DIRETRIZES PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE DAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS EM TEMPOS DE CRISE

 

 

Anderson Sant'Ana Pedra

@andersonspedra

Advogado e Consultor (Anderson Pedra Advogados). Procurador do Estado do Espírito Santo. Pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra). Doutor em Direito do Estado (PUC-SP). Professor de Direito Constitucional e Administrativo da FDV/ES.

 

Gabriela Pércio

@gabrielavpercio

Advogada e Consultora em Licitações e Contratos (GVP Parcerias Governamentais). Especialista em Direito Administrativo (Faculdade de Direito de Curitiba-PR). Mestre em Gestão de Políticas Públicas (Universidade do Vale do Itajaí-SC).

 

 

 I - Introdução

Um gestor público convida para uma reunião um assessor jurídico e um assessor contábil. Precisa remanejar determinado orçamento para realizar determinada política pública. Após perguntar sobre a legitimidade de tal medida para os técnicos ali presentes, ambos respondem que sim, que é possível adotar as medidas por ele sugeridas porque estavam de acordo com as normas jurídicas e as normas contábeis. Então o gestor, almejando uma segurança e ainda seu sono tranquilo (se é que ainda tem), indaga: “então posso fazer e dormir tranquilo?” A resposta veio do modo que quase sempre ecoa em todos os ouvidos daqueles que atuam na e com a Administração Pública: “Tranquilo, tranquilo nunca estaremos, temos que esperar como os órgãos de controle irão interpretar o que estamos a fazer”.

Essa situação de insegurança jurídica do agente público perante os órgãos de controle sempre existiu, mas na última quadra da história chegou a adjetivar o agir estatal como a “Administração Pública do medo”. Esses efeitos são nefastos para a Administração Pública e para a sociedade, afinal, o medo pode ocasionar a paralização (“apagão das canetas”) sendo que por vezes não decidir é pior que uma decisão imperfeita.

Diante dessa situação, tivemos a inovação da ordem normativa com a Lei nº 13.655/2018 que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) para dispor “sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.

O objetivo do presente artigo não é criticar as instituições de controle, pois são indispensáveis para a efetivação do pacto republicano, além de contribuir sobremaneira para a implementação de boas práticas administrativas. O que se pretende é chamar a atenção para as circunstâncias reais que estão ao redor do agente público nesse momento de enfrentamento à pandemia e que influenciará sua decisão, sendo que essa decisão poderá ser analisada, em momento futuro, diante de uma perspectiva totalmente diferente, como se estivesse em condições normais.

Decisões políticas e administrativas adotadas em meio ao enfrentamento da pandemia do COVID-19 colocaram novamente o controle da administração no centro do debate nacional. Com a recente edição da Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020 que “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da COVID-19” trouxe à tona a discussão ocorrida com a promulgação da Lei nº 13.655/2018, talvez agora um tom mais elevado em razão da polarização política instalada: alguns clamando pela necessidade de mais controle e outros pela necessidade de autocontenção do órgãos de controle com a inolvidável deferência às escolhas administrativas.

Sem adentrar no mérito quanto à (des)necessidade da MP nº 966, já que seus enunciados normativos não trazem normas diferentes daquelas que já poderiam ser extraídas do ordenamento jurídico e principalmente da Lei nº 13.655/2018, não se pode deixar de consignar é que se encontramos agentes públicos, pessoas íntegras, “do bem”, com receio dos órgãos de controle, e muitos aqui se identificarão, é porque algo está errado com a atuação de alguns dos integrantes desses órgãos, e como há muito se advertiu: “deve-se repudiar o pecado, mas abraçar o [eventual] pecador”.

 

II – “Tempos de crise”: uma definição objetiva

Vivemos em “tempos de crise”. A expressão adquiriu autoridade para se referir a uma situação de absoluto ineditismo vivenciada atualmente, que vem afetando de forma excepcional, inesperada, indesejada e involuntária vidas pessoais e profissionais, saúde pública e privada, economia em seus múltiplos setores, serviços públicos essenciais, políticas públicas, atuação dos Poderes Constituídos. Passou a ser largamente utilizada para se referir à necessidade de afastar algumas regras, flexibilizar outras, abrir e intensificar diálogos, interpretar os fatos conforme as circunstâncias, tomar decisões inéditas e, muitas vezes, arriscadas. Mas, em que medida os “tempos de crise” influenciarão na atuação do controle sobre as contratações públicas? Quais as diretrizes os controladores utilizarão para avaliar as condutas dos controlados? Haverá empatia suficiente para evitar injustiças? Como o controle pode ser flexível, mas efetivo?

Neste contexto, o estabelecimento de algumas premissas e parâmetros objetivos é fundamental. Da mesma forma como, para se valerem da proteção oferecida pela LINDB, os controlados precisam justificar seus atos nas circunstâncias concretas, explicitando objetiva e fartamente os motivos de decidir, os controladores necessitam escorar suas avaliações e determinações em critérios precisos, em linha de coerência com os limites legais e a excepcionalidade da situação. O ponto de partida, então, é delimitar o conteúdo da expressão “tempos de crise”.

Tempos de crise, em nosso entender, são situações emergenciais, calamitosas ou catastróficas que podem ocorrer em uma amplitude geral (compreendendo todo ou quase todo território nacional)[1], regional (compreendendo mais de um Estado ou Município)[2] ou local (Município, DF ou parte dele) e que merecem um rápido, necessário e preciso agir administrativo, a fim de atender o interesse público e satisfazer valores específicos.

Note-se que o fator tempo não possui qualquer influência sobre o conteúdo, que pode se referir tanto a um evento específico e prontamente contido, como também a circunstâncias que, para sua solução, demandam uma sucessão de atos durante certo período. O elemento central é a vigência, em dado período, de condições distintas das condições normais de atuação, originadas de situações emergenciais, calamitosas ou catastróficas reconhecidas pelos órgãos competentes. No caso da pandemia COVID-19, tais condições foram reconhecidas pelo Estado por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e da Portaria do Ministério da Saúde nº 188, de fevereiro de 2020, e terão vigência até 31 de dezembro do corrente ano.[3]

Cabe lembrar que não é novidade a ocorrência de situações em que o suprimento das necessidades da Administração Pública se mostra possível apenas mediante a contratação direta chamada de “emergencial”, diante da impossibilidade de aguardar os trâmites de um processo de licitação sob pena de prejuízo a valores e interesses juridicamente protegidos. A hipótese prevista no art. 24, inc. IV da Lei nº 8.666/1993 autoriza a contratação direta em situações desvinculadas do estado de calamidade pública devidamente declarado ou de necessidades decorrentes de urgências ditas administrativas, que não envolvem, necessariamente, o interesse público primário.[4] Essa não é, a toda evidência, a emergência dos “tempos de crise”, que conduzem o agente público a um estado de decidir completamente distinto da normalidade, inserido em um ambiente de riscos singular, em que as circunstâncias dificultam sobremaneira a tomada de decisão e agravam sua responsabilidade em relação aos resultados buscados.

Encontra-se tal gestor em uma situação peculiarizada pelos fatos e circunstâncias especificamente instaladas que, no mais das vezes, mesmo que similares a outras já vivenciadas[5], não lhe permitem a utilização de parâmetros anteriores de decidir. Neste contexto se encaixam, em rol não exaustivo, a situação de emergência e o estado de calamidade pública[6], podendo incluir, também, o período imediatamente anterior à sua declaração. Os atos praticados pelos agentes públicos durante tais períodos encontram-se respaldados por um regime jurídico excepcional, externado ou não por meio de normas editadas especialmente para esse fim.[7] A presunção absoluta é a de que regras concebidas para serem eficazes em períodos de normalidade não o são em tais situações, bem como de que o modo tradicional de decidir do agente público não é suficiente para o atendimento dos interesses emergentes.[8]

 

III – Direito Público em tempos de crise

III.1 Aplicação dos princípios publicistas: eles não “morreram”

Não é porque se está em tempos de crise que não se deve observar os princípios publicistas, ao contrário, eles devem ser observados, contudo diante de um contexto em que uns princípios projetam sombra sobre outros, formando penumbras normativas, num ambiente de ponderação. Afinal, os princípios jurídicos diferem das demais regras de “tudo ou nada” porque, quando são aplicáveis, não “obrigam” a uma decisão, mas apontam para uma decisão, ou afirmam uma razão que pode ser afastada.

Conforme Dworkin, os princípios jurídicos diferem das regras porque têm uma dimensão de peso, mas não de validade, e, por isso, sucede que, em conflito com outro princípio de maior peso, um princípio pode ser afastado, não logrando determinar a decisão, mas, não obstante, sobreviverá intacto para ser utilizado noutros casos em que possa prevalecer em concorrência com qualquer outro princípio de menor peso.[9]

Diversos princípios publicistas em tempos de crise como o de enfrentamento do COVID-19 podem se apresentar conflitantes: legalidade estrita, boa administração, interesse público, sustentabilidade etc. Para solucionar esses conflitos deve-se utilizar métodos interpretativos, alguns gerais (intepretação sistemática), outros próprios de conflitos entre princípios (concordância prática).

Pelo método da interpretação sistemática o intérprete deve partir do pressuposto de que as normas, inclusive a extraída de um princípio publicista, não existe isoladamente, e, sim, em coexistência com os demais enunciados (normas e regras) que formam o sistema jurídico. A interpretação do direito é a interpretação do direito em seu todo, não de textos isolados – não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços; sendo um dos postulados da metodologia jurídica o da existência fundamental da unidade do Direito, o que converge assim para a interpretação sistemática.[10]

Conjuntamente com o método da interpretação sistemática, o princípio da concordância prática ou da harmonização se apresenta de forma importante e forte para se buscar a solução nos casos de concorrências e colisões de princípios publicistas.

Por essas ferramentas da hermenêutica jurídica  deve-se buscar a conformação dos diversos princípios que se extraem do ordenamento jurídico e que estejam em confrontação, de forma que se evite a necessidade de exclusão (sacrifício) total de um ou de alguns deles.[11]

Mas, “ponderar” e “sopesar” é apenas uma imagem; não se trata de grandezas quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações que – nisso reside a maior dificuldade – não só devem ser orientadas a uma pauta geral, mas também à situação concreta em cada caso.[12]

III.2 Legalidade estrita e sua possível insuficiência: estado de necessidade administrativa ou legalidade extraordinária

Não obstante a importância do princípio da legalidade estrita, não se pode deixar de considerar que, por vezes, este princípio poderá se mostrar em conflito com o princípio da finalidade (interesse público), sendo então necessário encontrar uma solução diante dessas situações.

Aparentemente, em tempos de crise, pode-se afirmar que o princípio da legalidade estrita, na sua compreensão tradicional, não estará sendo observado, contudo, não se pode perder de vista que tempos de crise exigem comportamentos inovadores já que o ordenamento jurídico não apresenta, em regra, soluções satisfatórias para esses momentos de extrema de anormalidade.

A insuficiência do ordenamento jurídico, a necessidade de soluções consensuais, a busca da juridicidade administrativa deixaram de ser temas in abstrato de artigos e teses para serem discutidos in concreto[13] – o law in the books migrou para o  law in action. Chegou o momento de compreendermos como a Administração Pública deve atuar e, principalmente, como o controle também deve atuar em relação a atos praticados em tempos de crise, considerando, notadamente, “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas seu cargo” (art. 22 da LINDB) e não apenas um agir administrativo “conforme a lei e o Direito” (art. 2º, par. único, inc. I da Lei nº 9.784/1999), numa ressignicação do princípio da legalidade estrita.

O princípio da legalidade estrita se apresenta como um dos pilares da Administração Pública brasileira, conforme enuncia o caput do art. 37 da Constituição de 1988. Esse princípio, amplamente aplicado nas contratações públicas, além de regular os atos da Administração Pública perante o particular também traz segurança jurídica ao pacto firmado.

Como princípio de direito administrativo o princípio da legalidade estrita significa que o agente público está sujeito aos ditames das normas que emanam do ordenamento jurídico, sendo que todo o seu agir (omissivo ou comissivo) deve ser autorizado pelo ordenamento jurídico.[14] Contudo, em tempos de crise, como o do enfrentamento à pandemia, o princípio da legalidade, como dito, deve ser ressignificado.

Tem-se a aceitação doutrinária[15] de que em tempos de crise seja tolerável uma atuação administrativa excepcional, com possibilidade de decisões administrativas alheias ao princípios da legalidade, numa espécie de legalidade extraordinária ou legalidade alternativa, inclusive, para a solução dos conflitos administrativos, trata-se de um “estado de necessidade administrativa” decorrente de circunstâncias excepcionais instauradas e que demandam um agir administrativo urgente e eficaz podendo, inclusive, preterir as normas administrativas elaboradas para serem aplicadas em período de normalidade, numa espécie de “exclusão de ilicitude de uma actuação administrativa contra legem”.[16]

Integrando uma dimensão alternativa da legalidade administrativa construída para os tempos de normalidade, o estado de emergência administrativa pressupõe a existência de determinados requisitos: i) fato extraordinário; ii) necessidade e urgência da atuação; iii) ameaça ou continuação de uma efetiva situação de perigo ou de dano; iv) essencialidade da tutela para evitar o dano; v) não tenha contribuído a vontade do gestor público para a instauração da situação[17]; vi) a intervenção administrativa eficiente só pode ser alcançada com a preterição das regras previstas no ordenamento jurídico; vii) momento adequado da prática do ato.[18]

Em suma, cumprido os requisitos aqui delineados, ter-se-ia a legítima mobilidade entre dois padrões de conformidade que possuem uma linha divisória muito tênue: “há aqui o legitimar da prática de actos que, em circunstâncias normais, seriam ilegais”[19], por ocorrer o sacrifício  da “forma normal de processo, [d]o due processo of law[20].

Registra-se que a atuação fora do ordenamento jurídico, num estado de necessidade administrativa, exige um juízo de ponderação (proporcionalidade): de adequação, de necessidade e de proporcionalidade em sentido estrito, devendo o gestor público avaliar se os “danos resultantes da preterição da legalidade ordinária são ou não são justificados face à relevância dos propósitos que se pretendem alcançar com a actuação administrativa contra legem”, ou seja, “se os valores, bens, e interesses públicos ameaçados ou já lesados que se visam acautelar podem ser salvaguardados através de meios que não envolvem o afastar das normas integrantes da legalidade ordinária”.[21]

Como bem destaca Caetano, o problema jurídico suscitado pelo estado de necessidade administrativa é um problema de colisão de interesses (proporcionalidade em sentido estrito): “para evitar que o perigo faça perecer determinado valor, o agente terá de sacrificar um outro valor jurídico de que não é senhor”[22], e ainda:

A salvação do interesse ameaçado exige então um procedimento contrário às regras normalmente orientadoras da conduta jurídica. Em princípio entende-se que esta conduta ilegal representa um mal menor do que a perda que se pretende evitar. Mas é muito difícil fazer um juízo de apreciação objectiva acerca dos dois males em presença. Se algumas vezes estamos perante critérios radicados na moral colectiva – uma vida humana vale mais do que as riquezas materiais –, noutras ocasiões a escala de valores não é tão evidente, ou os valores confrontados equivalem-se.[23]

Sem o cumprimento dos requisitos aqui delineados, nem o exercício do juízo de ponderação para a um agir estatal fora do ordenamento jurídico num Estado de Necessidade Administrativa que deverão estar muito bem delineados na motivação do ato administrativo, ter-se-á uma atuação ilegítima, com desvio ou excesso do estado de necessidade administrativa.

 

IV – As dificuldades trazidas pela lei nº 13.979/2020 e pelas sucessivas medidas provisórias que a modificaram

A Lei nº 13.979/2020, alterada por sucessivas medidas provisórias, criou um regime jurídico excepcional para as contratações públicas destinadas à “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública”.

Estão à disposição do gestor público um limite maior para utilização do suprimento de fundos, a contratação sem licitação[24] ou a realização de pregão com prazos reduzidos, a implantação do sistema de registro de preços por meio de dispensa de licitação e a utilização do regime diferenciado de contratação pública para qualquer objeto. O objetivo, visível e anunciado, foi o de atribuir celeridade ao procedimento de contratação e, então, garantir a efetividade da atuação administrativa. A mesma diretriz embasa a presunção relativa da “ocorrência de situação de emergência” e a mitigação da etapa de planejamento dos processos de contratação, dispensando os estudos preliminares em caso de objetos comuns, exigindo gerenciamento de riscos apenas na etapa de execução contratual e autorizando termo de referência ou projeto básico simplificados. 

Exceções a regras importantes do procedimento tradicional de contratação pública foram criadas, como a dispensa da estimativa de preços, a flexibilização de documentos de habilitação, a contratação por valores superiores ao estimados e a contratação com empresa sancionada, a serem aplicadas conforme justificativa da autoridade competente. Em relação aos contratos decorrentes da Lei nº 13.979/2020, embora de forma mais tímida, algumas regras também foram estabelecidas: poderão ser prorrogados enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da emergência de saúde pública; sofrer alterações em até 50% sobre o seu valor inicial atualizado[25] e ser pagos antecipadamente[26], tudo, novamente, a depender de decisão discricionária e motivada da autoridade competente.

Essa brevíssima e sucinta narrativa, aqui despida de análise crítica, é suficiente para demonstrar como as “normas pandêmicas” retiraram do gestor responsável pelas contratações públicas todo e qualquer parâmetro técnico e empírico, obrigando-o a tomar decisões cruciais em um ambiente normativo novo e radicalmente distinto do tradicional, visando resultados ótimos e diretamente ligados à preservação da vida e à minoração dos impactos sociais negativos, diante de um mercado fornecedor fundamentalmente afetado pela crise.[27]

 

V – O erro grosseiro em tempos de crise

O conjunto formado pelos artigos 20 a 23 e 28 da LINDB possui claro potencial para diminuir o receio do gestor público quanto à eventual responsabilização pela tomada de decisões que, eventualmente, não venham a encontrar eco no entendimento do controle. A necessidade de considerar as circunstâncias concretas vigentes no momento da decisão, a vedação à decisão com base meramente em valores jurídicos abstratos e a responsabilização apenas em caso de dolo ou erro grosseiro, em especial, buscam conceder segurança jurídica mínima, superfícies indispensáveis ao exercício pleno da função pública.

Contudo, desde a edição da Lei nº 13.655/2018, as discussões sobre o erro grosseiro se avolumam. Se não residem maiores dilemas relacionados ao elemento subjetivo dolo, razão pela qual não nos dedicaremos a ele, o cenário em relação ao erro grosseiro é diferente.[28]

O §1º do art. 12 do Decreto Federal nº 9.830/2019 define o erro grosseiro como “aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”. Antes dele, o vetado §1º do art. 28 pretendia estabelecer que “(n)ão se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais”. [29]

Não há como negar que o dispositivo vigente trouxe maior objetividade à análise do controle, que antes valia-se, quase que exclusivamente, da diretriz subjetiva e, até mesmo, pitoresca do “administrador médio”[30], uma métrica fluida e baseada, muitas vezes, na idealização de um perfil perseguido e desejado para o agente público.[31] O novo comando legal considera a provável falibilidade do agente público diante das inúmeras situações em que há o dever de decidir, notadamente naquelas em que se exija do gestor algum grau de inovação. Circunscrevendo a responsabilização às situações de erro grosseiro, evita-se, supostamente, que decisões importantes deixem de ser tomadas e políticas públicas necessárias deixem de ser implementadas por receio de futura responsabilização.[32]

Conforme estabelece o § 2º do mesmo art. 12, a configuração do erro grosseiro[33] depende da comprovação, nos autos do processo de responsabilização, de situação ou circunstância fática capaz de caracterizá-lo. Ainda, nos termos dos §§3º e 5º, exige-se mais do que o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, não sendo, o montante do dano, suficiente para caracterizá-lo isoladamente.[34]

Contudo, o grande desafio do controle externo é a caracterização ou não do erro grosseiro diante das demais diretrizes da LINDB.[35] É preciso fixar corretamente as premissas fáticas, identificar e estabelecer as condições em que o ato foi praticado e, então, conforme impõem o art. 22 e seus parágrafos, levar em consideração as circunstâncias do momento do agir, os obstáculos e as dificuldades práticas enfrentadas de modo suficiente para uma conclusão acertada.[36] É fundamental desprender-se da natureza intrínseca do erro, isoladamente considerado, para avalia-lo, sempre e em qualquer caso, considerando as circunstâncias fáticas e as dificuldades do agente. Um erro absurdo em sua essência pode não ser considerado grosseiro, na exata acepção jurídica que lhe deu o Decreto 9.830/19, quando analisado a partir do contexto fático em que foi cometido.[37] Dito de outro modo: o erro aparentemente crasso somente será considerado grosseiro para os fins da responsabilização se aquela especial condição persistir na análise conjunta com as condições concretas de decidir.

Em relação aos atos praticados em tempos de crise, esse desafio se agrava de modo especial. Parece correto afirmar que o erro “manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” cometido em tempos de normalidade não é o mesmo dos tempos de crise. As condições do gestor para a prática do ato não se comparam, evidentemente, à pior das condições em tempos de normalidade. Não significa, por óbvio, que a caracterização do erro grosseiro não possa ou não deva ocorrer, mas que o erro grosseiro assume contornos peculiares, feições compatíveis com o estado de coisas relacionado à crise, a serem considerados pelo analista e controlador, uma tarefa nada simples.

A primeira dificuldade está em identificar o erro “manifesto, evidente e escusável” no já desenhado contexto de crise em que o ato é praticado ou a decisão é tomada: cercado de pressões e incertezas, notadamente em relação às normas aplicáveis, sobre as quais não se tem parâmetros interpretativos claramente fixados.[38] Obstáculo que também parece claro é a possível ausência de empatia do agente controlador para com o gestor que vivenciou a situação, pois o que é manifesto, evidente e escusável para quem avalia, concomitantemente ou posteriormente à crise, pode não ser o mesmo para quem toma as decisões durante o seu transcurso.[39]

Idêntica problemática envolve o “elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”. Falar em negligência em um ambiente de intensa pressão, em que uma decisão é tomada em detrimento de outra, em que várias decisões são tomadas ao mesmo tempo, em um curto espaço de tempo, requer extremo cuidado. O mesmo se diga quanto a caracterizar a imperícia no contexto de um ambiente de exceção submetido a um regime jurídico novo, especial e transitório. A imprudência do período de crise, por sua vez, pode refletir, em verdade, uma tentativa frustrada de alcançar melhores resultados em circunstâncias desfavoráveis. Compará-la, pois, à imprudência do período de normalidade não é, de fato, um recurso útil e válido.[40]

A motivação apresentada pelo gestor será, por certo, crucial para a avaliação do agente de controle, sem prejuízo, por evidente, de oitivas pessoais e provas que venham a ser produzidas. Os arts. 2º e 3º do Decreto 9.830/2019 arrolam os elementos que a justificativa deve conter, sendo fundamental atentar para a contextualização dos fatos e para a demonstração da necessidade e da adequação da medida, considerando as possíveis alternativas e observados os critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade.

Não nos parece equivocado, ainda, estabelecer, para fins de controle, uma subclassificação para a culpa grave que possibilite consequências distintas que levem em conta a gravidade do erro a partir de seus efeitos, considerando critérios como a satisfação do interesse público, o prejuízo a outros valores e interesses protegidos e, até mesmo, os danos causados ao erário.[41]

Por fim, destaca-se que ao julgar a ADI nº 6421 interposta em face da MP 966, de 13 de maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme à Constituição ao seu art. 2º para estabelecer que, “na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, com especial destaque para as orientações da Organização Mundial de Saúde; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”. Ainda, firmou as seguintes teses:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.

2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.[42]

Conforme se nota, o STF vinculou ao erro grosseiro o descumprimento ou não verificação de normativas técnico-científicas. Tal vinculação aprioristicamente se apresenta como sendo indispensável para uma decisão racional, contudo, não se pode deixar de registrar que a “ciência”, a depender do método utilizado, podem apresentar resultados distintos mesmo analisando um mesmo objeto.

Soma-se a isso a possibilidade fática de que, em situações inusitadas como a apresentada para o enfrentamento do COVID-19, pouco há de comprovação científica, tendo as autoridades públicas que decidirem por meio de evidências verificadas em outros países ou localidades.

 

V – O papel do controle em tempos de crise

V.1 Mitigação do medo

Como então o estado vai cumprir seus fins? Como vai prover de modo adequado os serviços de segurança, saúde, educação, cultura etc.? Como o gestor, que é o encarregado de fazer a coisa acontecer, vai fazer tudo sem poder nada?

Com essas palavras, Sundfeld, em 2014, resumiu as dificuldades do gestor público brasileiro. É preciso aplicar recursos, gerir pessoas, contratar o necessário para o funcionamento da máquina e a satisfação do interesse público primário, tudo isso em um ambiente sujeito à legalidade estrita, ou seja, em que “quase tudo não pode”.[43] Neste contexto, sobejam críticas acerca da falta de autonomia dos gestores públicos na tomada de decisões, tendo-se estabelecido, ao longo dos anos, uma relação de dependência entre esses e seus respectivos órgãos de controle externo. “Administração Pública do medo”, “infantilização da Administração Pública” e “apagão das canetas” são expressões utilizadas para se referir à influência negativa que o medo do controle exerce sobre a atuação do gestor, especialmente a discricionária, desembocando em uma crise de ineficiência.[44]

O diagnóstico indiscutível parece atrelar-se, entre outros, a uma disfunção da teoria da agência, que teria resultado no empoderamento exacerbado das instituições de accountability[45] e no consequente apequenamento do gestor público, considerado a priori como menos capaz e sujeito a desvios morais. Tais circunstâncias impedem, claramente, que por meio do controle se promova um processo de aprendizado com os sucessos e as falhas, verificando-se, ao contrário, que o medo por parte do agente dificulta, cada vez mais, o alcance dos objetivos do principal, desembocando em um cenário completamente indesejado.[46]

Em períodos de incertezas, que costumam ser grandes janelas de oportunidades para mudanças institucionais, é fundamental que esse medo seja controlado. A atuação dos agentes públicos como verdadeiros empreendedores de reformas, experimentando ações inovadoras, tomando decisões inéditas, identificando seu potencial para seguir no caminho da discricionariedade verdadeira e independente, precisa ser estimulada, não desencorajada. Portanto, o papel do controle externo, especialmente o exercido pelos tribunais de contas e pelo Ministérios Público, é fundamental para que os efeitos pós crise não sejam os piores possíveis, causando danos irreversíveis ao processo da necessária emancipação dos agentes públicos.

Assim, caminhar lado a lado com o gestor, valendo-se de uma atuação transparente e solidária, com um controle consensual (concertado) a partir de diálogos institucionais[47] (soft control[48]) é conduta a se esperar dos órgãos de controle nesse momento em que tantos esforços conjuntos estão sendo produzidos. Elaborar orientações formais relacionadas à motivação de atos; estabelecer e publicar diretrizes para a atuação dos agentes controladores; evitar declarações que, colateralmente, impinjam medo aos gestores são algumas das condutas esperadas e que podem minimizar consequências negativas em vários aspectos.

V.2 Razoabilidade no controle de meios

Conforme destaca Carvalho Filho, é por meio da função administrativa “que o Estado [moderno] cuida da gestão de todos os seus interesses e os de toda a coletividade”.[49]

No Estado Democrático de Direito, a função de controle tem primordial relevância para impedir que a Administração Pública se afaste do regular exercício da função administrativa, desgarrando-se de seus objetivos, desatendendo a balizas legais e ofendendo interesses públicos ou privados.[50]

Nesse contexto, o controle de meios destina-se a garantir a observância dos princípios constitucionais da Administração Pública no pleno cumprimento dos fins institucionais. Jamais se justifica como um fim em si mesmo.[51]

Contudo, no regime jurídico licitatório brasileiro, reconhecidamente prolixo e analítico, o controle de meios pode se tornar uma atividade peculiarmente complexa se orientada, predominantemente, pela diretriz da estrita legalidade. A supervalorização do “como foi feito” em detrimento do que “o que foi feito” pode trazer consequências claramente teratológicas, entre as quais a própria perda da efetividade do controle. E, em situações de calamidade pública como a ora vivenciada, endurecer o controle de meios pode representar um equívoco incorrigível, contribuindo para a ineficácia das próprias ações de combate aos efeitos da pandemia.

Ademais disso, tempos de crise trazem consigo não apenas o dever de exercer o controle com a cautela e a temperança de quem compreende os objetivos desta função, sua importância e a diferença entre decidir em momentos de normalidade e em momentos de exceção, mas a oportunidade de deixar de lado hábitos relacionados ao controle pelo controle e ao excesso de controle, ambos propulsores da ineficiência.

Tempos de crise devem possibilitar a retomada do exercício do controle útil aos resultados, estimulando os gestores públicos a conceberem soluções inteligentes, disruptivas e eficazes na satisfação do interesse público ao invés de, subjugados pelo medo, atuarem parametrizados pela necessidade de autoproteção.

Assim, a atuação do gestor que gerou resultados bons ou ótimos, ainda que em desconformidade com procedimentos normativos ou em inobservância estrita a norma legal, pode, em nosso entender, ser escusada, se não se verificar qualquer afronta a princípios fundamentais. [52]

Estariam, então, os fins, em conclusão, a justificarem os meios? De modo algum! O ponto é: os fins não se vinculam, obrigatoriamente, aos meios. Descumprir uma regra procedimental clara, ainda que isso possa, isoladamente, ser classificado como erro grave, não deve, por si, conduzir à responsabilização, especialmente se os resultados forem alcançados. Em nenhuma medida o controle de meios deve sobrepor-se ao controle de resultados, gerando consequências negativas ao gestor cuja decisão foi eficaz e efetiva em relação aos fins visados. O controle deve ter em perspectiva os resultados alcançados, o que, aliás, é a tônica da nova LINDB, contida especialmente no caput do seu art. 20 e no § 1º do seu art. 22.

 

VI – Diretrizes para o exercício do controle das contratações públicas em tempos de crise

A Constituição brasileira de 1988 foi pródiga ao estabelecer as competências para os órgãos de controle e estes têm se tornado cada vez mais atuantes, mais “fortes”, por vezes tangenciando ou até mesmo ultrapassando os limites de sua competência, intrometendo-se indevidamente na competência privativa do administrador público (controlado). Nesse cenário, indaga-se: quais as diretrizes que devem observar os órgãos de controle num cenário de tempos de crise como o de enfrentamento ao COVID-19?

As diretrizes aqui expostas poderão servir para que os órgãos de controle, doravante, busquem trazer uma fundamentação que não apenas convença as partes envolvidas (fundamentação endoprocessual), mas que também convença a sociedade (fundamentação extraprocessual) demonstrando assim uma legitimidade ótima nas suas decisões.

VI.1 Presunção de legitimidade do ato praticado e deferência administrativa

O princípio da presunção de legitimidade e da deferência se prestam de forma fecunda para a mantença de uma harmonia entre o titular (órgão controlado) do exercício da função administrativa e os órgãos de controle.

Todas as presunções militam a favor da validade de um ato (comissivo ou omissivo) administrativo. Assim, se a suposta ilegitimidade da decisão administrativa (comissiva ou omissiva), em geral, não estiver acima de toda dúvida razoável, interpreta-se e resolve-se pela manutenção da escolha, inclusive omissiva, de quaisquer dos órgãos constitucionais de soberania, já que a ilegitimidade não pode ser presumida, há de ficar plenamente provada. Entre duas interpretações possíveis, escolhe-se aquela que não nega a opção realizada pelo titular do exercício da função administrativa, garantindo-se assim aos agentes públicos (controlados) e a sociedade a segurança jurídica necessárias para as decisões estatais.

De acordo com autolimitação, que será abordada adiante, um comportamento de qualquer titular de função administrativa só pode ser considerado ilegítimo se a violação for tão manifesta que não haja uma dúvida razoável.

Por deferência temos que o órgão controlador deve se ater às suas competências e não pretender, (in)diretamente, exercer as competências específicas do controlado, intrometendo-se na legítima discricionariedade administrativa decorrente da maior aptidão técnico-política do controlado.

Pela concepção de deferência não se tem a intangibilidade da decisão controlada, mas um comportamento respeitoso, de autolimitação, face às ponderações e à escolha realizada pelo autor do ato controlado.

O princípio da deferência encontra seu fundamento no princípio da especialização e na presunção de legitimidade dos atos estatais.

Nessa perspectiva o Conselho Nacional de Justiça considerando que “o atual cenário impõe aos gestores de saúde a priorização das ações voltadas à contenção e ao tratamento da COVID-19” editou a Recomendação nº 66, de 13.05.2020, trazendo no seu art. 3º a recomendação para que “todos os juízos com competência para o julgamento sobre o direito à saúde que avaliem, com maior deferência ao respectivo gestor do SUS, considerando o disposto na LINDB, durante o período de vigência do ‘estado de calamidade’ no Brasil”.

A adoção do princípio da deferência não significa tolerância, anuência ou condescendência com práticas ilegais, fraudulentas ou ímprobas; na essência, impõe tão somente o devido respeito às decisões administrativas discricionárias tomadas por agentes públicos aos quais o ordenamento jurídico atribuiu competência.

Os órgãos de controle devem controlar o devido processo administrativo e a consistência dos motivos apresentados para as decisões discricionárias, mas apenas poderá se imiscuir no mérito da decisão quando essa for flagrantemente abusiva, desproporcional, ilegítima.

 

VI.2 Racionalidade da decisão controladora

Não se deve olvidar jamais que o direito administrativo é uma ciência jurídica do Sollen (dever ser), mas como realidade situada no mundo da cultura, necessita ter conexão com o mundo dos fatos, inexistindo de forma isolada.

O crescimento contínuo da importância e das funções dos órgãos de controle e a consequente politização são realidades incontestáveis dos sistemas políticos atuais requer que suas decisões sejam revestidas de não apenas autoridade, mas também de legitimidade e racionalidade que devem se apresentar por meio de uma fundamentação.

Uma fundamentação (motivação) sólida é condição sem a qual as decisões dos órgãos de controle, carecem de legitimidade e de validade, destacando que a exigência de fundamentação das decisões serve como demonstração da racionalidade da decisão.

A fundamentação tem uma serventia endoprocessual como controle das razões da decisão e mecanismo de racionalização técnica do processo, mas também tem uma serventia, e talvez a mais importante, extraprocessual, já que será a partir da fundamentação que a decisão tornar-se-á compreensível para os integrantes da sociedade, em nome do qual são exercidas todas as funções estatais.

Além da necessidade de fundamentação, a decisão dos órgãos de controle deverá vir demonstrada por meio de uma racionalidade.

A fundamentação das decisões dos órgãos de controle só deve admitir argumentos jurídicos ou de implicações jurídicas, jamais razões de mera oportunidade. Caso contrário, não se estará diante de uma decisão jurídica  e, nessa medida, o resultado alcançado será ilegítimo, porque se terá promovido uma “metamorfose” na natureza das decisões dos órgãos de controle.

Se a fundamentação de um processo legislativo ou administrativo aceita abundantemente argumentos jurídicos e políticos, a fundamentação de uma decisão dos órgãos de controle aceita, basicamente, argumentos jurídicos, os demais argumentos não jurídicos, se utilizados, devem ter, necessariamente, implicações jurídicas.

 

VI.3 Primado da realidade

O primado da realidade é, de certa forma, o sentido da mais famosa máxima de Ortega y Gasset: "O homem é o homem e a sua circunstância". Para ele, é impossível considerar o ser humano sem levar em conta tudo o que o circunda, notadamente o contexto histórico e social em que está inserido.

O primado da realidade encontra-se albergado no art. 22 do Decreto-lei nº 4.657/1942 (LINDB) introduzido pela Lei nº 13.655/2018 que prescreve que na “interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo”.

Continua o dispositivo (§ 1º do art. 22) enunciando que pelo princípio da realidade deverão ser “consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”.

Como se observa, é importante para o standard da motivação que os fatos e as dificuldades reais que circunscreviam o espaço e o momento decisório do gestor público estejam muito bem delineados, pois essa realidade deverá ser considerada quando da apreciação da (i)legitimidade da decisão administrativa.

Pelo primado da realidade, deve, o órgão de controle, tentar se colocar no mesmo momento da decisão administrativa, ombreando-se ao gestor público para analisar à luz das circunstâncias e dificuldades daquele momento do passado e verificar a (i)legitimidade da decisão.[53]

Nesse aspecto, todos os fatos, circunstâncias e dificuldades que direta ou indiretamente servem para caracterizar determinado tempo de crise e influenciam o ambiente decisório, devem ser colacionados aos autos para que não reste dúvida sobre o contexto em que a decisão administrativa foi tomada.

VI.4 Autolimitação dos órgãos de controle

Antes de abordarmos a autolimitação (ou autocontenção) necessário fazer uma rápida incursão naquilo que seria o seu oposto – o ativismo.

A ideia de ativismo está associada a uma participação mais ampla e intensa dos órgãos de controle na concretização dos valores e fins contidos no ordenamento jurídico, com maior interferência no espaço de atuação discricionária do gestor público.

Esse comportamento (ativista) dos órgãos de controle pode ocasionar uma tensão entre a esfera política e a esfera jurídica, sendo necessária a autolimitação como mecanismo de minimizar essa tensão, evitando assim uma exacerbação do controle sobre as decisões discricionárias.

Essa concorrência entre o gestor público e os órgãos de controle se evidencia ainda mais pela abertura de alguns enunciados normativos, notadamente os princípios publicistas. Contudo, pode-se afirmar, desde logo, que mesmo nos espaços sujeitos a atuação dos órgãos de controle afigura-se recomendável uma postura de autolimitação, até porque uma atuação dos órgãos de controle excessivamente ativa não é compatível com o regime democrático. O que justifica a autolimitação é a necessidade de adequação dos órgãos de controle ao regime democrático.[54]

Nessa autolimitação que se espera dos órgãos de controle, devem estes procurarem não se intrometer no mérito do ato administrativo e nas chamadas questões políticas (political questions), respeitando-os.

Fique claro que o acatamento dessas restrições não pode significar a existência de atos administrativos absolutamente imunes ao controle.

Embora aos órgãos de controle sejam reservados o papel de observarem o interesse público no seu sentido mais amplo, os órgãos controlados também se situam em plano de recíproca igualdade, sendo que os atos, comissivos ou omissivos, de cada um deles gozam da mesma presunção de legitimidade (juridicidade).

Vê-se então que a legitimação democrática direta ou indireta do gestor público aponta para uma presunção de legitimidade dos atos por ele editados e a cláusula da separação de poderes aponta para uma autolimitação quanto aos juízos discricionários ou de natureza política contidos nos atos administrativos comissivos e omissivos.

Assim, deve o órgão de controle exercer de forma moderada seu importante papel constitucional a fim de homenagear a autolimitação e permitir a atuação da função administrativa dos demais órgãos constitucionais de soberania na mais perfeita harmonia e independência.

A autolimitação dos órgãos de controle, de certo modo, significa que este deve se autocondicionar ao exercer sua competência para não a transformar em um monopólio de dizer o direito de acordo com suas percepções.

Desse papel moderado decorre que os órgãos de controle devem se conformar com seu papel secundário na atuação na execução de políticas públicas, embora relevante e imprescindível sua atuação num Estado constitucional de direito.

Aliás, a esse respeito, pode-se afirmar que o gestor público tem a presunção de legitimidade de sua vontade e atuação para si; a ele está encarregada a configuração jurídica das escolhas administrativas em primeiro lugar, naquilo que se pode intitular de princípio da primazia (deferência) do gestor público na concretização das políticas públicas, sendo vedado ao órgão de controle disputar essa primazia.

Compreendendo o seu papel secundário no exercício da função administrativa, já que os titulares dessa função, até pela sua maior responsabilidade democrática, são os principais encarregados das opções políticas, os órgãos de controle não podem pretender “tomar a titularidade” desta função, e sim, saber atuar somente quando for estritamente necessário, numa “virtude passiva”.

Obviamente que é preciso que os órgãos de controle ajam com consciência de que devem atuar como tal na proporção exata para exercer o devido controle, sem excessos e sem acovardamento.

Como sabido, a virtude está no meio. Assim, não é recomendável aos órgãos de controle uma postura excessivamente passiva em casos de evidente ofensa ao ordenamento jurídico, muito menos uma postura excessiva no exercício da sua função controladora.

Não se deve confundir assim, autolimitação com conservadorismo, nem com renúncia do exercício do controle. A autolimitação deve ser utilizada pelos órgãos de controle, principalmente, quando não conseguir a racionalidade que requer as decisões de cunho jurídico-políticas.

Em suma, a atuação dos órgãos de controle é atividade a ser exercida com autolimitação, devido à deferência e ao respeito que se deve ter em relação aos demais órgãos e entidades titulares da competência e do exercício da função administrativa.

VI.4. Minimalismo controlador

A autolimitação dos órgãos de controle deve ser fixada por prudência, e não por critérios de conveniência semelhantes àqueles que regem relações políticas, numa vertente explicitamente minimalista.

Nesse cenário a autolimitação deve ser considerada como elemento colegitimador da atuação do órgão controlador como curador do ordenamento jurídico.

O exercício da competência dos órgãos de controle deve adotar uma postura avessa a grandes teorias e generalizações no campo principiológico, restringindo-se ao estritamente necessário para atender a atual e verdadeira competência originária.

Nessa perspectiva do minimalismo controlador, os órgãos de controle devem partir de duas premissas para suas decisões: a) devem ser estreitas, no sentido de que sua atuação deve se restringir reprimir somente aquilo que com certeza quase absoluta for ilegítimo; b) devem ser rasas, no sentido de que não deve perscrutar os “fundamentos últimos” dos atos administrativos discricionários, enveredando-se em discussões dogmáticas, políticas, empíricas ou filosóficas, sempre que isto seja dispensável.

A utilização do minimalismo pelos órgãos de controle reduziria o risco de resistências e reações sociais às suas decisões – o chamado efeito blacklash. Decisões muito ambiciosas em temas polêmicos tendem a fomentar a polarização e a radicalização no meios sociais, dificultando a construção de acordos e consensos necessários à vida em comum em sociedades plurais.[55]

Caso a curadoria da ordem legítima não se faça premente, os órgãos de controle não devem agir – favorecendo a democracia e evitando a subtração da sociedade e dos órgãos e das entidades titulares a possibilidade de discussão e de decisão, prestando deferência às competências administrativas primárias.

VII– Considerações finais

Em tempos de crise, de enfrentamento à pandemia do COVID-19, as regras e os princípios que regem o direito administrativo e a Administração Pública permanecem firmes, contudo devem se moldar para que se permita uma atuação ajustada às necessidades e ao contexto (primado da realidade) que envolvem esses momentos difíceis. E, disso, os órgãos de controle não podem olvidar; afinal, mitigar o medo e exercer o controle de meios com razoabilidade são comportamentos que se esperam dos órgãos de controle em situações que tais.

As diretrizes aqui apresentadas buscam servir para que os órgãos de controle, doravante, ao exercerem sua competência constitucional relacionadas às decisões administrativas tomadas em tempos de crise, tragam uma fundamentação que não apenas convençam os agentes públicos envolvidos (fundamentação endoprocessual), mas que também convença a sociedade (fundamentação extraprocessual), vez que será a partir da fundamentação que a decisão tornar-se-á compreensível para os integrantes da sociedade.

Uma fundamentação (motivação) sólida é condição sem a qual as decisões dos órgãos de controle carecem de legitimidade e de validade, destacando que a exigência de fundamentação das decisões serve como demonstração da racionalidade da mesma.

Não se pode olvidar que quanto mais intensa a interferência dos órgãos de controle para as soluções discricionárias, maiores serão os questionamentos acerca da sua legitimidade e melhor deverá ser a racionalidade da decisão.

Pode-se dizer que a diretriz inicial das decisões dos órgãos de controle reside, precisamente, na necessidade de fundamentação do que foi decidido, e essa decisão deve estar ligada a dois elementos: i) a capacidade de demonstrar conexão com o sistema jurídico e ii) a racionalidade propriamente dita da argumentação.

Os órgãos de controle devem valer-se de soluções interpretativas com argumentação (técnica discursiva) compreensível, coerente e racionalmente sustentável a fim de decidir os casos envolvendo decisões discricionárias, sem esquecer do princípio da deferência, do primado da realidade e da indispensável autolimitação.

Não se pretendeu aqui questionar ou enfraquecer a competência dos órgãos de controle, mas propor algumas diretrizes para um controle racional, proporcionando, assim, uma lapidação no processo decisório do controle e minimizando as tensões políticas que podem ocorrer.

“Fé na vida, fé no homem, fé no que virá!” (Gonzaguinha)

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1] Exemplo: calamidade pública decorrente do coronavírus (COVID-19) a partir de fevereiro de 2020.

[2] Exemplo: Rompimento de barragem no Município de Mariana (MG) em novembro de 2015 e que afetou fortemente o Estado do ES e de MG e diversos de seus municípios.

[3] Em 4 de fevereiro de 2020, por meio da Portaria 188, de 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde declarou a “Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV).” Em 6 de fevereiro de 2020, a Lei 13.979 dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019. Por meio dela e das sucessivas medidas provisórias que a modificaram, implementou-se um regime jurídico excepcional para as contratações públicas destinadas à “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública”.

[4] É o que ocorre, por exemplo, na típica situação em que, instaurada a licitação em tempo supostamente hábil à seleção de um contratado, as expectativas de término do processo não se confirmam em decorrência de situações alheias à vontade da Administração Pública, sendo necessária a contratação em caráter de urgência para o atendimento do interesse público visado até que a licitação chegue ao fim.

[5] É o caso das recorrentes cheias do Rio Itajaí, na região do Vale do Itajaí, no Estado de Santa Catarina.

[6] A título de complementação, considerando hipóteses diversas da pandemia COVID-19, pondere-se que, na prática, a situação emergencial e a calamidade pública podem ou não existir, a despeito do ato formal de sua declaração. A legalidade do ato que declara o estado de emergência ou calamidade pública é relativamente presumida, comportando as devidas verificações e eventuais provas em contrário. Isso traz implicações diretas à avaliação da responsabilidade do gestor público que realizou a contratação com base no referido ato. Para que a declaração seja válida, é indispensável que a situação instaurada no âmbito do ente federativo afetado seja, efetivamente, uma situação de crise que enseje a aplicação de um regime jurídico excepcional. Uma vez reconhecida validamente a situação emergencial ou calamitosa por ato estatal específico, nem todas as contratações públicas se presumirão, porém, nele amparadas. Para tanto, o objeto da contratação deverá se destinar ao enfrentamento de problema ou à satisfação de interesse público decorrente da situação que ensejou a declaração de emergência ou calamidade pública. A rigor, exige-se o nexo direto, não se excluindo, todavia, a possibilidade de admitirem-se como válidas contratações que possuam relação indireta com a situação decretada, desde que igualmente caracterizada a urgência no atendimento de interesse público.

[7] Referindo-se ao estado de defesa e ao estado de sítio, Moraes refere-se ao “sistema constitucional das crises”, “consistente em um conjunto de normas constitucionais, que informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, têm por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional”. (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 27. ed., São Paulo: Atlas, 2011. p. 828). A situação de emergência ou do estado de calamidade pública pode, a depender do caso, originar a edição de normas específicas com vigência durante o período de emergência ou calamidade, nos termos da Lei nº 12.608/2012 e tal como ocorreu, p. ex., com a Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

[8] Por essa razão, entende-se que, ainda que nenhuma norma seja especialmente editada para viger durante o período de emergência ou calamidade pública, o regime jurídico de exceção estará caracterizado pela necessária influência dos fatos e circunstâncias nas atividades de interpretação das normas vigentes e de avaliação das condutas dos agentes públicos.

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39.

[10] CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2. ed. Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996. p. 14-15.

[11] PEDRA, Anderson Sant’Ana. O controle da proporcionalidade dos atos legislativos: a hermenêutica constitucional como instrumento. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 171-172.

[12] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 575.

[13] Como no enfrentamento à pandemia do coronavírus. Conferir: MOREIRA, Egon Bockmann. Princípio da legalidade em tempos de crise: destroçado ou ressignificado? In: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/egon-bockmann-moreira/principio-da-legalidade-em-tempos-de-crise-destrocado-ou-ressignificado. Ano 2020. Num. 447. Acesso em 20.05.2020.

[14] Como bem leciona Meirelles: “Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 68).

[15] Destaca Amaral: “A teoria do estado de necessidade é aceite pela doutrina e jurisprudência de todos os países democráticos – e já vem do Direito Romano: necessitas non habet legem.” (AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2012. v. II. p. 61).

[16] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 997-998.

[17] Na hipótese de estado de necessidade administrativa produzido pela inércia de determinado agente público, a Administração deverá produzir atos ao seu devido tempo para fazer frente a situação de necessidade “produzida”, mas haverá também de apurar a(s) responsabilidade(s) do(s) agente(s) público(s) omisso(s).

[18] Requisitos elencados a partir da leitura de: CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2004. t. II. p. 1305-1309; OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 997-999.

[19] OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 999.

[20] AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2012. v. II. p. 61.

[21]OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 998.

[22]CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2004. t. II. p. 1305-1306.

[23] CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2004. t. II. p. 1306.

[24] Mais sobre o assunto: PÉRCIO, Gabriela; OLIVEIRA, Rafael Sérgio de; TORRES, Ronny Charles Lopes de. A dispensa de licitação para contratações no enfrentamento ao coronavírus. Portal L & C. Disponível em http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo/a-dispensa-licitacao-contratacoes-enfrentamento-coronavirus-31032020.html. Acesso em 20.05.2020.

[25] Sobre alterações contratuais em tempos de pandemia, conferir: PÉRCIO, Gabriela Verona. Alterações contratuais durante a pandemia COVID-19: aspectos da aplicação do art. 4º- I da Lei 13.989/2020. Portal L & C. Disponível em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo_detalhe.html. Acesso em 24.05.2020.

[26] Sobre pagamento antecipado: PEDRA, Anderson Sant’Ana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio de; TORRES, Ronny Charles Lopes de. A mística da impossibilidade de pagamento antecipado pela administração pública. Portal L & C. 2020. Disponível em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo_detalhe.html). Acesso em 24.05.2020 e PÉRCIO, Gabriela. MPV 961: antecipação de pagamento e cautelas (extras) necessárias. 2020. Disponível em <http://www.olicitante.com.br/mp-961-pagamento-antecipado-cautelas/. Acesso em 24.05.2020.

[27] Nos contratos de prestação de serviços com cessão de mão de obra em regime de dedicação exclusiva, a manutenção do ajuste, com a suspensão de atividades e continuidade do pagamento regular à empresa contratada, recomendada pelo Ministério da Economia e que logo encontrou guarida no Parecer 00310/2020/CONJUR-MEC/CGU/AGU, pode ser considerada um exemplo de decisão que levou em conta não apenas o estrito interesse do contrato, mas também o impacto social da decisão administrativa. Passou, o gestor, então, a ter que considerar em sua decisão políticas públicas não originalmente inseridas no regime jurídico incidente sobre as contratações em tempo de pandemia.

[28] O art. 138 do Código Civil trata do erro como vício do negócio jurídico passível de anulação, definindo-o como aquele que poderia ter sido percebido por uma pessoa normal, em face das circunstâncias do negócio.

[29]Para Luciano Ferraz, a maior parte da definição sobre o que não se deve considerar como erro grosseiro “servia bem ao desiderato de estabelecer parâmetros sobre a responsabilização dos agentes públicos”. Segundo o autor, “não se deveria considerar como portadora de ‘erro grosseiro’ a decisão ou opinião que tivesse sido ‘baseada em jurisprudência ou doutrina, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não viesse a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais’. Existiria, nesse caso, uma coerência entre a definição legal e o conteúdo da Súmula 400 do STF, onde se lê que ‘decisão que deu razoável interpretação à lei’ ”. (FERRAZ, Luciano. Alterações da LINB e seus reflexos sobre a responsabilização de agentes públicos, publicado no site CONJUR, divulgado em https://www.conjur.com.br/2018-nov-29/interesse-publico-lindb-questao-erro-grosseiro-decisao-tcu. Acesso em 27.04.2020).

[30]Leonardo Coelho foi preciso ao diagnosticar: “O veto pela segurança jurídica nos traz ao controle pautado em categoria inexistente. Possivelmente, também em nome da segurança jurídica. Do controlador, e não dos controlados, claro. Nesse contexto, espera-se mesmo é pelo surgimento de um ‘administrador médium’, dotado da presciência capaz de antecipar as visões futuras do controlador.” (COELHO, Leonardo. Vetos à LINDB e o erro grosseiro dão boas-vindas ao “administrador médium”. Publicado no site CONJUR, divulgado em https://www.conjur.com.br/2018-ago-08/leonardo-coelho-vetos-lindb-tcu-erro-grosseiro. Acesso em 27.04.2020).

[31] Alguns acórdãos, todos do Plenário do TCU, permitem compreender quais são os contornos da expressão no âmbito da sua jurisprudência: “O administrador médio é, antes de tudo, um sujeito leal, cauteloso e diligente” (Acórdãos nºs 1.781/2017, 243/2010 e 3.288/2011); “sua conduta é sempre razoável e irrepreensível, orientada por um senso comum que extrai das normas seu verdadeiro sentido teleológico” (Acórdãos nºs 3.493/2010 e 117/2010); conhecedor de práticas habituais e consolidadas, dominando com maestria os instrumentos jurídicos (Acórdãos nºs 2.151/2013 e 1.659/2017).

[32] Conforme concluíram Binenbojm e Cyrino: “De um lado, a responsabilização do agente público nos casos de dolo e erro grosseiro tem o efeito de reprimir e desestimular os casos de corrupção, fraude e culpa grave. De outro lado, admitir o erro, salvo quando grosseiro, faz sentido num regime jurídico que pretenda viabilizar soluções inovadoras e impedir que as carreiras públicas se tornem armadilhas para pessoas honestas, capazes e bem intencionadas.” (BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O artigo 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 221, nov. 2018. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77655. Acesso em 29.04.2020.

[33] O Tribunal de Contas da União no paradigmático Acórdão 2.391/2018-Plenário equiparou o erro grosseiro à culpa grave, nos seguintes termos: “82. Dito isso, é preciso conceituar o que vem a ser erro grosseiro para o exercício do poder sancionatório desta Corte de Contas. Segundo o art. 138 do Código Civil, o erro, sem nenhum tipo de qualificação quanto à sua gravidade, é aquele ‘que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio’. Se ele for substancial, nos termos do art. 139, torna anulável o negócio jurídico. Se não, pode ser convalidado. 83. Tomando como base esse parâmetro, o erro leve é o que somente seria percebido e, portanto, evitado por pessoa de diligência extraordinária, isto é, com grau de atenção acima do normal, consideradas as circunstâncias do negócio. O erro grosseiro, por sua vez, é o que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal, ou seja, que seria evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do negócio. Dito de outra forma, o erro grosseiro é o que decorreu de uma grave inobservância de um dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave.”

O Acórdão também se refere à culpa grave, trazendo à cola as definições de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald - a “culpa grave é caracterizada por uma conduta em que há uma imprudência ou imperícia extraordinária e inescusável, que consiste na omissão de um grau mínimo e elementar de diligência que todos observam” - e de Pontes de Miranda - a culpa grave é “a culpa que denuncia descaso, temeridade, falta de cuidados indispensáveis” (vide referências bibliográficas no texto do Acórdão). Portanto, o erro grosseiro seria, assim como a culpa grave, a prática do ato com negligência grave, imprudência grave e imperícia grave.

[34] O Tribunal de Contas da União, no mencionado Acórdão nº 2.391/2018-Plenário, entendeu que, para os fins de ressarcimento ao erário, não é necessária a caracterização do erro grave, mas apenas da culpa: “146. Isso ocorre porque as alterações promovidas na LINDB, em especial no art. 28, não provocaram uma modificação nos requisitos necessários para a responsabilidade financeira por débito. 147. O dever de indenizar os prejuízos ao erário permanece sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, como é de praxe no âmbito da responsabilidade aquiliana, inclusive para fins de regresso à administração pública, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição: ‘6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’ (grifos acrescidos). 148. Como regra, a legislação civil não faz nenhuma distinção entre os graus de culpa para fins de reparação do dano. Tenha o agente atuado com culpa grave, leve ou levíssima, existirá a obrigação de indenizar. A única exceção se dá quando houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Nesta hipótese, o juiz poderá reduzir, equitativamente, a indenização, nos termos do art. 944, parágrafo único, do Código Civil.” De forma inovadora, houve uma diferenciação entre os graus de culpa grave dos condenados - grave/grave, grave/média, grave/leve - sem que houvesse, contudo, uma indicação dos critérios objetivos que possam ter orientado a compreensão dos ministros nesse sentido.

[35] Para compreender as dificuldades envolvidas, recomenda-se a leitura do já referido Acórdão nº 2.391/2018, do Plenário do TCU, que por diversas vezes apontou características de ato doloso mas acabou por entender configurado o erro grosseiro.

[36] Foram considerados como erro grosseiro pelo TCU, por exemplo, a realização de pagamento antecipado sem justificativa do interesse público na sua adoção e sem as devidas garantias que assegurem o pleno cumprimento do objeto pactuado (Acórdão nº 185/2019-Plenário) e a autorização de pagamento sem a devida liquidação da despesa (Acórdão nº 2.699/2019-1ª Câmara).

[37] Assim, para usar um exemplo costumeiro de erro grosseiro, qual seja, a decisão pautada em norma revogada, imagine-se a mesma situação em um período de crise em que predominam medidas provisórias, editadas quase que diariamente, criando novas regras e revogando outras. Sem dúvida, seria um ambiente apto a influenciar a análise do controlador mesmo diante de um erro que, a rigor, seria fatalmente considerado grosseiro.

[38] Lembra-se que o §4º do art. 12 do Decreto Federal nº 9.830/2019 estabelece que “(a) complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público”.

[39] Imagine-se, por hipótese, a situação em que, diante da necessidade de prover aos estudantes da rede municipal condições de continuidade aos estudos de forma on line, ante a ausência de perspectivas para o retorno das aulas presenciais, o secretário municipal decide adquirir aparelhos celulares e distribuí-los aos alunos, usando, para tanto, a Lei nº 13.979/2020 e valendo-se, para o caso concreto, da interpretação doutrinária de que não somente equipamentos, insumos e serviços afetos à saúde podem ser adquiridos por meio dos seus procedimentos. Atuando desta forma, retirou do município importante quantia que poderia ser utilizada para contratações destinadas ao enfrentamento direto da pandemia.

[40] Um bom exemplo para ilustrar a problemática é a situação, ora considerada apenas por hipótese, em que, realizada a aquisição de equipamentos de saúde para enfrentamento da pandemia COVID-19 por dispensa de licitação fundada no art. 4º da Lei nº 13.979/2020, dispensando-se os documentos de habilitação nos termos do art. 4º F em decorrência da restrição de fornecedores, após recebidos, conferidos por amostragem e realizado o pagamento, verifica-se não se tratarem, de fato, dos equipamentos contratados, tornando-se impossível à Administração reaver os valores, pois a empresa, sediada em outro município, não foi encontrada, nem o seu suposto proprietário, o que acarretou, além da impossibilidade de atender ao interesse público envolvido, um prejuízo de milhões ao erário. Embora o pagamento não tenha ocorrido de modo antecipado, os servidores responsáveis seguiram orientações do fornecedor para não realizarem a abertura das caixas antes de determinado dia, marcado para a visita do técnico que procederia a instalação, dia este posterior à realização do pagamento.

[41] Essa sistemática já foi utilizada pelo TCU no multicitado Acórdão nº 2.391/2018-Plenário, que classificou a culpa grave em grave/grave, grave/média e grave/leve para o fim de responsabilizar os envolvidos pelo ressarcimento de prejuízos ao erário. O Acórdão não traz, contudo, parâmetros objetivos para essa classificação.

[42] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5912207. Sessão Plenária realizada por vídeo conferência em 21.05.2020. Acesso em 26.05.2020.

[43] SUNDFELD, Carlos Ari. Chega de axé no direito administrativo. Disponível em https://www.huffpostbrasil.com/carlos-ari-sundfeld/chega-de-axe-no-direito-administrativo_b_5002254.html. Acesso em 30.4.2020.

[44] Vale destacar os efeitos deletérios da hiperbolização do controle sobre a eficácia das hipóteses legais de contratação direta em decorrência do receio do gestor público de que, aos olhos do controle, não haja o perfeito enquadramento da situação concreta. Muitas vezes, o gestor prefere realizar uma licitação que resultará inócua apenas para garantir uma futura contratação direta sem riscos futuros para si próprio.

[45]Conforme alerta Filgueiras, “(o)s agentes das burocracias de controle são empoderados para intervir em todo o processo das políticas públicas e da ges­tão. Esses agentes interpretam as normas, fixam regulamentos e práticas de gestão, bem como interferem diretamente nos resultados alcançados pelas políticas. Na função de interpretação de normas, os agentes das burocracias de controle atuam politicamente, porque agem diretamente no processo decisório e de implemen­tação. Essa atuação política resulta em voluntarismo do controle que impacta os resultados das políticas públicas.” (FILGUEIRAS, Fernando. Burocracias do controle, controle da burocracia e accountability no Brasil. Repositório IPEA. Disponível em: www.repositorio.ipea.gov.br. Acesso em 30.4.2020).

[46]Não há, por certo, que se atribuir toda a culpa do medo à conta do controle. A falta de investimento na capacitação e profissionalização de agentes públicos para o exercício de funções técnicas e também de governança contribui, definitivamente, para esse estado de coisas. Desprovido do conhecimento necessário, o agente público não sente segurança suficiente para agir, preferindo engavetar o processo ou albergar-se à sombra de uma decisão do tribunal de contas em caso similar, nem sempre alinhado à sua realidade ou da sua organização. Mudanças nesse sentido, por requererem giros culturais profundos com impacto na governança administrativa, não podem ser vislumbradas dentro de um curto espaço de tempo, ainda que não faltem decisões dos órgãos de controle recomendando amplamente a realização de investimento em capacitação.

[47]Pelo diálogo institucional, antes de uma decisão conclusiva pelo órgão de controle. este deveria dialogar com o controlado que pratica(ou) o ato (comissivo ou omissivo) ofensivo ao ordenamento jurídico, possibilitando-o a correção do ato. Apenas com uma resposta inadequada, ou sem uma resposta, é que o órgão de controle agiria de forma mais efetiva para afastar a conduta administrativa ilegítima, fazendo, assim, com que o “sistema fraco’ de controle” se convertesse em um “sistema ‘forte’ de controle”.

[48]O soft control, ou controle “fraco”, propicia aos órgãos de controle dizerem sobre o que seria a correta aplicação do direito na sua perspectiva, mas sem ser a última, ou a única palavra, bem como reduz a tensão entre o órgão de controle e o órgão ou entidade controlada, todos com suas competências oriundas do mesmo manancial constitucional.

[49] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 33. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2019. p. 456-457.

[50] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 879.

[51] “Não se trata de descumprir a lei, mas apenas de, no processo de sua aplicação, prestigiar os seus objetivos maiores em relação à observância pura e simples de suas regras, cuja aplicação pode, em alguns casos concretos, se revelar antitética àqueles. Há uma espécie de hierarquia imprópria entre as meras regras contidas nas leis e os seus objetivos, de forma que a aplicação daquelas só se legitima enquanto constituir meio adequado à realização destes.”(ARAGÃO, Alexandre Santos. O princípio da eficiência. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Instituto de Direito Público da Bahia, nº 4, Salvador: 2005. Disponível na internet: <http://www.direitodoestado.com.br>). Acesso em 20.05.2020).

[52] Exemplificando: eventual utilização do art. 24, inc. IV da Lei 8.666/1993 para contratações visando o enfrentamento dos efeitos da pandemia, em detrimento do disposto na Lei nº 13.979/2020, não pode ser considerada irregular, de per si, salvo se a demora no processo, que segue à risca o disposto no art. 26, parágrafo único da Lei 8.666/93, prejudicar o alcance do interesse público.

[53] PEDRA, Anderson Sant’Ana; SILVA, Rodrigo Monteiro da. Improbidade administrativa. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 307.

[54] A título histórico e de modo panorâmico sobre o judicial self-restraint tem-se que após a possibilidade do controle de constitucionalidade das leis pelo Judiciário estadunidense em 1803 (Marbury v. Madison), foi necessário desenvolver teorias para controlar a instância última da curadoria da Constituição a fim de evitar que tal instância se tornasse hegemônica, sendo que as restrições também servem como mecanismo de proteção e de autopreservação do próprio órgão de controle, visando a sua não deslegitimação. As primeiras limitações que vieram a surgir foram instituídas, direta ou indiretamente, pelo próprio Judiciário norte-americano. (PEDRA, Anderson Sant’Ana. Jurisdição constitucional e a criação do direito na atualidade: condições e limites. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 362).

[55] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 226.