DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO ADMINISTRATIVO E APLICAÇÃO DE SANÇÕES NO CONTEXTO DA PANDEMIA COVID-19
Gabriela Pércio
Advogada, especialista em Direito Administrativo, Mestre em Gestão de Políticas Públicas, consultora em licitações e contratos, autora da obra "Contratos Administrativos - Manual para Gestores e Fiscais, incluindo Sistema de Registro de preços, RDC e Lei das Estatais", 3ª ed., 2020, Editora Juruá.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Vivemos momentos em que o conhecimento técnico e empírico adquirido ao longo de nossa vida profissional já não é suficiente para fundamentar opiniões e respaldar decisões. Apesar de anos de estudo e de experiência em contratações públicas, o que nos tem sido exigido, nestes últimos dias, é o enfrentamento, sob outra ótica e movidos por outros objetivos, das mesmas questões apresentadas em tempos de normalidade. Desde a decretação da emergência decorrente da pandemia COVID-19 estamos entre aplicar o que sabemos, não aplicar o que sabemos e, ainda, criar novas compreensões que permitam encontrar soluções inéditas, com a brevidade necessária.
É neste cenário de incertezas e responsabilidade ampliada que autoridades e agentes públicos que atuam nos processos de contratação enfrentarão, nos próximos meses, situações que, já em condições normais de temperatura e pressão, não serão de fácil deslinde. Entre elas, a avaliação da caracterização de descumprimento total ou parcial de contratos firmados antes e depois da pandemia, em razão da Lei 8.666/93 e da Lei 13.979/20, com consequente aplicação de sanções e possibilidade de rescisão.
AS PARTICULARIDADES DA EXECUÇÃO CONTRATUAL DURANTE A PANDEMIA COVID-19
Ao celebrarem um contrato, as partes se obrigam a executar as respectivas prestações considerando suas condições particulares, vigentes naquele dado momento. A partir da formalização do ajuste, impera o princípio da pacta sunt servanda, impondo-se-lhes a fiel observância sob pena de consequências para o descumprimento. A rigor, apenas a superveniência de eventos para os quais a parte não houver concorrido e que não puderem ser evitados poderão desonerá-la de sua obrigação, evitando a aplicação das penalidades previstas. A força maior e o caso fortuito, definidos indistintamente pelo Código Civil de 2002 como “o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”, não implicarão em responsabilização de qualquer das partes, salvo se o contrato disciplinar diversamente.[1]
No âmbito dos contratos administrativos, a Lei 8.666/93 leva em conta tais premissas em algumas disposições expressas:
a) os inc. II e V do §1º do art. 57 autorizam a prorrogação dos prazos de início, execução e entrega em decorrência de fatos excepcionais ou imprevisíveis estranhos à vontade das partes e do impedimento da execução em decorrência de fato ou ato de terceiro;
b) o art. 65, II “d” e §5º prevê a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro inicial em caso de imprevisibilidades que retardem ou impeçam a execução inseridas em álea econômica extraordinária e extracontratual, incluindo caso fortuito, força maior e fato do príncipe;
c) o art. 86 prevê aplicação de multa apenas se o atraso for injustificado;
d) os incs. IV e V do art. 78 condicionam a rescisão à ausência de justa causa;
e) o inc. XVII do art. 78 prevê a rescisão contratual decorrente de força maior ou caso fortuito que se revelem impeditivos da execução.
Todas essas normas se destinam a regular situações excepcionais, não esperadas ou desejadas quando o contrato administrativo é celebrado. É mediante sua aplicação, entre outras, que eventuais descumprimentos serão pontualmente resolvidos. Em um cenário de normalidade, ainda, é possível realizar a gestão de riscos, contemplando certos eventos entre aqueles merecedores de tratamento, e calibrar, se for o caso, a responsabilidade das partes pelos riscos econômico-financeiros do negócio.
Contudo, nas circunstâncias da pandemia COVID-19, aumentarão as chances de descumprimento contratual e as dificuldades de realizar a gestão de riscos, pela falta de alternativas consideradas eficazes ou pela natureza heterodoxa das alternativas identificadas. Não há como pensar no descumprimento do contrato como uma ocorrência excepcional, inesperada, remota ou isolada, passível de ser controlada ou minimizada em sede de gestão e fiscalização. Mesmo bons fornecedores estarão sujeitos a condições totalmente anormais de cumprimento, sem saber como proceder diante de dificuldades diversamente categorizadas.
Nesse contexto, não haveremos de nos furtar, em cada caso concreto, à compreensão da atuação administrativa sob o enfoque de alguns elementos:
a) o alcance das finalidades do contrato;
b) as dificuldades enfrentadas pelo contratado;
c) as medidas de fomento à economia implementadas pelo Estado;
d) um ambiente de negócio seguro a bons fornecedores e
e) o dever de aplicar sanções.
ASPECTOS DO CONTRATO ADMINISTRATIVO SENSÍVEIS À PANDEMIA
É evidente que, durante a pandemia, o cumprimento dos contratos em curso e até mesmo dos próximos, celebrados em virtude da Lei 13.979/2020, acabarão sendo afetados.
Algumas possíveis consequências:
a) Impossibilidade de entregar o bem ou insumo acordado;
b) Impossibilidade de cumprir prazos de execução e entrega;
c) Impossibilidade de continuar prestando o serviço ou executando a obra;
d) Perda da regularidade fiscal;
e) Queda dos níveis de qualidade do serviço;
f) Impossibilidade de cumprir com as imposições administrativas para acréscimos quantitativos.
Esse rol não traz novidade em si. Em qualquer caso, caberá a instauração do competente processo para apuração da infração e posterior aplicação da sanção, resguardando o direito da empresa contratada ao contraditório e à ampla defesa. Contudo, a análise dos fatos no contexto da pandemia demandará novas construções, especialmente jurídicas, para que a melhor decisão seja tomada.
AS DIFICULDADES NA CARACTERIZAÇÃO DO DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL PASSÍVEL DE PUNIÇÃO
Para que haja caracterização de descumprimento contratual passível de aplicação de sanção, é necessário que o contratado tenha, minimamente, agido com culpa, ou seja, com negligência, imprudência ou imperícia. Não há dúvidas quanto a isso. Contudo, estima-se que, no contexto da pandemia, haverá situações em que a presença ou ausência de culpa e a gravidade da conduta não estarão tão evidentes. Imaginem-se, por exemplo, as seguintes hipóteses, algumas das quais já podem ser verificadas concretamente[2]:
a) o fornecedor não consegue cumprir o prazo de entrega, diante de comprovadas dificuldades logísticas, não havendo previsão para o cumprimento do contrato. Será preciso compreender, durante o processo, se o fornecedor tomou todas as providências em tempo hábil ou se, eventualmente, por imprudência, já teria assumido um risco de atraso;
b) o fornecedor, em atraso injustificado antes da pandemia, mas com possibilidade de entrega, fica impedido de cumprir o contrato em razão dos novos acontecimentos, migrando, pois, do atraso para o inadimplemento total. Será preciso muito cuidado na análise dos fatos, para que a infração seja corretamente caracterizada: embora a mora anterior esteja anteriormente caracterizada, o inadimplemento culposo, não;
c) o regime de teletrabalho ou home office implantado pela empresa contratada como medida de urgência, em razão das determinações de isolamento social, impacta diretamente no nível de qualidade da prestação de serviços, o que impossibilita a auferição de 100% do pagamento ou, eventualmente, o alcance do nível mínimo de qualidade previsto no contrato. A possibilidade de aplicação de sanção em decorrência dos resultados inferiores ao nível mínimo de qualidade aceitável poderá restar prejudicada em razão da ausência de culpa da contratada, cabendo à Administração avaliar a conveniência e oportunidade da manutenção do contrato, realizando os necessários ajustes no IMR, se for o caso;
d) em razão da impossibilidade de executar o contrato por conta das medidas de isolamento social determinadas pelo governo, a empresa deixa de prestar os serviços ou executar a obra. Diante da impossibilidade de exigir outra conduta por parte do particular, não caberá falar em aplicação de sanção, mas em suspensão da consensual da execução contratual, conforme Parecer Referencial 18/2020/CONJUR/MS/CGU/AGU, da lavra de Ronny Charles Lopes de Torres[3];
e) a empresa inscrita no SIMPLES, com negociação para pagamento parcelado de valores vencidos, deixa de realizar o pagamento das parcelas para preservar o seu caixa, o que implicará em irregularidade, já que houve apenas a prorrogação do vencimento das próximas competências; ou, ainda, empresa não inscrita no SIMPLES, diante da brusca queda de faturamento, opta pelo não pagamento temporário dos tributos devidos como medida necessária à sobrevivência à crise e ao pagamento regular de seus empregados. A irregularidade fiscal da contratada, verificada antes do pagamento, não poderá, rigorosamente, gerar seus efeitos tradicionais, de determinação de prazo para regularização sob pena de aplicação de sanção e rescisão.
Há inúmeras situações concretas passíveis de serem vivenciadas pelas empresas contratadas nesses momentos de pandemia, as quais deverão ser cuidadosamente consideradas para o fim de caracterização da infração contratual e consequente aplicação de sanção. Cita-se como objeto de especial atenção o cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da empresa contratada para prestar serviços terceirizados com cessão de mão de obra em regime de dedicação exclusiva. As verificações realizadas periodicamente pelo fiscal de contrato, a rigor, padronizadas de acordo com as regras da Instrução Normativa nº 5/17-MP, deverão estar em coordenação com as novas normas de proteção ao emprego e com a realidade de cada empresa contratada, na busca pela manutenção de suas atividades.[4] Toda prudência será necessária diante de uma aparência de irregularidade, sendo o diálogo, sempre, a melhor alternativa.
Outro aspecto do qual se cogita é a eventual impossibilidade de atendimento, pela empresa contratada, de determinações unilaterais de acréscimos quantitativos, mesmo que esteja a tanto legalmente obrigada, nos termos do art. 65, II da Lei 8.666/93[5] ou do art. 4º-I da Lei 13.979/20[6]. É perfeitamente possível que o contratado não possua, no momento da solicitação, condições materiais de execução do termo aditivo, mesmo que mantido o equilíbrio econômico financeiro devido. A par de qualquer ponderação sobre a limitação circunstancial do exercício de prerrogativas pela Administração contratada, parece claro que, ocorrendo tal situação e estando demonstrando no processo administrativo a conduta escusável do contratado, estarão afastados a possibilidade e o dever de aplicar sanções.
Nessa linha, até mesmo situações que configurariam, rigorosamente, descumprimento de contrato poderão ser ensejadoras de análise diferenciada voltada não apenas à aplicação objetiva das normas legais e contratuais, mas à identificação de uma solução especialmente aderente ao momento atual.
A RELAÇÃO DIRETA ENTRE O ATRASO NO PAGAMENTO E O INADIMPLEMENTO: INAPLICABILIDADE CIRCUNSTANCIAL DA PRERROGATIVA IMPLÍCITA NO ART. 78, INC. XV DA LEI 8.666/93
É corrente a afirmativa de que ao contratado não cabe evadir-se do cumprimento do contrato alegando atraso de pagamento por parte da Administração. Aliás, nas licitações em que se realiza a verificação das condições econômico-financeiras, não é incomum o pensamento de que os índices aferidos no momento da habilitação seriam, supostamente, suficientes para garantir a solidez da empresa durante toda a execução do contrato. A experiência prática já demonstrou, todavia, tratar-se de um evidente engano.
A prerrogativa administrativa de atrasar pagamentos por até 90 dias, implícita no inc. XV do art. 78 da Lei 8.666/93[7], a qual originariamente deveria se prestar a socorrer a Administração diante de situações excepcionais, acabou por produzir um dos maiores efeitos adversos do sistema normativo atual, ante seu uso totalmente desmedido: a elevação dos preços motivada pela falta de confiança.
No contexto da pandemia COVID-19, a cultura do atraso nos pagamentos adquire relevância ímpar, reduzindo gravemente as chances de descumprimento do contrato. Em meio à retração econômica, empresas sem fluxo de caixa não terão condições de continuar a executar suas obrigações sem pagamento, ainda que sob pena de caracterização de inadimplemento e aplicação de sanção. Repare-se que a reflexão não é sobre o direito do contratado de, mesmo na calamidade pública, suspender a execução após os 90 dias de atraso, mas sobre a impossibilidade de cumprimento do contrato sem pagamento, durante esse período de inadimplemento consentido da Administração contratante, considerando as circunstâncias particulares da pandemia COVID-19.
É fundamental compreender que os esforços econômicos realizados pelas empresas contratadas para cumprimento dos prazos e atendimento das demandas serão maiores, muitas delas dependendo de pagamento antecipado para continuar em condições de execução.[8] Havendo dificuldades de pagamento, especialmente em decorrência de redirecionamento de recursos a outras ações, o diálogo deverá ser imediatamente estabelecido com a contratada em busca de uma solução intermediária, que prestigie a boa-fé contratual.
OS AGENTES ENVOLVIDOS E SUAS RESPONSABILIDADES
Diretamente implicados nessas questões estarão os agentes designados como gestores e fiscais de contrato, já que estão sob seu encargo as anotações relativas a ocorrências, a avaliação dos impactos da possível infração nos objetivos do contrato e a prestação de informações necessárias à instrução do processo de aplicação de sanções, que poderá culminar em uma rescisão. Contudo, outros agentes exercerão papel fundamental, sendo eles: o advogado público, assessor jurídico ou procurador municipal, conforme o caso, e a autoridade competente para aplicar a sanção e rescindir o contrato.
Com efeito, não compete ao gestor ou ao fiscal do contrato decidir o que deverá ser feito, nem orientar de forma definitiva à tomada de decisão. É certo que deverão ser ouvidos para todo e qualquer fim, como já é de praxe nesses procedimentos, bem como estar mais atentos à necessidade de caracterizar todos os fatos no processo, indispensáveis à justa avaliação da questão. Entretanto, a definição sobre a aplicação ou não da sanção não lhes cabe.
Diante de situação especialmente implicada ou agravada pela pandemia, a análise jurídica parece-nos indispensável, ainda que, rigorosamente, trate-se de parecer facultativo, nos termos do art. 38, inc. VI da Lei 8.666/93. A avaliação dos fatos e a conclusão pela existência ou não da culpa deverão ocorrer de forma desapegada de standards, decisões anteriores e doutrina especializada construídas a luz de outras circunstâncias, numa coordenação fina entre conhecimento técnico e prudência na ponderação de princípios, na compreensão dos fatos dentro da situação pandêmica, na subsunção desses mesmos fatos às normas legais e às regras contratuais.
À autoridade superior competirá, com base nos documentos e informações dos autos, decidir se a conduta praticada configura infração passível de punição. O desafio, contudo, não ocorrerá diante de fornecedores mau intencionados, mas daqueles que, de alguma forma, se viram impossibilitados de cumprir seus compromissos, em decorrência, até mesmo, da negligência na condução de seus negócios em meio à crise. O desafio será, então, decidir tais casos de uma forma particularizada, aplicando uma lógica decorrente das circunstâncias excepcionais verificadas, carecedoras de tratamento compatível com a realidade dos fatos. Assim é que, por exemplo, não se afasta a possibilidade de, usando da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma motivada, aplicar atenuantes não previstas originalmente no contrato ou mesmo deixar de aplicar sanções em certos casos, visando a preservação da saúde financeira ou da imagem de fornecedor notadamente idôneo, condutas que não seriam cogitadas em uma situação de normalidade.
É importante que se diga: a premissa de aplicação objetiva da sanção diante da comprovada infração permanece indelével, não havendo, em situações de normalidade, que se falar em discricionariedade administrativa. Segue firme, portanto, a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho: “caracterizada a infração, deve ser a sanção”[9]. O que se vê, excepcionalmente para o momento atual, é a possibilidade de facultar ao gestor decidir consoante sua avaliação dos fatos, flexibilizando-se o rigor sobre o controle de uma atuação administrativa destinada a minimizar os prejuízos sofridos pela contratada, levando em conta que o objetivo da aplicação da sanção administrativa não é punir, nem proporcionar proveitos econômicos aos cofres públicos, mas desestimular condutas reprováveis[10], o que merecerá, sem dúvida, avaliação específica no contexto da pandemia.[11]
Não se trata, advirta-se, de um cheque em branco ao gestor, havendo, sim, risco de desvios de conduta, com quebra ao princípio da moralidade e da impessoalidade. Contudo, ele será controlado pela necessária motivação do ato, no contexto da aplicação dos art. 20 da LINDB.
COMO E QUANDO A AUTORIDADE PODERÁ ATENUAR A SANÇÃO OU DEIXAR DE APLICA-LA: OS ARTS. 20 E 22 DA LINDB
Existirão situações em que a aplicação da sanção prevista no contrato se mostrará inadequada. Isso poderá acontecer tanto nos contratos que já estavam em vigor antes da pandemia, quanto naqueles celebrados em razão dela, que poderão ter seu prazo inicial de seis meses prorrogados pelo período necessário à contenção da emergência.[12]
É possível, por exemplo, que uma determinada empresa prestadora de serviços, por imperícia no manejo das soluções trabalhistas colocadas à disposição por meio das Medidas Provisórias editadas, tenha sofrido desorganização tal em suas atividades a ponto de não conseguir atender aos prazos de entrega. Rigorosamente, deveria ser multada pela mora. Contudo, razoavelmente, não seria equivocado eximi-la de mais esse encargo nesse momento. Outro exemplo: em um contrato emergencial celebrado nos termos da Lei 13.979/20 para o fornecimento de certos equipamentos, a empresa não consegue entregar a marca indicada pelo fato de que, em razão da quebra da cadeia produtiva, o fabricante deixou de fabrica-los – mas em momento anterior ao contrato emergencial, o que caracterizaria, em última análise, negligência da empresa ao assumir uma obrigação que já não lhe era possível cumprir. A solução tradicional, de considerar a empresa inadimplente, aplicar-lhe a sanção prevista no contrato e partir para uma nova contratação com terceiro não parece cabível, mostrando-se mais razoável diante das circunstâncias admitir a entrega de equipamento de outra marca, igualmente satisfatória, pelo mesmo preço, pago à contratada sem qualquer desconto.
É crucial destacar que não se está a defender que a peculiar situação da pandemia autoriza o relaxamento da atuação punitiva. Conforme esclarecido no início deste trabalho, não se deixará de punir – ao contrário, isso deverá ser feito com rigor – aqueles fornecedores que, nesse mesmo contexto, forem merecedores da sanção. Assim, devem ser estritamente observados os arts. 5º[13], 20[14] e 22[15] do Decreto 4.657/42, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alterada pela Lei 13.655/16.
A diretriz do referido art. 5º, de aplicar a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências do bem comum, tal como ensina Marçal Justen Filho, não se restringe à atividade judicante, sendo um despropósito pensar que outras autoridades investidas de competência decisória estariam dispensadas de decidir considerando o bem comum.[16] No contexto da pandemia COVID-19, não há como negar à Administração Pública, que executa políticas públicas por meio de seus contratos, a responsabilidade de considerar o fim social e o bem comum nas decisões a eles relacionadas, especialmente em circunstâncias tão peculiares como as agora enfrentadas.
Em linha de coerência, a vedação do art. 20 à decisão com base em valores jurídicos abstratos e a necessidade, prevista no seu parágrafo único, de demonstrar na motivação a adequação da medida, inclusive face a possíveis alternativas, obrigará o gestor a analisar cuidadosamente a situação concreta e apontar as suas razões de decidir considerando as consequências práticas, particularmente influenciadas pela pandemia COVID-19.[17]
Por fim, art. 22 obriga ao controlador que, ao avaliar a decisão administrativa, considere as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente, bem como os obstáculos e as dificuldades reais e as exigências das políticas públicas a seu cargo, o que reforça a importância de uma motivação adequada e suficiente e, ao mesmo tempo, confere ao gestor, sob o resguardo do art. 28 da mesma LINDB[18], a necessária tranquilidade para tomar a decisão que lhe parecer correta diante do caso concreto.
CONCLUSÕES
A aplicação de sanções pela Administração pública a seus contratados faltosos, além de ser um dever-poder inarredável, é uma ferramenta de extrema importância para criar um ciclo saudável para a compra pública. Fornecedores sancionados acabarão afastados das novas contratações, voluntariamente ou forçosamente, pelos efeitos das sanções, ou aprenderão a lição e não mais voltarão a cometer os mesmos erros.
Em uma situação tal como a vivida atualmente, em que não se consegue definir com precisão onde termina o fortuito e começa a culpa, por diversas vezes o gestor público terá dúvidas: aplicar a sanção nos termos do contrato, aplicar uma sanção mais leve, não aplicar a sanção? Nesses casos, entende-se não somente possível, como devida uma atuação pautada na razoabilidade e na proporcionalidade, com base em fatos específicos e nas consequências concretas das alternativas disponíveis, ainda que destoe do modus decidendi adotado em tempos de normalidade. Alerta-se, contudo, para a necessidade de seguir à risca o dever de motivar e de construir a motivação nos exatos termos do art. 20, parágrafo único da LINDB e de seu decreto regulamentador, nº 9830/19.
BIBLIOGRAFIA
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias: infrações tributárias; sanções tributárias, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998.
FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.
_______________. Infrações e sanções administrativas. Enciclopédia jurídica da PUCSP, divulgado em https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/107/edicao-1/infracoes-e-sancoes-administrativas, acesso em 8/4/2020.
FLEURY, Felipe Blanco Garcia. As infrações e sanções administrativas aplicáveis a licitações e contratos (Leis 8.666/93, 10.520/02, 12.462/11 e 12.846/13), disponível em https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/7041/1/Felipe%20Blanco%20Garcia%20Guimaraes%20Fleury.pdf, acesso em 8/4/2020.
JUSTEN FILHO, Marçal. “Art. 20 da LINDB - Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas.” Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 38. 13-41, nov. 2018.
[1] “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
[2] Todas as hipóteses arroladas são meramente exemplificativas e somente podem ser utilizadas, para qualquer fim, em tese. Qualquer caso concreto similar deverá ser avaliado especificamente, considerando as suas peculiaridades.
[3] Divulgado em https://ronnycharles.com.br/e-possivel-a-suspensao-de-contratos-administrativos-em-decorrencia-do-estado-de-calamidade-publica/.
[4] Acerca das medidas, confiram-se os excelentes trabalhos de Thiago Zagatto - “Impactos da Medida Provisória 927/202 nas relações de trabalho e seus reflexos nas terceirizações realizadas pela Administração Pública”, divulgado em https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=0d9272167314e0b3f6a7ed87648a7126) e de Flaviana Paim – “Tudo o que você precisa saber sobre o programa emergencial de manutenção do emprego e da renda previsto na MP 936/20”, divulgado em http://flavianapaim.com.br/index.php/2020/04/03/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-programa-emergencial-de-manutencao-do-emprego-e-da-renda-previsto-na-medida-provisoria-n-936-20/
[5] “Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
I - unilateralmente pela Administração:
b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei;”
[6] “Art. 4º-I. Para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.”
[7] “Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;”.
[8] Especificamente para os contratos celebrados com base na Lei 13.979/20, o Parecer nº00254/2020/CONJUR-MS/CGU/AGU reconheceu a possibilidade de prever pagamento antecipado nos contratos administrativos, com a finalidade “mitigar riscos, incrementar a competitividade, fomentar a ampliação da oferta dos insumos e aparelhos necessários, além de induzir redução dos preços”. (Disponível em https://ronnycharles.com.br/e-possivel-a-previsao-contratual-de-antecipacao-de-pagamento-diante-da-necessidade-de-medidas-de-enfrentamento-ao-covid-19/)
[9]COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias: infrações tributárias; sanções tributárias, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998.
[10] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.
[11] Tendo em vista os objetivos do presente artigo, optou-se por não realizar uma abordagem técnica à luz dos institutos da exclusão da ilicitude e da culpabilidade, do Direito Penal, nem seus possíveis reflexos nos aspectos formais do processo administrativo para apuração da infração contratual.
[12] Lei 13.979/20, Art. 4º-H: “Os contratos regidos por esta Lei terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública.”
[13] “Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
[14] “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”
[15] “Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.”
[16] JUSTEN FILHO, Marçal. “Art. 20 da LINDB - Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas.” Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 38. 13-41, nov. 2018.
[17] Lembrando que o Decreto 9.830/19 regulamentou os arts. 20 a 30 da LINDB e indicou as diretrizes para a motivação e a decisão, nos seus arts. 2º e 3º.
[18] Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.