FORMALIDADES DO “NOVO” PREGÃO ELETRÔNICO:

INTEGRAÇÃO A POSTERIORI DA DOCUMENTAÇÃO DE HABILITAÇÃO E O LIMITE TEMPORAL DE ATUALIZAÇÃO DO SICAF

 

 

Rafael Sérgio de Oliveira

@rafaelsergiodeoliveira

Procurador Federal da AGU. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas. Mestre em Direito. Pós-Graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa. Participante do Programa Erasmus+ na Università degli Studi di Roma. Fundador do Portal L&C. Palestrante e Professor em diversos cursos de pós-graduação no Brasil. Co-autor, juntamente com Prof. Victor Amorim, do livro Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020.

Victor Amorim
@prof.victor.amorim

Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor dos cursos de pós-graduação do IDP, Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do Instituto Goiano de Direito (IGD). Co-autor, juntamente com Prof. Rafael Sérgio de Oliveira, do livro Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020. Pregoeiro do Senado Federal. Site: www.victoramorim.com

 

 

Em nossa atividade cotidiana de cursos e conferências virtuais, temos recebido diversos questionamentos quanto à nossa compreensão acerca das possibilidades de integração a posteriori da documentação de habilitação e de limite temporal de atualização do SICAF em face do que dispõe o art. 26 do Decreto Federal nº 10.024/2019. 

Para tanto, cumpre salientar que a questão é enfrentada, com o devido rigor e profundidade, em nossa obra “Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019”, lançada em 2020 pela Editora Fórum[1].

Dessa forma, com vistas a compartilhar o conhecimento, passamos, a seguir, a reproduzir o conteúdo de parte das páginas 148-150 e 203-206 do livro: 

 

A INTEGRAÇÃO DOS DOCUMENTOS DE HABILITAÇÃO A PARTIR DO SICAF E SISTEMAS ASSEMELHADOS

Consoante expressa previsão do §2º do art. 26,

Os licitantes poderão deixar de apresentar os documentos de habilitação que constem do Sicaf e de sistemas semelhantes mantidos pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, quando a licitação for realizada por esses entes federativos, assegurado aos demais licitantes o direito de acesso aos dados constantes dos sistemas.

 

Da leitura da disposição regulamentar depreende-se que a comprovação do cumprimento dos requisitos de habilitação no pregão eletrônico dá-se por meio do conjunto da documentação constante do SICAF e daquela anexada na oportunidade de cadastramento da proposta, a que alude o caput do art. 26.

A bem da verdade, considerando que, nos termos da Instrução Normativa nº 03/2018, admite-se o autocadastro do fornecedor e a anexação de documentos de todos os níveis de habilitação (jurídica, fiscal, trabalhista, técnica e econômico-financeira), não só seria viável, como bem provável, que o licitante não tivesse a necessidade de anexação de documentos quando do cadastro da proposta, uma vez que toda a documentação pertinente já constaria, de antemão, em seu registro no SICAF.

De todo modo, o fato é que o Decreto nº 10.024/2019 optou por permitir a composição conjunta da documentação de habilitação a partir de duas bases distintas: o SICAF e os arquivos anexados no próprio Comprasnet no ato de cadastramento da proposta.

Contudo, se considerarmos que, em termos operacionais, o Comprasnet e o SICAF, embora complementares, são sistemas distintos e autônomos, o novo regulamento não faz nenhuma ressalva nem estabelece limites temporais de atualização do SICAF por parte do fornecedor, inclusive no curso da própria licitação.

Dessa forma, desponta a seguinte questão: seria juridicamente admissível a atualização do SICAF por parte do licitante, com a inclusão de novos documentos, após a abertura da sessão pública do pregão eletrônico?

Para resposta a tal questão, é oportuno, inicialmente, retomar os pressupostos informados pela SEGES para justificar a exigência de apresentação dos documentos de habilitação no cadastramento da proposta durante as discussões públicas da minuta do novo regulamento do pregão eletrônico no primeiro semestre de 2019. De acordo com a SEGES, tal medida se justificaria por dois motivos: a) o combate ao chamado “novo coelho” (licitante que, após a conclusão da fase de lances, abandona o certame e não encaminha a documentação solicitada pelo Pregoeiro); e b) necessidade de conferir maior celeridade ao certame, reduzindo as intercorrências no envio da documentação somente após a conclusão da fase de lances.

Ora, partindo dos objetivos pragmáticos almejados pela SEGES e em cotejamento com os princípios jurídicos informados no caput do art. 2º do próprio Decreto nº 10.024/2019, entendemos que a inclusão de documento, entre a abertura da sessão e o momento da consulta do SICAF pelo Pregoeiro (em relação ao licitante provisoriamente classificado em 1º lugar), não constitui, de per si, violação ao art. 26 do Decreto e não  transgrediria o princípio da isonomia, porquanto tal possibilidade, em regra, seria extensível a todos os demais concorrentes.

O que realmente importa é que toda a documentação de habilitação exigida no edital esteja disponível nos anexos ou no SICAF no exato momento no qual o Pregoeiro realize a consulta[2], sendo despiciendo averiguar o momento da inclusão/atualização no SICAF.

Sob a ótica do formalismo moderado e da instrumentalidade da licitação, o que se busca é a disponibilidade integral da documentação de habilitação no momento em que o Pregoeiro venha a realizar a consulta aos anexos e ao próprio SICAF, não importando, pois, se a atualização do sistema por parte do licitante se deu minutos antes da consulta do Pregoeiro.

Ademais, dada a lógica de funcionamento do SICAF e a plena admissibilidade de participação do fornecedor em diversas licitações (inclusive ao mesmo tempo), tem-se por atentatória à liberdade econômica eventual restrição, em especial via edital, de atualização do SICAF após o início da licitação, justificada pela necessidade de evitar que o licitante se aproveite da janela do sistema para incluir documentação de habilitação a qualquer tempo. Ou seja, na prática, tem-se por inviável averiguar a intenção do licitante que atualiza o SICAF após a abertura do pregão, porquanto, por exemplo, poderia ele ter feito a inclusão de documento para se planejar para uma licitação futura. Em tal hipótese, ficaria ele impedido de atualizar seu SICAF (e até de participar de outros certames) enquanto a licitação em questão ainda não tiver sido concluída? 

Vale repetir que o marco temporal máximo para tal atualização, sob o ponto de vista específico da licitação em questão, seria o momento da consulta dos anexos e do SICAF por parte do Pregoeiro, o que ocorreria em relação ao licitante provisoriamente classificado em 1º lugar (§8º do art. 26), seja após a fase de lances, seja em razão da desclassificação/inabilitação dos fornecedores antecedentes.

 

OBTENÇÃO DE CERTIDÕES POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO

Assim como anteriormente previsto no §4º do art. 25 do revogado Decreto Federal nº 5.450/2005, o art. 43, em seu §3º, do regulamento atual prevê a possibilidade de o próprio Pregoeiro[3] realizar a verificação “nos sítios eletrônicos oficiais de órgãos e entidades emissores de certidões”. O disposto em comento ainda atribui, expressamente, caráter de “meio legal de prova”, gerando, assim, uma presunção de veracidade do ato.

Em nossa compreensão, trata-se de iniciativa de ofício por parte do Pregoeiro – ainda que materialmente executada pela Equipe de Apoio – não dependendo de provocação dos licitantes ou de terceiros.

Há, por oportuno, que se empreender o aprofundamento acerca das consequências da providência realizada pelo Pregoeiro no que tange à juntada posterior de documento (art. 43, §3º, LGL), considerando que a anexação da documentação de habilitação deveria, em princípio, ser de responsabilidade do licitante (art. 19, II, do Decreto nº 10.024/2019).

 

Cumpre frisar que o objeto do §3º do art. 43 são as certidões que, em se tratando de procedimentos licitatórios, referem-se a informações constantes de base de dados mantidas por órgãos ou entidades de natureza pública relativas à regularidade fiscal, social, trabalhista ou previdenciária.

Reputamos ser amplo o poder de diligência do Pregoeiro de que trata o §3º do art. 43 do Decreto nº 10.024/2019, de modo que a consulta aos “sítios eletrônicos” não se limita apenas à mera “verificação de autenticidade” das certidões emitidas e apresentadas pelo próprio licitante.

Em nossa compreensão, considerando que a certidão é um ato administrativo declaratório que comprova a existência de um fato formalizado em registros públicos[4], seria dado ao Pregoeiro a prerrogativa de, inclusive, emitir a certidão, juntando-a aos autos do processo licitatório, porquanto trata-se de “meio legal de prova” quanto à regularidade fiscal, social, trabalhista ou previdenciária do licitante.

Quanto à suposta vedação de juntada posterior de documento contida na parte final do §3º do art. 43 da Lei nº 8.666/1993, insta transcrever as palavras de Victor Amorim:

Partindo-se da compreensão de que o objetivo maior do procedimento licitatório é a consecução do interesse público aliada à observância dos primados da isonomia e igualdade de tratamento e condições entre os participantes, há que se conferir uma interpretação finalística e legitimadora ao texto insculpido no art. 43, §3º, da Lei nº 8.666/93.

 

A inclusão posterior de documentos por parte da própria autoridade condutora do certame licitatório deverá ser admitida desde que seja necessária para comprovar a existência de fatos existentes à época da licitação, concernentes à proposta de preços ou habilitação dos participantes, porém não documentados nos autos.

 

Em outras palavras, não está o §3º, art. 43, da Lei nº 8.666/93, em sua parte final, vedando toda e qualquer possibilidade de juntada posterior de documento. O que dali se entende, dentro de uma visão consentânea com o interesse público e com a finalidade da contratação, é que não será permitida apenas a juntada de documento que comprove a existência de uma situação ou de um fato cuja conclusão ou consumação deu-se após a realização da sessão de licitação. Aí sim haveria burla ao procedimento e quebra do princípio da isonomia e igualdade de tratamento.

 

Assim, caso a diligência promovida pela Comissão de Licitação ou pelo Pregoeiro resulte na produção de documento que materialize uma situação já existente ao tempo da sessão de apresentação dos envelopes, não há que se falar em ilegalidade ou irregularidade.

 

Afinal, observemos a seguinte situação que diariamente se dá nos procedimentos licitatórios na modalidade pregão realizados em todo país: examinada e verificada a regularidade da proposta de preços de determinada empresa, passa-se à fase de lances verbais, cuja empresa vencedora apresenta, já na fase de habilitação, certidão de regularidade perante o FGTS com data de validade expirada.

 

Ora, considerando que o Pregoeiro, durante a sessão pública do pregão, dispõe de um computador com acesso à internet, seria legitimo admitir que se adentre ao site da Caixa Econômica Federal e dali se extraia o comprovante de regularidade da empresa?

 

Com fulcro nas premissas exaustivamente expostas, entende-se que sim. Ora, a diligência realizada pelo Pregoeiro atestou que, no momento da realização da sessão do pregão, a empresa em questão, de fato, estava regular perante o FGTS. Portanto, para garantir a contratação de um licitante que, ao tempo da sessão, reunia todas as condições de habilitação, permite-se a juntada de documento não constante do envelope outrora entregue ao Pregoeiro.

 

Trata-se, assim, de um juízo de verdade real em detrimento do pensamento dogmático segundo o qual o que importa é se o licitante apresentou os documentos adequadamente, subtraindo-se o fato desse mesmo licitante reunir ou não as condições de contratar com a Administração ao tempo da realização do certame.[5]

[grifou-se]

 

É mister consignar que a temática referente à possibilidade de emissão e juntada de certidão por parte do próprio Pregoeiro há muito já foi enfrentada e chancelada pelo TCU, destacando-se, nesse sentido, as conclusões exaradas pela unidade técnica no Acórdão nº 1.758/2003-Plenário[6].

 

Conheça mais sobre o pregão eletrônico nos termos do Decreto nº 10.024/2019 na obra dos autores deste artigo, Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020.

PREGÃO ELETRÔNICO: COMENTÁRIOS AO DECRETO FEDERAL Nº 10.024/2019

 



[1] Disponível para aquisição no link: http://loja.editoraforum.com.br/pregao-eletronico-comentarios-ao-decreto-federal-no-10-024-2019.

[2] Em nosso entendimento, a premissa ora externada pode ser extraída de razoável interpretação da redação do caput do art. 28 da Instrução Normativa nº 03/2018 (alterada pela IN nº 10/2020): "No caso da documentação já cadastrada no Sicaf estar em desconformidade com o previsto na legislação aplicável no momento da habilitação, ou haja a necessidade de solicitar documentos complementares aos já apresentados, o órgão licitante deverá comunicar o interessado para que promova a regularização" [grifou-se].

[3] Ainda que o dispositivo tenha se referido genericamente ao "órgão ou entidade promotora do certame", considerando que a verificação se dá “para fins de habilitação”, conclui-se que é o Pregoeiro quem detém a competência, podendo, em tal atividade material, ser auxiliado pela Equipe de Apoio.

[4] Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2013, p. 141.

[5] AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Princípio da juridicidade x princípio da legalidade estrita nas licitações públicas. Análise prática da admissibilidade de juntada posterior de documento no procedimento licitatório. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2366, 23 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14065.

[6] “6.5 Ao serem abertas as documentações de habilitação e propostas técnicas das licitantes que apresentaram os menores preços para os itens, foi constatada a ausência da ‘Certidão quanto à Dívida Ativa da União’ nos documentos da SANTOS e SOSTER. À vista dos preços inferiores cotados pela empresa, a Pregoeira, no uso de suas atribuições e conforme item 9.10 do Edital (vide item 2.2 supra) e art. 11, inciso XIII do Decreto nº 3.555/2000, autorizou a extração da documentação pela Internet na sessão. 7. Cumpre informar que tal certidão é rotineiramente fornecida no site da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional/Ministério da Fazenda, bastando preencher os campos indicados com o número do CNPJ e o nome completo da empresa. Ademais, a veracidade das informações constantes da dita certidão ou da manutenção da condição ‘negativa’ pode ser conferida, a qualquer momento, na página http://www.pgfn.fazenda.gov.br, não persistindo dúvidas quanto à autenticidade e validade do documento assim obtido. Como bem ressaltou a Sra. Pregoeira no exame do recurso interposto pela PRAISE (fl. 34), ‘afirmar que a Certidão Negativa da Dívida Ativa da União, obtida através da Internet não é um documento original, seria acusar a própria União de emissão irregular do documento’, o que vem a ratificar como plenamente adequada a solução encontrada, a qual possibilitou que a documentação ausente fosse devidamente apresentada, passando a fazer parte integrante do processo licitatório, e ainda, que a licitação fosse adjudicada a favor do menor preço cotado, consoante os princípios norteadores do pregão. 8. Dessa forma, não vemos no que poderia ser reprovada a atitude da Pregoeira, que nos parece acertada, tempestiva e inserida nas suas atribuições (art. 9º, incisos IV e V, do Decreto nº 3.555/2000), bem assim no poder discricionário concedido pelo art. 11, inciso XII, do mesmo Decreto nº 3.555/2000 (vide item 6.4 supra)” [grifou-se].