, de 2020, não trouxe muitas regras sobre os contratos assinados para o enfrentamento da crise do coronavírus. Quase todas as regras se referem à etapa de seleção do contratado.
Porém, antes de analisar essas normas, é preciso relembrar o que já asseveramos no item 1.1 deste artigo em relação à desvinculação da dispensa prevista na Lei nº 13.979 e aquela positivada no art. 24, IV, da Lei nº 8.666, de 1993. Tal observação é importante para deixar claro que não incide no caso dos contratos fundados no art. 4º da Lei de Combate ao Coronavírus a limitação da vigência contratual a 180 dias consecutivos e ininterruptos, contados da data da ocorrência da emergência. Isso porque esses contratos não se limitam a objetos que possam ser concluídos dentro dos 180 dias mencionados no art. 24, IV, da Lei nº 8.666, de 1993. Aqui vale a regra do art. 4º-H da Lei nº 13.979:
Art. 4º-H Os contratos regidos por esta Lei terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública.
Como se percebe no texto da norma, a duração inicial dos contratos decorrentes da dispensa prevista nesta Lei é de até 6 meses, prorrogáveis até enquanto durar a emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Vale aqui lembra que a regra do art. 24, IV, da Lei nº 8.666 impõe uma improrrogabilidade dos contratos decorrentes de dispensa baseada neste último dispositivo. Isso deixa claro que o regime da Lei nº 13.979, de 2020, é completamente incompatível com o do inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666.
Disso se chega a outra conclusão, uma vez assinado um contrato com base na dispensa do art. 4º da Lei de Combate ao Coronavírus, não precisa a Administração iniciar uma licitação para suprir necessidade futura no caso de ser previsível que aquele serviço ou fornecimento deverá se perdurar mais do que os 6 meses previstos na vigência inicial do contrato (art. 4º-H). Imaginemos, por exemplo, que seja instalado um hospital de campanha. Para a limpeza desse hospital foi contratada uma empresa por dispensa de licitação baseada no art. 4º da Lei nº 13.979. Esse contrato poderá ter duração inicial de até 6 meses, podendo ser prorrogado até quando durar a necessidade de manutenção do hospital para os atendimentos das emergências decorrentes do coronavírus.
Destacamos que esses contratos regidos pelo art. 4º-H da Lei em comento poderão ser de serviço e de fornecimento de bens e insumos de forma contínua. Ou seja, não incide aqui a regra do art. 57, II, da Lei nº 8.666, 1993, que limita os contratos de execução contínua aos casos de serviço.
Por último, esses contratos da Lei nº 13.979, desde que expressamente previsto no instrumento, poderão ser alterados unilateralmente pela Administração para acréscimos ou supressões de até 50% do valor inicial atualizado do contrato (art. 4º-I[15]).
[1] Diversos dos dispositivos da Lei nº 13.979, de 2020, foram alterados ou incluídos pelas Medidas Provisórias nº 926 e 928, ambas de 2020. Essas normas provisórias ainda não foram aprovadas pelo Congresso Nacional. Desse modo, são dispositivos provisórios, que se não forem aprovados merecerão regulamentação das relações jurídicas deles decorrentes pelo Congresso Nacional, de acordo com § 6º do art. 62 da Constituição.
[2] A flexibilização, a simplificação e a desburocratização são expressamente mencionadas na exposição de motivos da Medida Provisória nº 926/2020.
[3] Observa-se, a propósito, que a Lei 13.979, de 2020, traz, em seu Art. 4º - I, que ”a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato”.
[4] Nessa mesma linha, Marçal Justen Filho oferece o seguinte exemplo para a dispensa com vínculo indireto ao combate da COVID-19: “Imagine‐se que, para enfrentar a pandemia, ocorra a suspensão do atendimento presencial em repartições públicas. Em decorrência, há de se assegurar o teleatendimento, por meio de call centers. Se essa solução exigir uma contratação administrativa, configura‐se o vínculo de pertinência exigido para a dispensa de licitação. Isso porque a contratação destina‐se ao combate à pandemia” (JUSTEN FILHO, Marçal. Um Novo Modelo de Licitações e Contratações Administrativas? Disponível em: <<http://jbox.justen.com.br/s/9SPYwWsP7W66s8a>>. Acesso em: 29/3/2020).
[5] Art. 4º-F Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição.
[6] COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & Economia. Porto Alegre: Bookman, 2010. Pág. 25.
[7] BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri,SP: Manole, 2007. P. 44.
[8] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
[9] Neste sentido, vale a leitura do Parecer Referencial nº 14/2020/CONJUR-MS/CGU/AGU.
[10] Cabe aqui uma nota para asseverar que os elementos de habilitação relativos à proteção dos requisitos de trabalho de menores (art. 7º, XXXIII) e à regularidade fiscal junto à Seguridade Social (art. 195, § 3º) buscam resguardar valores constitucionais. Porém, as medidas de flexibilização das normas de contratação pública também buscam salvaguardar direitos constitucionais básicos, como a saúde e a vida (art’s. 5º e 6º). No atual momento de crise, esses últimos são os cânones constitucionais que têm prevalecido, sobretudo no que toca às questões fiscais, como são os exemplos do Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e a Medida Cautelar concedida pelo Min. Alexandre de Moraes na ADI nº 6357. Nesta última decisão, o Min. Alexandre Moraes relativizou preceitos básicos da Lei de Responsabilidade Fiscal, que têm espeque no capítulo da Constituição relativo às finanças públicas (art. 163 e seguintes), para garantir recursos voltados para o combate à situação de crise sanitária e econômica em que se encontra o país.
[11] Nesse ponto, mencionamos que o Estado de Minas Gerais, pela sua Controladoria-Geral, criou um campo dentro do seu Portal da Transparência no qual reúne todas as contratações voltadas para o combate ao coronavírus. Segue o link: http://cge.mg.gov.br/noticias-artigos/724-o-portal-da-transparencia-de-mg-disponibiliza-para-a-consulta-e-controle-social-dos-cidadaos-e-cidadas-todas-as-contratacoes-emergenciais-destinadas-ao-enfrentamento-do-covid-19-no-estado.
[12] Lembramos que essa lógica de reunião da publicação das contratações em um único meio de referência é a que fundamenta a pretensa criação do Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, previsto no art. 174 do Projeto de Lei nº 1.292, de 1995, que objetiva implantar novas regras de licitação e contrato no Brasil. A lógica de reunião de todas as publicações em um meio é condição para a efetiva publicidade.
[13] Cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Um Novo Modelo de Licitações e Contratações Administrativas? Disponível em: <<http://jbox.justen.com.br/s/9SPYwWsP7W66s8a>>. Acesso em: 29/3/2020.
[14] BRAGAGNOLI, Renila. Ponderações sobre a utilização da Lei nº 13.979/2020 pelas empresas estatais. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/ponderacoes-sobre-a-utilizacao-da-lei-no-13-979-2020-pelas-empresas-estatais/. Acesso em: 30/03/2020, às 16:05.
[15] A redação do dispositivo é a seguinte: Art. 4º-I Para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.