ANÁLISE CRÍTICA E OS EFEITOS DA MEDIDA PROVISÓRIA 961: AUMENTO DO LIMITE DA DISPENSA EM FUNÇÃO DO VALOR, PAGAMENTO ANTECIPADO E EXTENSÃO DO RDC

 

Luciano Elias Reis

@lucianoereis

Advogado e sócio do Reis & Lippmann Advogados. Doutor e Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutor em Direito Administrativo pela Universitat Rovira i Virgili – Espanha. Especialista em Direito Administrativo. Professor de Direito Administrativo do UNICURITIBA. Professor convidado da Pós-Graduação da UNICURITIBA, Instituto Bacellar, UNIBRASIL, Faculdade Baiana de Direito, CERS, UNIPAR, PUC-PR, dentre outras. Coordenador da Especialização em Licitações e Contratos via EAD pela Faculdade Polis Civitas. Professor da Escola Superior de Advocacia. Ex-Presidente da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da Administração da Ordem dos Advogados do Brasil – Paraná (2013-2018). Diretor-Adjunto Acadêmico do Instituto Paranaense de Direito Administrativo. Ex-Integrante do Conselho Consultivo da Agência Reguladora do Paraná – AGEPAR. Palestrante de diversos cursos abertos e in company no Brasil por várias empresas. Autor dos livros “Convênio administrativo: instrumento jurídico eficiente para o desenvolvimento do Estado” (Editora Juruá, 2013), “Licitações e Contratos: um guia da jurisprudência” (2. ed. Editora Negócios Públicos, 2015), “Licitações e Contratos: cases e orientações objetivas” (Editora Negócios Públicos, 2017), “CON Coletânea de Legislação de Licitações” (Editora CON Treinamentos) e coautor de diversas obras. E-mail lucianoereis@yahoo.com.br; luciano@rcl.adv.br.

 

Marcus Vinícius Reis de Alcântara

@marcusalcantara_aju

Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de Sergipe – UFS. Pós-graduado em Perícia Contábil pela Fundação Visconde de Cairu, Salvador/BA. Pós-graduado em Gestão Estratégica de Pessoas pela Faculdade de Negócios de Sergipe – FANESE. Pós-graduado em Licitações e Contratos pela Faculdade Amadeus – FAMA/SE. Palestrante de diversos cursos abertos e in company no Brasil por várias empresas. Secretário de Controle Interno do TRT da 20ª Região. Foi Vice-Presidente do Conselho Regional de Contabilidade de Sergipe – CRCSE. Professor da Pós-Graduação em Licitações, Contratos e Convênios da Faculdade Amadeus – FAMA/SE, Faculdade Polis Civitas, CERS e Faculdade Baiana de Direito/BA. Organizador do Livro Legislação: Licitações e Contratos Administrativos da Editora Negócios Públicos, 13ª a 18ª edições. Co-autor do livro 101 Dicas sobre o Pregão, Vol. I e II, Editora Negócios Públicos. Coautor do Anuário de Licitações e Contratos 2015, Editora Negócios Públicos. Co-autor do Livro Licitações Públicas: Homenagem ao jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, Editora Negócios Públicos. Colaborador das Revistas Negócios Públicos e O Pregoeiro. Colunista do Portal Sollicita. E-mail: marcusalcantara@gmail.com.

 

 

No último dia 6 de maio, foi editada a Medida Provisória 961 que dispôs sobre pagamento antecipado nas licitações e nos contratos, limites de dispensa de licitação e ampliação do uso do regime diferenciado de contratação durante o período determinado de calamidade pública nos termos do Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020.

Sem dúvidas, a medida provisória em questão está bastante sincronizada com as melhores técnicas legislativas, nos termos da Lei Complementar 95/1998, isto porque não deixou margem para possíveis obscuridades acerca dos destinatários de sua aplicabilidade. O caput do artigo 1º expressou que o seu alcance abarcará a administração pública de todos os entes federativos, de todos os poderes, e órgãos constitucionalmente autônomos.

Insere-se aqui a administração pública direta e indireta de todos os entes federativos. Na administração indireta estão contemplados consórcios, autarquias, agências reguladoras (autarquias em regime especial), fundações públicas e empresas estatais (empresas públicas, sociedades de economia mista, assim como as subsidiárias). Já a administração pública direta é composta pelos órgãos e serviços integrados na estrutura administrativa do governo (federal, estadual, distrital e municipal).

No âmbito federal esta classificação está estipulada no artigo 4º do Decreto-lei 200/67:

 

Art. 4° A Administração Federal compreende:

I - A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios.

 II - A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria:

a) Autarquias;

b) Empresas Públicas;

c) Sociedades de Economia Mista.

d) fundações públicas. (Incluído pela Lei nº 7.596, de 1987)

 

Acertadamente, do ponto de vista técnico, a medida provisória expôs “todos os poderes e órgãos constitucionalmente autônomos” o que gera o seu alcance, de modo inquestionável, ao Poder Legislativo, Poder Judiciário, Tribunais de Contas e Ministério Público.

Ao que nos parece, a temporariedade da medida provisória poderá ensejar dúvidas aos operadores, já que o artigo segundo previu que as novidades prescritas serão passíveis de serem aplicadas durante o estado de calamidade que é reconhecido pelo citado Decreto Legislativo.

Como se sabe, o Decreto Legislativo 6 foi editado parar reconhecer o estado de calamidade vivenciado pela União nos termos do artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Este dispositivo legal preceitua um dos microssistemas normativos sobre estado de emergência e estado de calamidade segundo a legislação nacional, visto que existem outras normas tratando sobre o tema como, por exemplo, a legislação pertinente a proteção e defesa civil, lei de licitações, dentre outras.

Conforme o Decreto Legislativo, o reconhecimento de calamidade tem efeitos até 31 de dezembro do corrente ano.[1] Como é um ato normativo com essência sobre o planejamento e execução financeira do exercício fiscal nos termos do artigo 34 da Lei nº 4.320, a redação proposta elencou tal data como termo final. Entretanto, a primeira dúvida a ser dirimida é se este seria o prazo então da Medida Provisória?

Se realizar uma interpretação literal e sistemática pura, dos dois textos normativos (Medida Provisória e Decreto-Legislativo) e seus respectivos enunciados, a resposta a ser dada é que as novidades da Medida Provisória teriam o seu prazo final de uso até o dia 31 de dezembro de 2020.

Não obstante, com o digno respeito, nos parece que a melhor interpretação a ser dada é da Medida Provisória, do Decreto-Legislativo 06 e da Lei 13.979/2020, porquanto são três fontes normativas que se relacionam em razão do objeto. Assim sendo, o artigo 1º da Lei 13.979 prescreve que as medidas excepcionais para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus terão como termo final a data final marcada pelo Ministro do Estado Brasileiro de Saúde ou o prazo declarado pela Organização Mundial de Saúde como pandemia, sempre adotando aquele que terminar antes.

Relembra-se do contido no artigo 1º da Lei:

 

Art. 1º  Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

§ 1º  As medidas estabelecidas nesta Lei objetivam a proteção da coletividade.

§ 2º  Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei.

§ 3º  O prazo de que trata o § 2º deste artigo não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde.

 

Desse modo, interpretando sistemática e teleologicamente as normas focadas nesse raciocínio, em especial pensando no escopo a ser tracejado, entendemos que as regras trazidas pelo artigo 1º da Medida Provisória 961 estão delimitadas pelo prazo anterior, qual seja, aquele que ocorrer antes entre a data fixada pelo Ministro do Estado Brasileiro de Saúde ou aquele declarado pela Organização Mundial de Saúde.

Nada impede que o regime da Medida Provisória espraie e surte efeitos após o termo final suscitado, desde que o contrato tenha sido celebrado (e não firmado, pois é um ato jurídico bilateral de natureza convencional, sinalagmática e comutativa) dentro do período do dito termo final. Exemplifica-se: caso a Organização Mundial da Saúde declare o fim da pandemia no dia 06 de outubro de 2020, não se poderá celebrar contratos com as prerrogativas da Medida Provisória 961 depois disso, porém os contratos celebrados anteriormente continuam existindo, válidos e eficazes em conformidade com as normas da Medida Provisória 961.

Quanto às novidades do artigo 1º, vamos explicar cada uma delas.

No que se refere à dispensa de licitação em função do valor, a Medida Provisória trouxe um alargamento do limite dos valores limites para o seu uso.

Enquanto atualmente para as questões além do enfrentamento da pandemia da COVID-19 está em R$ 17.600,00 para compras e serviços em geral e R$ 33.000,00 para obras e serviços de engenharia segundo os ditames do artigo 23 da Lei 8.666/93 em conjunto com o Decreto Federal 9.412/2018, no caso da pandemia passará respectivamente a R$ 50.000,00 para compras e serviços e R$ 100.000,00 para obras e serviços de engenharia.

Para os consórcios públicos ou autarquias e fundações qualificadas como agências executivas os limites são, respectivamente, de R$ 35.200,00 e R$ 66.000,00, com esteio no artigo 24, § 1º, da Lei 8.666/93, já para as empresas estatais já é de R$ 50.000,00 e 100.000,00 em obediência aos artigos 29, I e II, da Lei 13.303/2016, isso se já não for maior em razão da atualização ocorrida no Regulamento da empresa estatal consoante a inteligência do § 3º do artigo 29.

Este aumento do limite da dispensa em função do valor é bastante aguardado na lei geral de licitações, contudo até o presente momento não houve a modificação dos artigos correspondentes na lei. Portanto, conquanto algum entusiasmado queira estender estas cifras para situações alheias ao período de enfrentamento da calamidade, não se visualiza possível.

Assim, podemos separar em blocos os órgãos da administração pública, de acordo os valores da dispensa e os possíveis impactos:

a)           órgãos e entidades da administração direta, autarquias e fundações não qualificadas como Agências Executivas: terão os valores da dispensa previstos nos incisos I e II do Art. 24 da Lei 8.666/1993 majorados de R$ 33.000,00 e R$ 17.600,00 para R$ 100.000,00 e R$ 50.000,00;

b)           consórcios públicos e autarquia ou fundação qualificadas, na forma da lei, como Agências Executivas: terão os valores da dispensa previstos nos incisos I e II do Art. 24 da Lei 8.666/1993, combinado com o § 1º do mesmo dispositivo, majorados de R$ 66.000,00 e R$ 35.200,00 para R$ 100.000,00 e R$ 50.000,00;

c)            empresas públicas e sociedades de economia mista (empresas estatais) que não alteraram os seus limites da dispensa previstos nos incisos I e I da Lei nº 13.303/2016: manterão os limites em R$ 100.000,000 e R$ 50.000,00, pois a regra da MP sobre dispensa não alcança as estatais;

d)           empresas públicas e sociedades de economia mista (empresas estatais) que alteraram os seus limites da dispensa previstos nos incisos I e I da Lei nº 13.303/2016: manterão os limites trazidos nas respectivas alterações, que obviamente são superiores aos R$ 100.000,000 e R$ 50.000,00 trazidos pela MP nº 961, pois a regra da MP sobre dispensa não alcança as estatais;

e)           entidades integrantes do Sistema “S”: sendo entidades privadas, de natureza pública (paraestatais), regidas por regulamento próprio, não são afetadas pelas regras da MP.

Sobre a necessidade de pertinência de o objeto contratado ser relacionado ao enfrentamento da COVID como fato gerador, a medida provisória não restringiu. Isto quer dizer, o uso deste limite alargado poderá acontecer inclusive em contratações alheias ao coronavírus. Se, de um lado, o limite atual da Lei Geral de Licitações é desproporcional e desarrazoado ante o valor aludido na Lei nº 8666 seja pela Lei 9.648/98 ou pelo Decreto 9.412/2018, doutro lado não se vislumbra pertinência temática e requisito formal do uso da medida provisória.

O artigo 62 da Constituição é bastante lúcido em prever que a medida provisória reside situação de relevância e urgência. Posto isso, entende-se que neste ponto a Medida Provisória poderá ser questionada sob a sua validade de acordo com a Constituição. Logo, corre-se o risco de o inciso I do artigo 1º ser declarado inconstitucional, inclusive em sede liminar por alguma medida a ser impetrada, por não demonstrar efetivamente o caráter relevante e urgente para todas as contratações administrativas ou ser declarado constitucional restrito às situações de enfrentamento da pandemia numa interpretação em conformidade com a Constituição ou até usando a técnica da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto.

Sobre o tema de apreciação da Corte Suprema quando do uso da confecção de medidas provisórias que poderiam até ser usados como precedentes para o entendimento esposado, vide as seguintes decisões já prolatadas em outros casos:

 

Esta Suprema Corte somente admite o exame jurisdicional do mérito dos requisitos de relevância e urgência na edição de medida provisória em casos excepcionalíssimos, em que a ausência desses pressupostos seja evidente.

[ADI 2.527 MC, rel. min. Ellen Gracie, j. 16-8-2007, P, DJ de 23-11-2007.]

 

Conforme entendimento consolidado da Corte, os requisitos constitucionais legitimadores da edição de medidas provisórias, vertidos nos conceitos jurídicos indeterminados de "relevância" e "urgência" (art. 62 da CF), apenas em caráter excepcional se submetem ao crivo do Poder Judiciário, por força da regra da separação de poderes (art. 2º da CF).

[ADC 11 MC, voto do rel. min. Cezar Peluso, j. 28-3-2007, P, DJ de 29-6-2007.]

 

A edição de medidas provisórias, pelo presidente da República, para legitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62, caput). Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República. (...) A possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apoia-se na necessidade de impedir que o presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais.

[ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004.]

 

A crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos presidentes da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo, quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material, investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República. Cabe ao Poder Judiciário, no desempenho das funções que lhe são inerentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo institucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes.

[ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004.]

 

No que concerne à alegada falta dos requisitos da relevância e da urgência da medida provisória (que deu origem à lei em questão), exigidos no art. 62 da Constituição, o STF somente a tem por caracterizada quando neste objetivamente evidenciada. E não quando dependa de uma avaliação subjetiva, estritamente política, mediante critérios de oportunidade e conveniência, esta confiada aos Poderes Executivo e Legislativo, que têm melhores condições que o Judiciário para uma conclusão a respeito.

[ADI 1.717 MC, rel. min. Sydney Sanches, j. 22-9-1999, 2ª T, DJ de 25-2-2000.]

 

Importante frisar que as demais regras aplicáveis à dispensa de licitação em comento (art. 24, I e II da Lei 8.666/1993) permanecem exigidas, a exemplo das regras contidas no art. 26, parágrafo único da Lei 8.666/1993:

 

Parágrafo único.  O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:

(...)

II - razão da escolha do fornecedor ou executante;

III - justificativa do preço.

 

Assim, embora a MP 961 tenha estipulado valores bem mais dilatados para as dispensas de licitação, recomenda-se a adoção das mesmas cautelas anteriormente executadas pela Administração.

O inciso II do art. 1º da MP 961 dispôs sobre pagamento antecipado, condicionado a duas situações:

 

II - o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração, desde que:

a) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço; ou

b) propicie significativa economia de recursos;

 

Pelo exposto na MP 961, enquanto perdurar o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, nas licitações e contratos da Administração, poderá ser feito pagamento antecipado, atendidas as condições já citadas. Abre-se parêntese que as estatais já podem, e poderiam, a partir dos seus regulamentos estabelecer sobre o pagamento antecipado de maneira similar ao preceituado na Medida Provisória em comento ou até de maneira mais alargada, conforme autonomia permitida pela Lei nº 13.303.

Trata-se de dispositivo moderno, contido em norma de Direito provisório, que se destina a conferir eficácia a determinadas contratações públicas. Ainda que se considere uma modernidade, não podemos tratar como uma inovação, pois pagamento antecipado já se pratica na administração pública, ainda que não seja regra.

É sabido que as regras contidas na Lei nº 4.320/1964 estabelecem o rito para o processamento da despesa pública, consistindo em empenho, liquidação e pagamento, nesta ordem. Assim, ordinariamente, o pagamento se efetua ao final do processo. Porém, excepcionalmente, admite-se a antecipação de pagamento, seja por regime próprio (regime de adiantamento previsto no artigo 68 da Lei nº 4.320/1964), seja por exceções que atendem a peculiaridades do mercado. Mesmo para as peculiaridades trazidas pelo mercado, há amparo na legislação para, excepcionalmente, processar o pagamento de maneira antecipada.

A novel Medida Provisória nº 961 admite expressamente a realização do pagamento antecipado. Para tanto estipulou condições a serem observadas pelos gestores. Não se pense que a MP pretendeu modificar radicalmente o rito do processamento da despesa. Uma leitura atenta das alíneas “a” e “b” do inciso II do seu artigo 1º já desfaz esta impressão equivocada. Os dispositivos apontam para situações bastante excepcionais, mas possíveis de acontecer, principalmente quando o mundo assiste à pior crise do século. Os mercados com preços cada vez mais voláteis, dada a instabilidade econômica, podem se sentir atraídos a atender demandas públicas com o incentivo do adiantamento de pagamento, ainda que parcial. Talvez esta seja a forma mais eficaz para concorrer com outros compradores, nacionais ou internacionais. Outra condição aventada pela norma é a possibilidade de contratar com preços mais baixos, ou seja, pagar antecipadamente para conseguir vantagem econômica. O mercado costuma praticar preços diferenciados, a depender da condição de pagamento. As condições exigidas pela MP nº 961 podem estar presentes cumulada ou isoladamente no processo de contratação.

Ainda que a MP nº 961 tenha trazido a expressa previsão de pagamento antecipado, temos sempre que lembrar de adotar cautelas, sejam obrigatórias ou sugestivas, para a devida proteção do interesse público. A primeira providência é deixar assente que o atendimento da necessidade da Administração tem como condição indispensável o oferecimento de pagamento antecipado ou que isto represente significativa redução do valor do contrato. Para tanto, deve o gestor responsável pela instrução do processo coletar todas as informações do mercado. Listamos a seguir algumas providências que podem ser adotadas para facilitar a tomada de decisão.

De posse das informações referentes à demanda, deve o gestor realizar os seguintes questionamentos:

a)           A Administração já contratou este objeto no passado? Quais foram as condições?

b)           Este objeto foi contratado recentemente por outro órgão da administração pública? Quais foram as condições?

c)            O proponente já contratou nestes moldes? Com quem?

d)           O proponente tem estrutura compatível com a demanda?

e)           O proponente milita neste segmento de mercado?

f)             Onde fica a sede da empresa?

g)           É possível exigir garantia?

Algumas destas cautelas podem ter o caráter subjetivo, mas são capazes de revelar potenciais riscos para a Administração. Os noticiários e redes sociais estão recheados de casos de compras mal sucedidas neste período excepcional. São produtos que não chegam, outros fora de especificação, com defeitos etc. Quando estas compras têm pagamento antecipado o problema se agrava. Por isso, o apetite à risco não pode permitir pagamento antecipado se as respostas às perguntas anteriormente descritas gerar a caracterização de um quadrante extremo.

Além das condicionantes obrigatórias, a MP nº 961 trouxe possibilidades a serem adotadas, de modo a mitigar riscos:

 

§ 2º Sem prejuízo do disposto no § 1º, a Administração poderá prever cautelas aptas a reduzir o risco de inadimplemento contratual, tais como:

I - a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente;

II - a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei nº 8.666, de 1993, de até trinta por cento do valor do objeto;

III - a emissão de título de crédito pelo contratado;

IV - o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e

V - a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.

 

São medidas não obrigatórias, mas que podem ser bastante úteis para atenuar possíveis prejuízos decorrentes de uma inexecução contratual. De início, o inciso I traz um indicativo interessante para o pagamento antecipado, indicando que este pode ser parcial e liberado à contatada à medida que a execução do contrato evolui. Tal condição deve ser disciplinada no contrato.

Outra condição importante é a exigência de garantias, sejam aquelas do art. 56 da Lei nº 8.666/1993, seja a emissão de títulos de crédito. Feitas estas exigências, parte do valor do contrato estará assegurada, caso algo não saia como o planejado inicialmente. Ainda mais porque o limite para a exigência das garantias do art. 56 da Lei nº 8.666/1993 foi acrescido para 30%. O contratado poderá caucionar em dinheiro ou apresentar uma carta fiança ou seguro garantia, de modo a garantir a execução do contrato. Salienta-se que o mercado segurador já está bastante atento aos movimentos neste período crítico, ainda mais nas situações de majoração do risco precificado nos prêmios dos segurados ante as potenciais indenizações.

A Administração poderá exigir certificação do produto ou do fornecedor. Tal condição visa garantir a procedência do produto, a sua qualidade, bem como do fornecedor a quem serão confiados recursos públicos antecipadamente. A certificação do produto ou fornecedor é procedimento já utilizado no RDC e na Lei das Estatais.

Por fim, com a finalidade de mitigar os riscos de uma execução frustrada do contrato, representantes da Administração podem acompanhar o transporte da mercadoria, em qualquer parte do trajeto. É uma medida que cabe à fiscalização do contrato e se adotada, pode antecipar para a Administração possíveis falhas do contratado. Aqui, com o digno respeito, em objetos que demandem importação já era de bom alvitre que houvesse o acompanhamento, seja sob o viés do pagamento antecipado ou do pagamento a posterior.

Além das condicionantes contidas na MP e das medidas mitigadoras do risco de inexecução do contrato, há formalidades previstas na norma, como a necessidade de previsão do pagamento antecipado no edital da licitação ou no ato de adjudicação, no termo de referência enviado a fornecedores previamente à formulação de suas propostas em caso de contratação direta e, ainda, a obrigação de devolução do valor antecipado no caso de inexecução contratual.

As regras de antecipação de pagamento só não serão aplicadas aos contratos com dedicação exclusiva de mão de obra, por conta da expressa proibição contida no § 3º do art. 1º da MP nº 961. Os outros contratos podem ser alvo do pagamento antecipado. Cabe alertar aos gestores da administração pública que a possibilidade de se antecipar pagamento aos contratados é situação excepcional, a ser utilizada com bastante cautela, observando as condições trazidas na norma e adotando-se todos os controles possíveis a garantir proteção aos riscos trazidos pelo procedimento. Todas estas medidas protetivas devem estar devidamente juntadas no processo de contratação, justificadas pelas autoridades competentes e, quando necessário, submetidas a pareceres técnicos ou jurídicos.

No que se refere à extensão do Regime Diferenciado de Contratação para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações, o primeiro ponto a ser observado é que a Lei nº 13.979 não mencionava expressamente obras de engenharia. Portanto, a medida provisória estipula um instituto jurídico bastante frutífero para a contratação de obras no período do combate à pandemia.

Com relação ao objeto e a extensão, desde já se reiteram os comentários que o RDC pode ser usado para qualquer contratação, independentemente de o objeto ser relacionado ou não com a COVID-19, apesar de inclinar-se pela admoestação acerca da sua constitucionalidade como explicado alhures.

O segundo ponto está que o RDC não está adstrito a serviços e obras de engenharia, sendo plenamente possível de ser adotado para fornecimento e outros serviços em geral. Por exemplo, poderá ser útil para contratar algum serviço especial em que a remuneração variável seja mais satisfatória para atender o interesse público, mais precisamente para emular o interesse do colaborador privado e fazer com que ele se desdobre para entregar melhores resultados. No campo de fornecimento, avulta-se a carta de solidariedade como um documento que poderá contribuir na análise e julgamento da proposta mais vantajosa na seleção do fornecedor.

O terceiro ponto adscreve-se ao fato de existir regras diferenciadas para o julgamento do fornecedor e de sua proposta, assim como acontece com o regime de contratação integrada que é um ponto positivo se for bem utilizado.

Por fim, o quarto ponto enfatizado neste ensaio é que o uso do RDC alijará possíveis interpretações futuras sobre a natureza jurídica de alguns objetos controvertidos como é o caso de montagens de hospitais de campana para saber se caracterizam mero serviço de engenharia ou como obra de engenharia.

 

 



[1] Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.