REVISÃO DE PREÇOS REGISTRADOS EM CASO DE ELEVAÇÃO DOS VALORES PRATICADOS EM MERCADO NO CONTEXTO DA CRISE DO CORONAVÍRUS[1]

 

 

 

VICTOR AMORIM

@prof.victor.amorim

Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor dos cursos de pós-graduação do IDP, Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do Instituto Goiano de Direito (IGD). Advogado e Consultor Jurídico. Site: www.victoramorim.com

 

 

FABRÍCIO MOTTA

@fabricio.motta.90

Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. Doutor em Direito do Estado pela USP e Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (2017-2019).

 

 

 

Nos dias atuais, é constante e intensa a discussão quanto à influência da pandemia do coronavírus (COVID-19) nas contratações públicas, em especial em razão do advento da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e das Medidas Provisórias nº 926/2020 e nº 951/2020. Com efeito, a relevância da questão e as controvérsias envolvidas têm inspirado orientações e divagações acerca das posturas possíveis a serem adotadas pela Administração, o que tem se efetivado por intermédio de inúmeras análises, artigos, lives e até mesmo de livros recém-lançados.

Contudo, há um tema que merece maior digressão, concernente às potencialidades e contornos da revisão de preços consignados via sistema de registro de preço geral (SRP), disposto no inciso II e §3º do art. 15 da Lei nº 8.666/1993[2].

 

Emerge, assim, a seguinte dúvida: diante de comprovada elevação dos preços praticados em mercado em decorrência da crise humanitária, social e econômica provocada pela pandemia do coronavírus[3], seria juridicamente viável a revisão dos preços registrados em ata vigente para aumento dos valores consignados?

O enfrentamento de tal questão central e de suas variações constituirá o objeto do presente artigo.

Para tanto, considerando a existência de regulamentação federal específica sobre a matéria, contida no art. 19 do Decreto Federal nº 7.892/2013, adotamos abordagem tópica sequencial por meio das seguintes questões:

 

1) a disciplina legal acerca do sistema de registro de preços, fundada em atos normativos primários, inviabilizaria, de per si, a elevação dos preços registrados em ata em razão de fatos supervenientes e circunstâncias excepcionais que alterem profundamente os valores praticados em mercado?

 

A Lei nº 8.666/1993, no inciso II do art. 15, estabelece que as compras públicas, "sempre que possível, deverão ser processadas através de sistema de registro de preços".

Em seguida, no §3º do mesmo artigo, a norma estabelece que o sistema de registro de preços "será regulamentado por decreto", estabelecendo, apenas, as seguintes balizas a serem observadas quando da referida regulamentação: i) seleção feita mediante concorrência; ii) estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados; iii) validade do registro não superior a um ano.

Por sua vez, a Lei nº 10.520/2002, que dispõe sobre a modalidade pregão, ao tratar sobre o tema em seu art. 11, apenas se limitou a estender expressamente a possibilidade de adoção de sistema de registro de preços para a contratação de "serviços comuns" e, ainda, a possibilidade de adoção da modalidade pregão, tudo "conforme regulamento específico".

Portanto, é de fácil compreensão que a disciplina específica quanto ao procedimento e demais condições do sistema de registro de preço foi remetida para tratamento por ato normativo secundário. Tanto a Lei nº 8.666/1993 quanto a Lei nº 10.520/2002, exceto quanto ao prazo máximo de vigência da ata, não dispuseram, em detalhes ou minúcias, sobre o regime de gestão e execução dos preços registrados.

A bem da verdade, em seu inciso II do §3º do art. 15, a Lei nº 8.666/1993 chega a prever a necessidade do regulamento do SRP dispor sobre "estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados".

Mas, de toda forma, não se extrai das condições e balizas mínimas fixadas na Lei nº 8.666/1993 qualquer impedimento, a priori, de adoção de ampla revisão dos preços registrados caso haja superveniente incompatibilidade dos valores com os preços praticados em mercado, seja "para cima", seja "para baixo".

Eventual restrição quanto à alteração dos preços registrados, a propósito, seria questionável diante da consagração constitucional do equilíbrio econômico-financeiro da relação contratual, fundada na manutenção das condições efetivas propostas pelo contratante ao Estado (art.37, XXI). Além do questionamento jurídico-constitucional, eventual vedação de adequação dos preços fatalmente acarretaria contratações mais onerosas para o Estado, uma vez que todos os riscos potenciais que pudessem interferir nos valores apresentados, durante a execução contratual, seriam certamente precificados na proposta apresentada[4].

 

Em complemento, parece ser elucidativa a previsão contida no §6º do mesmo art. 15 ao conferir legitimidade para qualquer cidadão "impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado", não havendo a fixação de uma solução específica a depender da “vetorização” da oscilação do mercado.

Por conseguinte, em resposta a questão parcial posta, é possível concluir que os atos normativos primários que dispõem sobre o sistema de registro de preços não veiculam o impedimento, a priori, de revisão da ata de registro de preços no sentido de promover a elevação dos preços registrados em razão de fatos supervenientes e circunstâncias excepcionais que alterem profundamente os valores praticados em mercado.  

 

2) seria constitucionalmente viável a disciplina normativa específica, mediante ato regulamentar editado pela União, Estado, Município ou Distrito Federal dispondo sobre a possibilidade de alteração a maior de preços registrados em ata?

 

Ao dispor sobre a regulamentação do sistema de registro de preços, como não poderia ser diferente, o §3º do art. 15 da Lei nº8.666/1993 não restringe a competência para edição do referido “decreto” ao Presidente da República.

Dessa forma, em consonância com o entendimento de Marçal Justen Filho, a despeito de o sistema de registro de preços pautado no art. 15 da Lei nº 8.666/1993 ser autoaplicável, a regulamentação específica poderia ocorrer, “por meio de decreto, a ser editado no âmbito de cada entidade federativa[5]. Afinal, “cada ente federativo é titular da competência para promover essa regulamentação[6].

Desde que respeitadas as condições expostas no §3º do art. 15 da Lei Geral de Licitações, há considerável margem de liberdade conferida ao ente regulamentador para o estabelecimento de disposições específicas quanto ao regime de execução das atas de registro de preço[7], inclusive no que tange ao alcance e limites à “atualização dos preços registrados”.

Logo, diante da premissa extraída da resposta à primeira pergunta, considerando a inexistência de impedimento veiculado em ato normativo primário, o regulamento do SRP editado por parte de qualquer entidade federativa em atendimento ao §3º do art. 15 da Lei nº 8.666/1993 poderia dispor sobre a possibilidade de alteração a maior de preços registrados em ata. 

 

3)  a previsão contida no art. 19 do Decreto Federal nº 7.892/2013 constitui um impedimento absoluto quanto à possibilidade de alteração a maior de preços registrados em ata?

 

Com fundamento da competência expressamente conferida pelo §3º do art. 15 da Lei nº 8.666/1993, o Presidente da República regulamentou o sistema de registro de preços para os órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional por meio do Decreto nº 7.892/2013[8].

Não obstante a reconhecida competência regulamentar sobre o SRP no âmbito da administração de cada ente federativo, denota-se que o Decreto nº 7.892/2013 possui nítido caráter referencial para Estados e Municípios[9]. Com efeito, o citado regulamento ou é aplicado diretamente, em caso de inexistência de regulamento próprio, ou inspira substancialmente a redação dos atos normativos editados pelos entes subnacionais. Tal constatação revela a importância do enfrentamento do terceiro questionamento, uma vez que, ainda que atinente à repercussão do art. 19 do Decreto nº 7.892/2013, haverá considerável repercussão para Estados e Municípios. 

Os contornos acerca da “atualização dos preços registrados”, a que alude o inciso II do §3º do art. 15, a Lei nº 8.666/1993, foram disciplinados nos artigos 17 a 19 do Decreto nº 7.892/2013.

Ainda que ao tratar da revisão dos preços registrados, o art. 17 faça menção à intangibilidade da equação econômico-financeira prevista na alínea “d” do inciso II do caput do art. 65 da Lei nº 8.666/1993, o fato é que, por opção da autoridade regulamentadora do SRP federal, a alteração dos preços registrados somente será possível para a redução dos valores registrados, não havendo previsão de revisão para elevação dos preços.

Destarte, havendo variação considerável e superveniente de preços praticados no mercado, o Decreto nº 7.892/2013 adotou o seguinte regime:

 

REDUÇÃO DO PREÇO PRATICADO NO MERCADO

(art. 18)

 

Convocação dos fornecedores para negociarem a redução dos preços aos valores praticados pelo mercado.

 

Os fornecedores que não aceitarem reduzir seus preços aos valores praticados pelo mercado serão liberados do compromisso assumido, sem aplicação de penalidade (§1º).

 

AUMENTO DO PREÇO PRATICADO NO MERCADO

(art. 19)

 

Se o fornecedor não tiver condições de manter o preço registrado na ARP, o órgão gerenciador poderá:

 

I - liberar o fornecedor do compromisso assumido, caso a comunicação ocorra antes do pedido de fornecimento, e sem aplicação da penalidade se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados; e

II - convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação.

 

 

Reitere-se, mais uma vez, que, por exclusiva opção consagrada no Decreto nº 7.892/2013, somente poderá haver alteração dos preços registrados para efetivar a redução dos valores, tendo em vista que, de forma superveniente à formalização da ARP, os preços praticados em mercado são inferiores àqueles registrados.

Caso os preços praticados no mercado se tornem superiores àqueles registrados, a única postura prevista para a Administração é a convocação do fornecedor para “negociar” a manutenção do preço registrado e, caso o particular não tenha condições de manter o compromisso assumido, será liberado sem aplicação de penalidade.

Assim, conforme pontua Marçal Justen Filho, pelo sistema adotado no Decreto nº 7.892/2013, “somente se admite a revisão de preços a favor da Administração”, não havendo previsão de “revisão de preços para produzir benefícios a favor do particular, mesmo reconhecendo que os preços de mercado são superiores aos previstos na proposta do licitante[10].

Ou seja, caso não seja possível encontrar um particular, na ordem de classificação da licitação que deu origem à ARP, que aceite fornecer o bem ou serviço pelo preço originalmente registrado e que se encontre inferior ao praticado no mercado (o que pressupõe o afastamento da lógica de maximização do lucro e até mesmo a viabilidade econômica da tratativa[11]), a solução será o cancelamento da ata e, em sendo necessário o fornecimento, a adoção de um dos seguintes caminhos por parte da Administração: i) realização de uma licitação tradicional para obter a contratação almejada; ii) realização de nova licitação para formação de registro de preço; iii) dispensa de licitação com base em algumas das hipóteses previstas no art. 24 da Lei nº 8.666/1993 ou, se for o caso, no art. 4º da Lei nº 13.979/2020;

De toda forma, independentemente do caminho a ser adotado, o fato é que os preços obtidos serão correspondentes aos valores praticados no mercado e que, presume-se, serão superiores àqueles então registrados na ARP cancelada.

Analisando a sistemática então adotada no art. 19 do Decreto nº 7.892/2013 - talvez forjada em contexto de normalidade institucional e econômica -, constata-se que a solução regulamentar, pode comprometer, em determinados casos concretos, os efeitos dos princípios da eficiência e economicidade, sob todos os prismas.

Ao sequer conferir ao administrador a possibilidade de sopesar as alternativas, diante dos custos transacionais e riscos envolvidos, o regulamento federal simplesmente opta pelo caminho mais tortuoso, custoso e demorado para o atendimento do interesse público: iniciar “do zero” um novo procedimento administrativo para se chegar a uma contratação cujo valor será presumidamente compatível com aquele preço que poderia ser obtido caso se admitisse a revisão “a maior” da ARP. 

Partido de condições até certo ponto factíveis, Marçal Justen Filho é enfático ao considerar que, nos casos de alteração de preços em mercados regulados (como o de combustíveis), seria um “despropósito [...] determinar a extinção do registro de preços e promover uma nova licitação, que produzirá precisamente os mesmos resultados que seriam atingidos mediante a revisão dos preços registrados[12].

No cenário atual, considerando a extraordinária elevação de preços praticados no mercado para praticamente todos os tipos de bens e serviços em face da crise humanitária, social e econômica decorrente da pandemia do coronavírus sem precedentes na história brasileira, há uma presumida derrotabilidade[13] da solução adotada pelo art. 19 do Decreto nº 7.892/2013.

Apenas para subsidiar a presunção de excepcionalidade da majoração de preços praticados no mercado, o §3º do art. 4º-E da Lei nº 13.979/2020 (incluído pela Medida Provisória nº 926/2020), admite a contratação pelo Poder Público de valores superiores aos preços estimados quando decorrentes de "oscilações ocasionadas pela variação de preços".

Cumpre, nessa altura, frisar que o tema em discussão se circunscreve às nuances concernentes à revisão dos preços registrados propriamente ditos (entendidos como compromisso por parte do fornecedor), não alcançando a disciplina do reequilíbrio econômico-financeiro inerente aos contratos, tendo em vista a clara distinção entre a ARP e os instrumentos contratuais decorrentes de seu acionamento[14][15].

De toda forma, valer-se-á da disciplina regulamentar relativa à admissibilidade das alterações dos instrumentos contratuais decorrentes do acionamento de ARP justamente para lastrear, por um viés pragmático e consequencialista, a razoabilidade da permissão de elevação dos valores registrados quando, por fatos excepcionais e supervenientes, os preços de mercado mostrarem-se superiores aos consignados na ARP.

Ao pontuar, em seu art. 15, a distinção entre a ARP e os instrumentos contratuais dela decorrentes, o Decreto nº 7.892/2013, no §3º do art. 12 preconiza que “os contratos decorrentes do Sistema de Registro de Preços poderão ser alterados, observado o disposto no art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993”.

Ora, tendo em vista tal previsão regulamentar, imaginemos uma factível hipótese: uma ARP ainda vigente, que tem por objeto a prestação de serviços de higienização de leitos de UTI, tem seus preços defasados em relação aos valores praticados em mercado em face da crise do coronavírus. Submetido ao regime do art. 19 do Decreto nº 7.892/2013, o órgão gerenciador da ARP se vê no seguinte dilema: i) cancelamento da ata e realização de nova licitação ou de dispensa fundada no art. 4º da Lei nº 13.979/2020, possivelmente para obter os preços já elevados praticados em mercado; ii)  aciona a ARP, gerando o instrumento contratual respectivo e, ato contínuo, aplicando o disposto no art. 65, II, “d”, da Lei nº 8.666/1993, formaliza o aditamento para reequilíbrio econômico-financeiro da avença, chegando, assim, aos preços efetivamente praticados no mercado em razão da crise.

De se notar na hipótese apresentada que, a despeito da suposta impossibilidade de aumento dos preços registrados à luz do art. 19 do regulamento federal, será possível alcançar a efetiva alteração do preço da contratação por uma via, admitida pelo mesmo Decreto nº 7.893/2013, mas que impõe maiores custos transacionais além de demandar um precioso tempo por parte da Administração[16], tão escasso em contexto de enfrentamento de uma crise sem referências. 

Destarte, ainda na esteira da hipótese aventada, a admissibilidade excepcional de majoração dos preços registrados, além consagrar possibilidade que pode atender à eficiência e à economicidade na gestão pública (algo alvissareiro em tempos de crise), contempla, ainda, as atas de registro de preço para bens cujo fornecimento configura “pronta entrega”, nas quais o acionamento é materializado por instrumentos equivalentes ao termo de contrato, como a nota de empenho.

Ainda, caso seja oportunizado ao órgão gerenciador majorar dos preços registrados na ARP em observância à competência prevista no art. 5º, VIII, do Decreto nº 7.892/2013, os efeitos positivos de tal conduta seriam replicados aos órgãos participantes e, ainda, aos eventuais “caronas”, o que, de certa forma, vai ao encontro do propósito da Medida Provisória nº 951/2020, conforme se extrai de sua exposição de motivos[17].

Afinal, sob o ponto de vista do controle, a adoção do caminho que represente o melhor equilíbrio no sentido na maximização do bem-estar social (eficiência em sentido econômico[18]), deve ser considerada de acordo com o art. 22 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Afinal,

 

[...] o controle não pode desconsiderar as circunstâncias concretas da decisão do gestor (primado da realidade), devendo verificar a existência de espaços decisórios conformados pelo ordenamento e como foram utilizados. O que não se pode admitir é a mera substituição de opinião por diferença de interpretação, quando ambas forem juridicamente sustentáveis.[19]

 

Em suma, a partir de uma análise sistêmica do regulamento federal do SRP e à luz dos princípios da eficiência e economicidade, é possível concluir pela possibilidade de elevação dos preços consignados em ARP formalizada com base no Decreto Federal nº 7.892/2013 em razão de fatos supervenientes e circunstâncias excepcionais que, comprovadamente, alterem os valores praticados em mercado como o caso da crise decorrente do coronavírus.

Evidente que a intepretação que se advoga como possível depende da demonstração, em cada caso, dos elementos fáticos e jurídicos que revelem a circunstância concreta de elevação dos valores praticados em mercado e o interesse público que recomende a alteração, tendo-se em vista a necessidade premente do bem ou serviço e, também, a impossibilidade ou as desvantagens, em princípio, decorrentes da utilização das demais alternativas.

No que tange à “comprovação” da oscilação de mercado, notadamente do preço atualmente praticado, em se tratando de ARP que tenha por objeto bens e serviços destinados, direta ou indiretamente, ao enfrentamento da emergência de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979/2020, infere-se a adequação da aplicação do procedimento simplificado de pesquisa de preços estabelecido no inciso VI do art. 4º-E da Lei nº 13.979/2020, incluído pela Medida Provisória nº 926/2020[20], sem prejuízo da aplicação, no que couber, das regras específicas atinentes à pesquisa de mercado, sejam as disposições vertidas em legislação local e/ou àquelas constantes da Instrução Normativa SLTI/MPOG nº 5, de 2014.

A bem da verdade, por representar a alteração a maior de preços registrados uma situação de excepcionalidade, é recomendável que o gestor público apresente justificativa robusta contextualizada da repercussão abrupta e substancial, decorrente da pandemia do coronavírus, na cadeia de produção dos bens e serviços, afetando a formação de preços no mercado relevante. Para tanto, a justificava da oscilação de mercado deverá ser pautada em elementos empíricos (e não meramente retóricos), pautados na relação oferta-demanda: restrição de disponibilidade de bens e serviços; dificuldades logísticas; existência de "listas de espera" e condições especiais de pagamento para obtenção de preferência; indisponibilidade ou dificuldade de matérias-primas e insumos; restrição e intercorrência nos procedimentos de importação de equipamentos, matérias-primas e insumos, entre outros. Em se tratando de modificação que impõe maiores ônus para os cofres públicos, exige-se também maior diligência dos gestores para comprovação das circunstâncias concretas.

Ainda quanto à “comprovação” dos preços, mesmo que para os objetos relacionados à pandemia do coronavírus, para a revisão da ARP, compreendemos ser inaplicável a exceção prevista no §2º do art. 4º-E da Lei nº 13.979/2020 acerca da possibilidade, mediante justificativa da autoridade competente, de dispensar a realização da estimativa de preços.

Diante das respostas desenvolvidas, se mostra possível reunir as seguintes conclusões:

 

a) os atos normativos primários que dispõem sobre o SRP, em especial as Leis nº 8.666/1993 e nº 10.520/2002, não veiculam o impedimento, a priori, de revisão da ata de registro de preços no sentido de promover a elevação dos preços registrados em razão de fatos supervenientes e circunstâncias excepcionais que, comprovadamente, alterem profundamente os valores praticados em mercado;

 

b) considerando a inexistência de impedimento veiculado em ato normativo primário, o regulamento do SRP editado por parte de qualquer entidade federativa em atendimento ao §3º do art. 15 da Lei nº 8.666/1993 poderia dispor sobre a possibilidade e as condições procedimentais de alteração a maior de preços registrados em ata;

 

c) a partir de uma análise sistêmica do Decreto Federal nº 7.892/2013 e à luz dos princípios da eficiência e economicidade, é juridicamente viável a revisão de ARP para aumento dos preços registrados em razão de fatos supervenientes e circunstâncias excepcionais que, comprovadamente, alterem os valores praticados em mercado, como o caso da crise decorrente do coronavírus.

 

A despeito da conclusão apresentada na alínea “c”, é importante e recomendável a edição de ato normativo regulamentar por parte da União e dos demais entes federativos, estabelecendo a possibilidade de alteração a maior de preços consignados em ata de registro de preço que tenha por objeto bens e serviços destinados, direta ou indiretamente, ao enfrentamento da emergência de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979/2020. Com efeito, mesmo em momentos que impõem agilidade nas decisões há que se cuidar também da proteção ao Erário e da segurança jurídica das relações contratuais. Disciplina regulamentar mais específica da possibilidade de majoração dos preços é importante para orientar e resguardar os agentes públicos, sobretudo diante das circunstâncias de risco envolvidas, e também os particulares.

Finalmente, é importante relembrar que o dever imposto aos gestores públicos de atenderem aos interesses públicos prementes não pode caracterizar simples submissão ao mercado. Para além da obediência aos princípios e objetivos da ordem econômica, espera-se que os gestores sejam inovadores e proativos na busca de soluções que valorizem também o poder de compra estatal para extrair as vantagens possíveis para o interesse público. Criação de consórcios e realização de licitações conjuntas (inclusive para formação de registro de preços) são exemplos de soluções que se apresentam para unir esforços – sobretudo de Municípios – para buscar melhores preços[21] e contratações eficientes.

 

 



[1] Artigo originalmente publicado em Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 19, n. 221, p. 9-16, maio 2020.

[2] As premissas e conclusões abordadas no presente artigo aplicam-se ao chamado “SRP no Regime Diferenciado de Contratações” (art. 32 da Lei nº 12.462/2011, regulamentado pelo Decreto Federal nº 7.581/2011) e no “SRP das Estatais” (art. 66 da Lei nº 13.303/2016), considerando que as disposições normativas referidas são substancialmente similares à disciplina contida no inciso II e §3º do art. 15 da Lei nº 8.666/1993.

[3] As complexas questões morais envolvendo aumento de preços em época de tragédias, muitas vezes questionando os valores não econômicos subjacentes ao mercado (não abordados neste estudo) são tratados na já clássica obra de Michael Sandel (SANDEL, Michael J. Justiça - o que é fazer a coisa certa. Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015).

 

[4] Afinal, os prováveis custos de transação que o fornecedor da ARP terá de incorrer para evitar prejuízo decorrente da imperatividade do fornecimento de bem e serviço objeto de oscilação de mercado compõem a formação do preço ofertado à Administração Pública. Para tanto, vide a precisa crítica de Rafael Véras: "De acordo com Oliver Eaton Williamson, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2009, os custos de transação têm lugar porque não se adquire bens e serviços somente pelos seus custos de produção, na medida em que, em toda relação contratual, estarão agregados os custos necessários à formação do ajuste e à sua manutenção. Ainda de acordo com o referido autor, no âmbito de uma relação contratual, os agentes incorreriam em custos na fase pré-contratual (ex ante) e, posteriormente, à sua celebração (ex post). Na fase pré-contratual, os principais custos de transação tem lugar: na redação do contrato, na definição do seu objeto, nas negociações para a obtenção das melhores condições para a contratação. Após a sua formação, os custos incidentes sobre tais avenças são os relacionados à fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais, à solução dos conflitos e à repactuação das condições inicialmente acordadas" (VÉRAS, Rafael. O que a Análise Econômica do Direito tem a ver com os contratos administrativos?. Direito do Estado, n. 294, nov./2016. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Rafael-Veras/o-que-a-analise-economica-do-direito-tem-a-ver-com-os-contratos-administrativos>).

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: RT, 2019, p. 310-311.

[6] Idem, p. 312.

[7] Nesse sentido, vide: MOTTA, Fabrício. Função normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 232-234.

[8] A bem da verdade, o Decreto nº 7.892/2013, atualmente vigente, é o terceiro regulamento federal do SRP. O primeiro foi veiculado pelo Decreto nº 2.743/1998 e o segundo pelo Decreto nº 3.931/2001.

[9] Para uma avaliação crítica acerca do papel orientativo da normatização federal em matéria de contratações públicas, vide: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Por um "giro hermenêutico" no Direito Administrativo de estados e municípios. Consultor Jurídico, 16/09/2019. Dsiponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-16/victor-amorim-visao-nacional-compras-publicas>.

[10] Ob. cit., p. 350.

[11] A insuficiência do incentivo para o particular ser estimulado a aceitar a negociação nos termos do art. 19 do Decreto nº 7.892/2020 deve ser avaliada sob a ótica da Análise Econômica do Direito. Para tanto, sugere-se a leitura de: NÓBREGA, Marcos. Direto e Economia da Infraestrutura. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 24-34; 42-47; GICO JR., Ivo. Introdução ao Direito e Economia. In: TIMM, Luciano Benetti. Direito e Economia no Brasil. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 18-21; 26-28.

[12] Ob. cit., p. 351.

[13] Para maior desenvolvimento acerca da Teoria da Derrotabilidade das Normas (Defeasibility), vide: HART, Herbert L. A. The Ascription of Responsibility and Rights. Proceedings of the Aristotelian Society, New Series, vol. 49, 1948-1949, p. 171-194. Disponível em: <http://legacydirs.umiacs.umd.edu/~horty/courses/readings/hart-1948-ascription.pdf>. SERBENA, Cesar Antonio. Normas jurídicas, inferência e derrotabilidade. In: SERBENA, Cesar Antonio (coord). Teoria da Derrotabilidade: pressupostos teóricos e aplicações. Curitiba: Juruá, 2012. VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Hermenêutica jurídica e derrotabilidade. Curitiba: Juruá, 2010.

[14] Nesse sentido, vide a redação do art. 15 do Decreto nº 7.892/2013: " A contratação com os fornecedores registrados será formalizada pelo órgão interessado por intermédio de instrumento contratual, emissão de nota de empenho de despesa, autorização de compra ou outro instrumento hábil, conforme o art. 62 da Lei nº 8.666, de 1993".

[15] "Tal dispositivo [art. 15 do Decreto nº 7.892/2013] objetiva evitar a confusão entre a ARP e o instrumento contratual decorrente de seu efetivo acionamento. O termo de contrato (ou suas formas alternativas previstas no art. 62 da LGL) tem por escopo formalizar as relações jurídicas obrigacionais estabelecidas entre Administração e o fornecedor que teve seus preços registrados na ARP. Ou seja, o instrumento contratual formaliza os contratos celebrados a partir da ARP" (AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência. 2 ed. Brasília: Senado Federal, 2018, p. 178.

[16] Basta contabilizar o tempo necessário para: formalização do instrumento contratual; publicação de extrato de contrato; instrução do processo de revisão dos preços por desequilíbrio da equação econômico-financeira (tema extremamente complexo, com diversos apontamentos dos órgãos de controle e intercorrências instrucionais); análise da assessoria jurídica acerca da minuta do termo aditivo (art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993; empenho do acréscimo contratual; assinatura do termo aditivo; publicação do extrato do termo aditivo...

[17] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-951-20.pdf>.

[18] “[...] o que está subjacente a esse tipo de raciocínio é que os recursos da sociedade são escassos e podem ser empregados para finalidades diversas (usos concorrentes), mas excludentes, que não necessariamente gerarão o mesmo nível de bem-estar social. Dessa forma, a eficiência alocativa se preocupa com a escolha que gere o maior nível de bem-estar possível. Uma escolha será alocativamente eficiente se não houver qualquer outra alocação dentro da fronteira de possibilidades que gere um bem-estar maior para a sociedade” (GICO JR., Ivo T. Bem-estar social e o conceito de eficiência. SSRN Electronic Journal, out. 2019).

[19] MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no Direito Público: Lei 13.655/2018. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 70.

[20] Cumpre destacar, com grifos, os seguintes trechos da Exposição de Motivos da MPV nº 926/2020: “No que concerne aos termos de referência ou projeto básico simplificados, seu conteúdo, para atender a situação de emergência, terá as seguintes modificações: (a) a fundamentação da contratação será simplificada; (b) a descrição resumida da solução apresentada; e (c) a estimativa dos preços pode ser, excepcionalmente, dispensada, mediante justificativa da autoridade competente, ou poderá ser obtida com a utilização de apenas um dos parâmetros atualmente previstos na legislação vigente, qual sejam, Portal de Compras do Governo Federal, pesquisa publicada em mídia especializada, sítios eletrônicos ou de domínio amplo, contratações similares de outros entes públicos ou pesquisa com os potenciais fornecedores. Além disso, diante da circunstância de crescimento do surto em outros países e aumento da demanda internacional por bens e serviços é evidente que a estimativa de preços poderá não ser a mesma quando da efetiva contratação, por isso, se propõe a inclusão de dispositivo que estabelece que os preços obtidos não impedem a contratação pelo poder público por valores superiores, decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços” [disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-926-20.pdf>].

[21] Diante da potencial “economia de escala” gerada pela compra compartilhada.