A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 106/2020 E O ALCUNHADO ORÇAMENTO DE GUERRA
Caio Mario Cavalcanti
@cmlanacavalcanti
Advogado e Especialista em Advocacia Pública em Direito Administrativo, Constitucional, Processual, Público e Tributário.
Greycielle Amaral
@greycielleamaral
Advogada, Professora, Especialista em Direito da Economia e da Empresa.
Aprovada em 07/05/2020, a temporária e excepcional Emenda Constitucional nº 106/2020 se apresenta como medida de indiscutível necessidade em momento pandêmico.
A razão é simples, mas recheada de complexidade. Com o advento da Constituição de 1988, estamos há trinta e dois anos colocando ordem na casa, estabelecendo regras e limites para os gastos públicos, bem como definindo formas de contratação de bens e serviços. Em 04/04/2020, completamos vinte anos de vigência da Lei Complementar nº 101/2000, que recrudesceu a responsabilidade fiscal.
Estamos, portanto, ao longo do tempo, aperfeiçoando e criando regras para que haja responsabilidade com os gastos públicos. É o caso dos limites legais para endividamentos, dos contornos precisos para a aplicação da receita e fixação de despesas, da necessidade de aprovação de planos, projetos, e orçamentos (a exemplo do Plano Plurianual – PPA, da Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e da Lei de Orçamento Anual – LDO), da imprescindível indicação da fonte de custeio para aquisição de bens e serviços, dentre diversas outras.
A pandemia instaurada veio, contudo, bagunçar toda a ordem da casa. É um visitante indesejado e inesperado, ainda que passageiro, que não avisa que está chegando, não avisa quando irá embora e aumenta as despesas da casa, para uma família que já estava passando por dificuldades financeiras. Destarte, se a ordem jurídica posta assim o foi em momentos de normalidade, em que a casa estava em ordem, o advento da situação inusitada e desordenada culmina muitas vezes com insuficiência das regras anteriormente fincadas.
Quando os orçamentos foram aprovados em 2019 e nos anos anteriores, não se poderia imaginar uma pandemia em 2020. Logo, como exigir declaração de adequação financeira dos gestores e indicação de fonte de recursos, nos estritos moldes determinados pela Lei de Responsabilidade Fiscal? Como demonstrar que os gastos não afetaram o alcance de metas previstas em orçamento? Por outro lado, como deixar de prestar assistência à população nestas circunstâncias? Como conseguir recursos, sem endividamento, num cenário de queda brusca da arrecadação? Como endividar para pagar despesa corrente ante a trava constitucional existente? São essas apenas algumas questões que a pandemia nos reserva, de modo a colocar em xeque o real interesse público em observar mediante um prisma literal todas as disposições legais criadas em tempos de normalidade. Uma flexibilização, assim, era imperiosa, sob pena de concretização de prejuízos incomensuráveis para a sociedade.
Diante desse cenário, uma das medidas adotadas foi o ajuizamento de uma ADI (6357) para que os artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e art. 114 da LDO fossem interpretados a luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, saúde, valor social do trabalho e garantia da ordem econômica.
Não obstante a concessão da liminar pelo Ministro Alexandre de Moraes, que conferiu certo conforto aos gestores, havia, ainda, a necessidade de se quebrar uma trava constitucional: o endividamento para cobrir despesas de natureza corrente. Essa trava, em virtude de sua origem constitucional, não poderia ser afastada pela alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal, sendo importante destacar, ainda, a preocupação contida na referida trava, qual seja, a equidade intergeracional. Vale dizer, não se permite a criação de dívidas atuais para serem pagas pelas gerações futuras.
Contudo, a situação vivida é extrema, a desordem é inequívoca, mas nem por isso não seja possível organizar a bagunça. Para tal, é preciso adaptar a rotina da casa para o momento passageiro, pois momentos excepcionais exigem medidas igualmente excepcionais, porquanto não se reputa suficiente para situações extremas e imprevisíveis um regramento elaborado em cenário de normalidade. É justamente esse o papel da EC 106/2020: afastar algumas travas constitucionais para o enfrentamento da COVID-19, estabelecendo regras, ainda que seja para dispensar regras outras, sem descurar dos deveres da transparência e do controle, ínsitos e elementares a um Estado Democrático de Direito.
Tendo em vista a situação delicadíssima que a ensejou, a EC vem sendo chamada de “orçamento de guerra”, cuja pretensão é descolar as regras vigentes em momento de normalidade deste momento de anormalidade, criando um orçamento paralelo, para que seja possível a efetivação das providências necessárias para o enfrentamento do letal coronavírus, o que é razoável e prudente tendo em vista o contexto extravagante vivido. Afinal, em uma ligeira ponderação de interesses e princípios, soa evidente que o interesse público clama pela exaltação da vida e da saúde pública, ainda que para tanto seja necessário o relaxamento de alguns deveres administrativos no bojo orçamentário.
Nesse sentido, pelo art. 1º da EC 106/2020 ficou instituído o “regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações”, que também se destinou a limitar a sua aplicação às urgências incompatíveis com o regime regular. Afinal, obviamente, a flexibilização deve estar estritamente correlacionada com o momento pandêmico, de modo que, inexistente a dita ligação de causa e efeito, não há motivo para afastar as regras originais: o relaxamento pretendido se presta a enfrentar a pandemia, não sendo, pois, um cheque em branco para que o administrador público inobserve as regras legais e constitucionais para toda e qualquer situação, sob pena, inclusive, de responsabilização pela arbitrariedade praticada.
O art. 4º, por sua vez, é o que afasta a chamada “regra de ouro” do Direito Financeiro. Segundo tal dispositivo, o Governo está autorizado, durante o estado de calamidade, a realizar “operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital”, mas, ao mesmo tempo, previu-se, de forma extremamente recomendável e necessária, a obrigação de que, a cada trinta dias, sejam publicados pelo Ministério da Economia, relatórios com os valores e com o custo das operações de crédito realizadas. Trata-se, assim, de medida essencial para garantir a legitimidade dos gastos extraordinários necessários para o combate à pandemia, sem se descurar da transparência devida, o que é vital para que agentes públicos perversos não utilizem do comando legal para fins escusos.
Nesta esteira, gastos com ações governamentais, bem como incentivos ou benefícios de natureza tributária, passam a ser ilimitados, desde que, é claro, sejam observados os seguintes parâmetros, estipulados no art. 3º da emenda em apreço: (i) tenham o propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas; (ii) não impliquem despesa permanente e (iii) tenham vigência e efeitos restritos à duração do momento pandêmico.
Vê-se, portanto, que a EC, da mesma forma que defende a necessidade de quebrar travas legais e constitucionais, para o enfretamento do momento especial, impõe ressalvas importantes, no intuito de afastar aqueles que tentam aproveitar de maneira escusa das circunstâncias atualmente vividas. Não por outra razão a EC diz ser possível – e recomendável – manter controle das finanças por meio de um orçamento paralelo, ao estabelecer que as autorizações das despesas relacionadas ao enfrentamento da calamidade deverão (i) constar de programações orçamentárias específicas ou contar com marcadores que as identifiquem e (ii) ser separadamente avaliadas na prestação de contas do Presidente da República e evidenciadas, até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, no relatório a que se refere o § 3º do art. 165 da Constituição Federal.
Ainda na toada de flexibilizações, o art. 2º da EC dispensa a prévia dotação orçamentária e a autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias nos casos de contratação de pessoal, por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, previsto no art. 37, IX da CF, desde que, é claro, seja para o propósito exclusivo do enfrentamento da calamidade, no período da sua duração.
Trata-se de previsão que se harmoniza com o cerne excepcional que caracteriza as contratações temporárias, a exigir uma atuação pronta e célere que não se identifica com o moroso procedimento de concurso público, contraditório à rapidez governamental que a atual catástrofe impõe. Harmoniza, também, com a imprevisibilidade da pandemia, cujas decorrências não poderiam ser imaginadas ao tempo da elaboração das leis orçamentárias.
Para essa mesma finalidade de enfrentamento, o Poder Executivo federal poderá adotar processos simplificados de contratação de obras, serviços e compras que assegurem, quando possível, competição e igualdade de condições a todos os concorrentes. A Lei 8.666/93 já prevê a contratação emergencial que poderá servir de referencial para as contratações previstas na EC, não devendo se esquecer que tal simplificação somente se justifica se urgência for incompatível com o regime regular, conforme disposto no já citado art. 1º. Não sendo urgente a contratação, ressalvados os casos de dispensa e inexigibilidade, o formal procedimento licitatório se impõe, no afã de concretizar os princípios licitatórios pertinentes.
A EC está a permitir, ainda, a contratação de empresas que estejam em débito com a previdência social, para gastos específicos que estejam abrangidos no enfrentamento da COVID.
Outras tantas questões são tratadas na referida EC 106/2020, inclusive, quanto aos poderes do Banco Central do Brasil, que, no final das contas, será o responsável por gerir as dívidas criadas, mas não serão abordadas nesta ocasião. A emenda permite, ademais, que o mesmo Banco Central não só compre e venda direitos de crédito e títulos privados no mercado secundário, mas que negocie títulos do tesouro nacional nos secundários mercados internacional e local.
Finaliza-se reforçando que a EC trata de regras transitórias, inseridas no âmbito dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, sem o condão de revogar os artigos neles tratados, o que corrobora a ideia segundo a qual a flexibilização não é permanente, mas vigorá tão somente enquanto perdurar o cenário pandêmico, pois assim exige o interesse público primário.
À guisa de arremate, espera-se muita responsabilidade dos gestores públicos, para que não seja desvirtuado o intuito buscado pela EC, pois estamos diante de situações que visam salvaguardar vidas e renda, cujas consequências já estão sendo muito penosas e severas para geração presente, e será para a geração futura. Nesse trilho, que a flexibilização constante da novel emenda constitucional seja utilizada pelos agentes públicos para minimizar as trágicas consequências advindas da pandemia e para adequar o ordenamento jurídico à situação excepcional, e não para buscar fins pessoais escusos que, para além de serem inconstitucionais, representam verdadeira falta de solidaridade social frente a uma das maiores crises – senão a maior – das últimas décadas.