DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE SANÇÕES ADMINISTRATIVAS NOS PROCESSOS DE LICITAÇÃO E CONTRATO DURANTE O CURSO DO ESTADO DE CALAMIDADE
Rafael Sérgio de Oliveira
@rafaelsergiodeoliveira
Procurador Federal da AGU. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas. Mestre em Direito. Pós-Graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa. Participante do Programa Erasmus+ na Università degli Studi di Roma. Fundador do Portal L&C. Palestrante e Professor em diversos cursos de pós-graduação no Brasil. Co-autor, juntamente com Prof. Victor Amorim, do livro Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem o objetivo de investigar a possibilidade de aplicação do art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, aos processos de licitação e contrato administrativo. O art. 6º-C foi incluído na Lei nº 13.979 pela Medida Provisória - MPV nº 928, de 23 de março de 2020. Referido dispositivo tem o seguinte texto:
Art. 6º-C Não correrão os prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
Parágrafo único. Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.112, de 1990, na Lei nº 9.873, de 1999, na Lei nº 12.846, de 2013, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos.
Como se vê, o sentido da norma é o de impedir o transcurso dos prazos processuais que corram em desfavor de acusados e entes privados durante o período de calamidade reconhecida pelo Decreto-legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Ou seja, a rigor, o texto não impede a aplicação de penalidades ou de quaisquer outras medidas desfavoráveis a pessoas naturais ou jurídicas, mas obsta que corram prazos contra esses sujeitos.
Com isso, caso a Administração sancionadora conceda um prazo de defesa a um dado ente privado, tal lapso não correrá, o que impedirá o andamento do processo e, consequentemente, eventual aplicação de sanção, tendo em vista que a defesa é uma garantia constitucional daqueles a quem se imputa um ilícito (art. 5º, LV, da Constituição). É dizer, uma vez aberto o prazo para defesa, com o impedimento do seu transcurso, a não apresentação da peça defensora não acarretaria a preclusão do ato de irresignação, pelo que seria impossível a aplicação da sanção durante o período de calamidade reconhecida no Decreto-legislativo nº 6, de 2020.
De outra banda, a aplicação da penalidade (ou de qualquer outra medida desfavorável) no período calamitoso seria viável caso o processado apresentasse sua defesa, pois aí estaria exercido o direito constitucional, pelo que não haveria impedimento para eventual medida desfavorável.
Desse modo, é possível dizer que a norma posta no caput do art. 6º-C em estudo traz uma prerrogativa para os acusados e para os entes privados que respondam a processos administrativos, qual seja: não ser prejudicado por eventual preclusão temporal em processos administrativos durante o período da calamidade reconhecida no Decreto-legislativo nº 6, de 2020. Relembramos que tal prerrogativa tem o efeito de impedir que o Estado aplique a medida desfavorável em questão apenas nas situações em que houver a omissão defensiva do interessado durante o período da calamidade decorrente do coronavírus.
A questão que aqui se coloca é a de saber se essa prerrogativa é aplicável às licitações e aos contratos administrativos. Ou seja, caso a Administração notifique um licitante ou contratado para que apresente defesa na apuração de um eventual incumprimento contratual, esse prazo correria enquanto durar o período da calamidade? Julgamos que tal questão precisa ser respondida, pois ela toca em pontos sensíveis da atividade contratual do Estado, sobretudo no curso desse período de enfrentamento da crise do novo coronavírus.
1 – DA (IN)APLICABILIDADE DO ART. 6º-C DA LEI Nº 13.979/2020 AOS PROCESSOS DE LICITAÇÃO E CONTRATO
Traçar os contornos do campo de incidência do art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020, não é tarefa fácil, tendo em vista a amplitude do seu texto. Porém, uma análise mais detalhada do conjunto da Lei de Combate ao Coronavírus, a Lei nº 13.979, de 2020, joga luzes sobre a questão. Mas, o objetivo do presente trabalho não é o de verificar a que tipo de processos se aplica o comando em análise. O questionamento aqui posto se refere a uma específica categoria de processo, a de licitação e contrato administrativo. Desse modo, resta-nos apenas analisar se o dispositivo em estudo se encaixa nos procedimentos relacionados à contratação pública.
Primeiramente, cabe dizer que o art. 6º-C tem sua vigência limitada ao período de calamidade reconhecido no Decreto-legislativo nº 6, que vai até 31 de dezembro de 2020, conforme art. 1º do referido ato do Legislativo brasileiro. Entretanto, salientamos que para alcançar tal data a MPV nº 928 necessita ser convertida em lei. Caso isso não ocorra, sua vigência irá, no máximo, até 3 de agosto de 2020.[1]
Quanto ao conteúdo da norma, a nós não resta dúvida que a mesma tem o intuito de conferir a prerrogativa da não preclusão temporal durante o Estado de calamidade àqueles que respondam a processos sancionatórios nos termos das Leis nº 8.112, de 21 de junho de 1993, e 12.846, de 1º de agosto de 2013, bem como aos que respondam processos que decorram do exercício do poder de polícia da Administração Pública federal e de normas aplicáveis a empregados públicos.
O primeiro dos motivos para essa conclusão é a redação do Parágrafo único do art. 6º-C. Referido dispositivo trata da suspensão do prazo prescricional dos processos sancionatórios relativos às hipóteses apontadas no parágrafo anterior. Segundo o Parágrafo único do art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020, ficam suspensos os prazos prescricionais das sanções previstas nos seguintes diplomas: a) Lei nº 8.112, de 1990, que versa sobre o estatuto jurídico dos servidores públicos federais, inclusive sobre o seu regime disciplinar; b) Lei nº 9.873, de 1999, que trata dos prazos prescricionais das ações punitivas federais decorrentes do exercício do poder de polícia; c) Lei nº 12.846, de 2013, cujo objeto é a responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas por atos contra a Administração Pública; d) e demais normas aplicáveis a empregados públicos.
A incidência do caput do art. 6º-C em estudo se limita a esses casos. Isso porque o Parágrafo único deixa claro a qual tipo de “prazos processuais em desfavor” se refere o caput do art. 6º-C. É cediço que, na técnica legislativa brasileira, a função do parágrafo nos textos legais é expressar “aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida” (art. 11, III, c, da Lei Complementar – LC nº 95, de 26 de fevereiro de 1998). Ou seja, os parágrafos têm a missão de tratar de algum assunto previsto no caput, buscando complementá-lo ou excepcioná-lo em algum aspecto.
Nessa linha, o Parágrafo único do art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020, trouxe uma complementação do caput do artigo, para garantir que a prerrogativa da não preclusão temporal dos prazos processuais desfavoráveis, expressa na cabeça do articulado em comento, não gere a prescrição da pretensão punitiva do Estado, nos casos tratados no dispositivo. Isto é, se o acusado for notificado para apresentar defesa, por exemplo, ele poderá não apresentar sua peça durante o período da pandemia e não perderá o direito de se defender no processo (não ocorrerá a preclusão temporal). Todavia, essa paralisia processual não acarretará a perda da ação sancionatória do Estado, já que o prazo prescricional não corre durante a pandemia.
Com isso, preserva-se a defesa, já que durante a calamidade decorrente do coronavírus a realização do ato defendente estaria dificultada.[2] Mas, preocupada com a manutenção do poder repressivo do Estado, a norma preserva também a possibilidade de punição, suspendendo o prazo prescricional para a aplicação de sanções previstas nos diplomas legais apontados no art. 6º-C, Parágrafo único, da Lei nº 13.979, de 2020.
Ainda com base na técnica legislativa brasileira, cabe lembrar que o artigo é a unidade básica de articulação (art. 10, I, da LC nº 95/1998). Desse modo, é no artigo onde um determinado tema é tratado. Como vimos, o Parágrafo único do art. 6º-C cristaliza a qual tipo de processo se aplica o comando expresso no articulado.
De outra sorte, o tema de licitação e contrato é tratado em outro artigo, qual seja, o art. 6º-D da mesma Lei nº 13.979, de 2020. Esse dispositivo foi incluído na Lei de Combate ao Coronavírus pela Medida Provisória nº 951, de 15 de abril de 2020. Em tal articulado é estabelecido:
Art. 6º-D Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.666, de 1993, na Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e na Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.
O artigo transcrito refere-se às Leis nº 8.666, de 21 de junho de 1993, 10.520, de 17 de julho de 2002, e 12.462, de 4 de agosto de 2011. Esses diplomas versam, respectivamente, sobre: as normas gerais de licitação e contrato administrativo, a modalidade licitatória do pregão e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC. Vê-se, pois, que é o art. 6º-D a unidade básica eleita pelo legislador provisório para tratar da suspensão de prazos nos processos de licitação e contrato administrativo. Nesse aspecto, o articulado impõe apenas a suspensão dos prazos prescricionais para a aplicação de sanções administrativas,[3] nada dizendo acerca dos prazos desfavoráveis aos licitantes e contratados.
A par de toda essa hermenêutica baseada na legística brasileira, um olhar sobre o ponto em questão à luz dos fundamentos jurídico-administrativos leva à mesma conclusão. É dizer, não foi obra do acaso o fato de a temática relativa às sanções de licitação e contrato vir tratada em artigo diverso e com conteúdo jurídico diferente.
O fato é que as penalidades previstas no regime de licitação e contrato tem um caráter instrumental predominantemente ligado à imediata consecução do objetivo da contratação. Já as sanções previstas nos diplomas mencionados no Parágrafo único do art. 6º-C estão relacionadas a uma ação punitiva mais correcional ou sancionatória com funções repressivas predominantemente mediatas.[4]
Cabe ressaltar que o enfrentamento da crise do coronavírus exige uma forte atuação contratual do Estado, de modo que o Poder Público possa adquirir produtos e contratar serviços fundamentais para o combate à pandemia. De há muito, vigora um modelo de gestão pública denominado de “administração por contrato”,[5] no qual o Estado, em alguma medida, deixa de ser o prestador do serviço e passa a ser o contratante de prestadores de serviços, o que exige do Poder Público instrumentos e habilidades capazes de garantir uma boa gestão dos contratos. Dentre esses instrumentos estão as vetustas cláusulas exorbitantes, das quais faz parte o poder sancionatório da Administração contratante.[6]
A exorbitância típica dos contratos administrativos tem, inclusive no Direito comparado,[7] o condão de defender o interesse público. Desse modo, os contratos em que há uma forte carga de interesse público reclamam a presença das cláusulas que garantem poderes ao Estado com o objetivo de atingir a finalidade projetada no ajuste.[8] Essa função da exorbitância contratual administrativa se destaca em meio à calamidade pública decorrente do coronavírus. Nos contratos voltados para o enfrentamento da pandemia, faz-se presente interesses públicos relevantíssimos, como os direitos à saúde e à vida, que contam até mesmo com o status de direito fundamental (respectivamente, art. 6º e 5º da Constituição). Há no bojo desses contratos uma relevância de saúde pública, cara a toda a sociedade pátria e mundial.
Nessa linha, seria uma enorme contradição imaginar que, no momento em que as cláusulas exorbitantes têm uma missão importante, a lei resolveu retirar da Administração contratante essa relevante ferramenta para a consecução do interesse público em questão. Esse é mais um motivo para excluirmos os procedimentos de penalização dos regimes de contratação pública do campo de incidência do art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020.
Poder-se-ia dizer, como contraponto, que o comando contido no art. 6º-C não retira do Poder Público a capacidade de punir, mas apenas confere ao particular contratado uma prerrogativa, que tem o potencial de retardar a aplicação da sanção. Sim. De fato, é isso. Porém, mesmo isso não atende ao interesse público. Como já dissemos, o poder sancionatório da Administração Pública nos contratos administrativos não tem uma função predominantemente punitiva. O que prevalece na penalidade do regime contratual administrativo é o seu caráter funcional, que é o de imediata satisfação do interesse público buscado por meio da contratação. Nesse ponto, vale trazer a lição de Maria João Estorninho:
A função principal da sanção nos contratos administrativos não é, nem a de reprimir as violações contratuais nem a de compensar a Administração pelos prejuízos sofridos, mas sim a de obrigar o particular a cumprir a prestação a que está adstrito e, dessa forma, assegurar a prossecução do interesse público subjacente ao contrato.[9]
Assim, o retardamento de eventual sanção dos contratos administrativos é uma conduta que faz com que eventual penalidade perca, em certa medida, seu sentido. Para que a cláusula sancionatória cumpra sua principal missão, é preciso que a Administração contratante tenha a capacidade de punir no momento da execução do contrato. É fato que a preservação dessa possibilidade de sanção para a posterior execução contratual tem sua relevância, mas, como já dito, não é essa a função preponderante da penalidade do regime contratual administrativista.
Não custa repetir que enxergamos no presente contexto de combate à pandemia uma significativa relevância das cláusulas exorbitantes, seja no que diz respeito aos contratos voltados para o enfrentamento da pandemia, seja no tocante aos contratos em geral da Administração Pública. Sem dúvida, esses poderes administrativos são ferramentas úteis para a gestão dos contratos em momentos de crise.[10] Nesse prumo, é importante que o gestor público tenha à sua disposição essas prerrogativas, cabendo a ele, no exercício da sua atividade gerencial, considerar qual o momento mais adequado para se valer das faculdades administrativas que a lei lhe confere. No caso do poder sancionatório da Administração contratante na licitação e na execução do contrato, foi isso que o legislador provisório considerou, de modo que suspendeu o prazo prescricional dessas sanções sem suspender os prazos desfavoráveis aos contratados (art. 6º-D, da Lei nº 13.979, de 2020).[11] Prevaleceu no caso a busca pelos interesses públicos em jogo, dos quais destacamos a saúde pública e a vida.
Ressaltamos que, em outra frente, a vivência de uma situação calamitosa exige dos gestores públicos uma maior sensibilidade no momento da avaliação acerca da aplicação de uma sanção. Pois, se há que se considerar uma forte carga de relevantes interesses públicos no bojo dos contratos, também se deve levar em conta que os contratados enfrentam dificuldades significativas para a realização de suas atividades. Como bem alerta Gabriela Pércio, dado o momento de crise de saúde pública e econômica corrente,
(...), até mesmo situações que configurariam, rigorosamente, descumprimento de contrato poderão ser ensejadoras de análise diferenciada voltada não apenas à aplicação objetiva das normas legais e contratuais, mas à identificação de uma solução especialmente aderente ao momento atual.[12]
No mesmo sentido é a lição de Pedro Costa Gonçalves. Referindo-se à crise econômica de 2008, o autor lusitano ressalta que a gestão dos contratos públicos em momentos de crise reclama uma atuação conformada ao momento para a manutenção dos contratos e para evitar a degradação econômica das empresas contratadas pelo Poder Público.[13]
Em outras palavras, no momento pandêmico, o poder sancionatório, inerente aos contratos administrativos, mantem-se, sem incidir nesse campo o art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020, mas cabe ao gestor conformar o exercício de tal faculdade administrativa ao momento de crise vivido, tendo em conta o interesse público em jogo e as dificuldades enfrentadas pelos contratados para a realização de suas atividades.
2 – DA POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA RESCISÃO UNILATERAL DOS CONTRATOS NO CURSO DA CALAMIDADE
Cabe aqui considerar que o título do presente artigo se refere apenas às hipóteses sancionatórias previstas no art. 87, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, no art. 7º, da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e no art. 47, da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. Porém, em face da abrangência do vocábulo contido no caput do art. 6º-C, que se refere a “prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados”, entendemos que deve ser enfrentada a questão no que se refere a medidas legais desfavoráveis aos licitantes e contratados. Ou seja, a prevalecer uma interpretação literal, a abrangência do texto dado ao art. 6º-C, caput, pela MPV nº 928, de 2020, é maior que os casos relativos às sanções. É preciso considerar, sobretudo, a rescisão unilateral dos contratos.
A rigor, no que diz respeito à matéria de contratação pública, a interpretação literal do caput do art. 6º-C fora do contexto de toda a Lei nº 13.979, de 2020, e descolado dos fundamentos jurídicos dos institutos envolvidos levaria a conclusões absurdas. O fato é que no curso de um procedimento licitatório há diversos prazos que são “em desfavor” dos “entes privados” interessados. Lapsos como os de pedidos de esclarecimento e impugnação do edital, de interposição de recurso, de complementação de documentação apresentada em certame etc. são desfavoráveis aos operadores econômicos e, se não correm, impossibilitam a conclusão da licitação. Tal situação seria absurda. Por isso, rechaça-se a interpretação literal do caput do art. 6º-C em análise.
Também seria absurdo imaginar que a Administração, em todo esse contexto de mudança decorrente da crise do novo coronavírus, teria de ficar de mãos atadas caso o contratado não respondesse a uma notificação para manifestação sobre rescisão unilateral de contrato administrativo (art. 79, I, da Lei nº 8.666, de 1993). Apesar de não ter caráter de sanção, por ser ato desfavorável ao contratado, a prática da rescisão unilateral legalmente conferida à Administração Pública exige que se conceda ao contratado o contraditório e a ampla defesa (art. 78, Parágrafo único, da Lei nº 8.666, de 1993).
A rescisão unilateral também é uma das cláusulas exorbitantes do regime do contrato administrativo. Sua função é preservar o interesse público inserto no contrato para reagir a um descumprimento do ajuste ou para atualizar[14] a postura administrativa em face de eventuais alterações supervenientes de cenário.
Pois bem, a supressão dessa faculdade administrativa no curso do período calamitoso também acarretaria significativos prejuízo para a Administração. Quanto ao uso da rescisão unilateral para uma reação a incumprimento contratual, a impossibilidade do seu manejo no momento calamitoso poria em risco ações relevantes de combate à COVID-19. Como já asseverado, muitas das ações estatais de enfrentamento ao vírus se dão por meio de contratos relativos à aquisição de bens e insumos e à prestação de serviços. Caso um contratante tenha uma postura de descumprimento contratual contumaz, ficaria a Administração impedida de pôr fim ao contrato e substitui-lo por outro. Tal situação seria uma agressão ao interesse público.
No mesmo sentido é a conclusão se consideramos o uso da rescisão unilateral em razão de atualização do interesse público em jogo. Lembremos que o cenário é de profundas mudanças na Administração Pública, isso em razão de um vindouro “novo normal”. Assim, possivelmente, muitos serviços hoje contratados serão desnecessários, temporariamente ou não, no futuro próximo. Isso exigirá que a Administração maneje a rescisão unilateral para preservar o interesse público. Se se admite a aplicação do art. 6º-C em comento a qualquer medida desfavorável a ente privado, ficaria o interesse público, no período do estado de calamidade, submisso à vontade do particular contratado.
Como se vê, os dois últimos parágrafos demonstram o quão é absurda a interpretação literal do art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020. De modo que, valem para a rescisão unilateral todos os argumentos apresentados no tópico anterior para afastar a incidência desse dispositivo da aplicação de sanção decorrente de regime de contratação pública. Nesse ponto, resta claro que, no período calamitoso de que trata o Decreto-legislativo nº 6, de 2020, corre em desfavor do contratado o prazo concedido pela Administração para que ele se manifeste sobre rescisão unilateral de contrato administrativo desejada pelo Poder Público contratante.
CONCLUSÃO
De tudo quanto foi dito acima, podemos concluir que o art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020, não abrange os processos de licitação e contrato administrativo. O campo de incidência do articulado em comento é restrito aos regimes disciplinares e sancionatórios previstos nas normas mencionadas no Parágrafo único do art. 6º-C, quais sejam: a) Lei nº 8.112, de 1990, que versa sobre o estatuto jurídico dos servidores públicos federais, inclusive sobre o seu regime disciplinar; b) Lei nº 9.873, de 1999, que trata dos prazos prescricionais das ações punitivas federais decorrentes do exercício do poder de polícia; c) Lei nº 12.846, de 2013, cujo objeto é a responsabilização civil e administrativa de pessoas jurídicas por atos contra a Administração Pública; d) e demais normas aplicáveis a empregados públicos.
Nesse prumo, durante o período de calamidade reconhecida no Decreto-legislativo nº 6, de 2020, correm normalmente os prazos desfavoráveis a entes privados previstos em regimes de contratação pública, inclusive os lapsos relativos a sanções e a rescisão unilateral de contratos administrativos.
Em matéria de licitação e contrato, estão suspensos apenas os prazos de prescrição das sanções previstas nas Leis nº 8.666, de 21 de junho de 1993, 10.520, de 17 de julho de 2002, e 12.462, de 4 de agosto de 2011. Esses diplomas versam, respectivamente, sobre: as normas gerais de licitação e contrato administrativo, a modalidade licitatória do pregão e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC.[15]
Conheça o livro Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020, da autoria de Rafael Sérgio de Oliveira e Victor Amorim.
[1] Até o fechamento desse artigo a MPV nº 928, de 2020, ainda não havia sido apreciada pelo Congresso Nacional, mas o seu prazo inicial de 60 dias já tinha sido prorrogado por mais 60 dias, conforme § 3º do art. 62 da Constituição. Com isso, dado o fato que no recesso parlamentar de julho há suspensão desse prazo (§ 4º do art. 62 da Constituição), se não apreciada até 3 de agosto de 2020, a MPV nº 928 caducará. Cabe dizer que ela pode perder sua vigência até antes, caso o Congresso Nacional a rejeite. Na hipótese de sua rejeição ou caducidade, cabe ao Congresso Nacional regulamentar as relações jurídicas ocorridas durante o seu prazo de vigência (§ 3º do art. 62 da Constituição). Acompanhamento da MPV nº 928: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141147.
[2] A exposição de motivos da MPV nº 928, de 2020, que incluiu o art. 6º-C na Lei nº 13.979, justifica a suspensão dos prazos desfavoráveis a acusados e entes privados em processos administrativos com as seguintes palavras: “Diante da atual situação de emergência de saúde pública, diversas medidas vêm sendo adotadas pelo Estado no sentido de prevenir o avanço da pandemia que, ao mesmo tempo, impõe restrições à continuidade normal das atividades administrativas e atendimento, pelos investigados e acusados em processos administrativos, de prazos processuais administrativos.” Disponível em: <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-928-20.pdf>>.
[3] O art. 6º-D é silente acerca do período durante o qual vigora a suspensão de prazo por ele estabelecida, mas entendemos que esse comando suspensório se limita ao período no qual estiver em vigência a emergência de saúde pública de importância internacional de que trata a Lei nº 13.979, de 2020.
[4] Nesse ponto merece destaque o termo “acusados” utilizado no art. 6º-C da Lei nº 13.979, de 2020. Vocábulo típico de processos correcionais ou sancionatórios de per si. Para além disso, o item 10 da exposição de motivos da MPV nº 928 menciona “processos administrativos de apuração de responsabilidades de agentes públicos e entes privados”, sujeitos à supervisão da Controladoria-Geral da União – CGU.
[5] Cf. GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempo de Crise. In: GONÇALVES, Pedro Costa. Estudos de Contratação Pública – III. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 20-22.
[6] Cf. ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 127 e seg.; GIACOMUZZI, José Guilherme. Estado e Contrato: supremacia do interesse público “versus” igualde. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 45; GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempo de Crise. In: GONÇALVES, Pedro Costa. Estudos de Contratação Pública – III. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 23.
[7] Cf. GIACOMUZZI, José Guilherme. Estado e Contrato: supremacia do interesse público “versus” igualde. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 45.
[8] É fato que cada vez mais cresce a ideia de que essas cláusulas típicas do regime do contrato administrativo nem sempre precisam estar presentes nos contratos firmados pela Administração Pública. Desse modo, os contratos administrativos passam a ser espécie do gênero contrato público, sendo sua aplicação adequada apenas aos ajustes nos quais estejam presentes uma carga considerável de interesse público. Sobre esse ponto: Cf. ESTORNINHO, Maria João. Curso de Direito dos Contratos Públicos: por uma contratação pública sustentável. Coimbra: Almedina, 2014, p. 312 e seg..
[9] ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 128.
[10] Importante ressaltar aqui o aspecto da gestão do contrato, no sentido de que essas cláusulas exorbitantes são ferramentas aptas a serem manejadas por meio de uma atividade gerencial voltada para a consecução do objetivo contratual. Nesse ponto, vale a lição de Pedro Costa Gonçalves: “O regime substantivo do contrato público com natureza jurídica administrativa denota, assim, uma preocupação muito centrada em equiparar o contraente público, por um lado, com poderes conformativos e, por outro, com poderes de reacção musculada em face do incumprimento. A ideia subjacente a esse modelo coincide, pois, com a compreensão da gestão do contrato como ‘missão administrativa’, consubstanciada em ‘regular uma relação jurídica’. É precisamente esta compreensão da gestão do contrato como tarefa ou missão administrativa que permite perceber – e, mais do que isso, legitimar – a desigualdade contratual e os poderes de autoridade do contraente público.” (GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempo de Crise. In: GONÇALVES, Pedro Costa. Estudos de Contratação Pública – III. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 24)
[11] A exposição de motivos da MPV nº 951, de 2020, que incluiu o art. 6º-D na Lei nº 13.979, de 2020, pontua a necessidade de resguardar a atuação sancionatória do Estado ante o risco agudizado pelo estado de calamidade decorrente do coronavírus. Diz o item 7 da mencionada exposição de motivos: “Quanto à suspensão dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na legislação que rege as contratações públicas, tem o objetivo de evitar prejuízos aos interessados e de impedir que a União seja acusada de inércia em virtude da não atuação regular nos processos administrativos relacionados com a matéria – risco potencializado pelo estado de calamidade pública enfrentado pelo País.” (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-951-20.pdf)
[12] PÉRCIO, Gabriela. Descumprimento de Contrato Administrativo e Aplicação de Sanções no Contexto da Pandemia COVID-19. Disponível no Portal L&C: <<http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo/descumprimento-contrato-administrativo-aplicacao-sancoes-contexto-pandemia-COVID-19-09042020.html>>.
[13] Sobre a relevância da sensibilidade do gestor no manejo das ferramentas sancionatórias, vale transcrever a lição de Pedro Costa Gonçalves: “Contenção e prudência no exercício dos poderes públicos de reacção ao incumprimento contratual. – Uma providência com outras características consiste em o contraente público adoptar uma atitude prudente e contida no exercício dos seus poderes de conformação da relação contratual, designadamente os que se referem à aplicação de sanções (associadas à execução da caução) e à reacção em face do incumprimento do contraente privado. Trata-se, estamos certos, de uma matéria sensível, mas, ainda assim, afigura-se-nos que o exercício cuidadoso e cauteloso dos referidos poderes é susceptível de se revelar a estratégia correcta para, em muitos casos, evitar a aceleração do processo de degradação económica do contraente privado.” (GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempo de Crise. In: GONÇALVES, Pedro Costa. Estudos de Contratação Pública – III. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 36)
[14] O fundamental nesse ponto é a adequação da postura adotada com a contratação e no contrato aos novos cenários subsequentes ao ato de contratação, sempre com o objetivo de preservar o interesse público. Assim, nessa linha de atualização, a Administração tem poderes para alterar o contrato e para rescindi-lo por razões de interesse público. Sobre esse ponto: GONÇALVES, Pedro Costa. Gestão de Contratos Públicos em Tempo de Crise. In: GONÇALVES, Pedro Costa. Estudos de Contratação Pública – III. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 23.
[15] Esses diplomas relativos à contratação pública não trazem os prazos de prescrição de suas sanções. No âmbito do Tribunal de Contas da União – TCU, há posicionamento no sentido de que se aplica o prazo geral da lei civil, que é de 10 anos (art. 205 do Código Civil), conforme Acórdão nº 7795/2015 – 2ª Câmara. Mas, também há julgado no sentido de que deve ser aplicado o prazo quinquenal de que trata o Decreto nº 20.910/1932, como é o caso do Acórdão nº 1825/2015 – 1ª Câmara.