É POSSÍVEL A APLICAÇÃO DE PENALIDADES AO FORNECEDOR QUE INTEGRA O CADASTRO DE RESERVA ANEXO À ATA DE REGISTRO DE PREÇOS APÓS SER CONVOCADO E SE RECUSAR A CELEBRAR CONTRATO COM A ADMINISTRAÇÃO?

 

 

As contratações da Administração Pública, por força de norma constitucional [1], como regra, devem ser precedidas de processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes.

A Lei n. 8.666/1993 – Estatuto de Licitações e Contratos Públicos (ELCP) institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, estabelecendo “normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” [2].

Nesse contexto, para fins da análise a que se propõe o presente artigo, destacamos a norma prevista no art. 15 [3], e parágrafos, que apresenta as linhas gerais sobre o registro de preços, que foi regulamentado por meio do Decreto federal n. 7.892/2013.

Nesse ponto, cabe destacar que o registro de preços deve ser precedido de ampla pesquisa de mercado, de modo que a Administração, após planejamento da contratação que se pretende, ou seja, após a definição da sua necessidade, busque junto aos fornecedores informações sobre os objetos existentes, condições de sustentabilidade, qualidade, especificações técnicas, garantia, riscos, preços, etc.

Assim, perceba que a pesquisa de mercado não se limita à realização de pesquisa de preços. Esta é apenas um dos elementos que compõe aquela. A pesquisa de mercado é elaborada para orientar a Administração no planejamento da futura contratação, para que o ente público possa identificar a melhor solução para atender a sua necessidade.

Nesse sentido, oportuno destacar a norma prevista no §1º, do art. 23, do ELCP, segundo a qual:

as obras, serviços e compras efetuadas pela Administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade sem perda da economia de escala. (Grifo nosso).

 

Segundo o Decreto n. 7.892/2013, entende-se por sistema de registro de preços o conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras” [4].

Por conseguinte, observa-se que não se trata de modalidade licitatória, mas de procedimento especial vocacionado ao registro formal de preços para a realização de contratações futuras.

A doutrina especializada ensina que o

Sistema de Registro de Preços é um procedimento especial de licitação que se efetiva por meio de uma concorrência ou pregão sui generis, selecionando a proposta mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, para eventual e futura contratação pela Administração [5].

 

Nesse contexto, o licitante apresenta sua proposta de preço para o item definido pela Administração, considerando a unidade de medida prevista no edital, por exemplo: edital para aquisição de 500 kg de café – proposta com preço para 1 kg de café.

Desse modo, o licitante mais bem classificado terá seus preços e quantitativos registrados na ata de registro de preços[6]. Isto é, não há assinatura imediata de contrato.[7]

Portanto, “Registro de Preços significa a licitação não para compras imediatas, mas para eleição de cotações vencedoras, que, ao longo do prazo máximo de validade do certame podem ensejar, ou não, contratos de compra”.[8]

Noutro rumo, o legislador, na luz do princípio constitucional da eficiência instituiu o mecanismo do cadastro de reserva, com o objetivo de compor lista de eventuais “substitutos” do licitante melhor classificado, no caso de impossibilidade de atendimento da necessidade administrativa pelo primeiro colocado da ata.

Assim, “será incluído, na respectiva ata na forma de anexo, o registro dos licitantes que aceitarem cotar os bens ou serviços com preços iguais aos do licitante vencedor na sequência da classificação do certame (...)”.[9]  

Desta forma, o cadastro de reserva é formalizado mediante anexo à ata de registro de preços, observando-se a ordem de classificação na fase competitiva, sendo composto pelos licitantes que manifestem vontade de fornecer bens ou prestar serviços, com os mesmos preços cotados pelo licitante vencedor, caso este não cumpra com as obrigações pactuadas.

Assim sendo, tem-se que a adequação do preço cotado ao ofertado pelo primeiro classificado é requisito essencial para que os demais licitantes possam figurar no cadastro de reserva. Oportuno salientar que, além da redução dos preços, a proposta deve atender as especificações técnicas previstas no edital.

Desta forma, após homologação do certame, a Administração terá ao seu dispor ata de registro de preços e quantitativos do licitante melhor classificado e, sendo o caso, contará com cadastro de reserva composto pelos demais licitantes que aceitaram cotar os bens ou serviços com preços iguais ao do vencedor.

Nessa seara, destaque-se a norma prevista no art.14, do Decreto n. 7.892/2013, segundo a qual “a ata de registro de preços implicará compromisso de fornecimento nas condições estabelecidas, após cumpridos os requisitos de publicidade”.

Neste ponto, surge o seguinte questionamento: o compromisso de fornecimento aplica-se aos licitantes que compõe o cadastro de reserva? Parece-nos que sim, salvo inexequibilidade da proposta, devidamente comprovado, no momento da convocação para assinatura do contrato.

Pois bem. Quando a Administração opta pela utilização do sistema de registro de preços para atender as suas necessidades, pressupõe a realização de planejamento prévio, para identificar a solução adequada e previsão estimada dos quantitativos que poderão ser contratados.

Nesse rumo, percebe-se que a boa-fé é um dos elementos essenciais que norteiam a relação jurídica travada entre à Administração e os particulares interessados em contratar com aquela.

Ora, a conduta das partes deve ser orientada por uma “diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico”.[10] Segundo a doutrina, a boa-fé subjetiva consiste no estado de ânimo do sujeito que pratica determinado ato - animus; a boa-fé objetiva traduz-se em regra de comportamento, de conteúdo ético e juridicamente exigível.

Ademais, na luz da eticidade como elemento estruturante das relações jurídicas, a doutrina civilista ensina que

o contrato não se esgota apenas na obrigação principal de dar, fazer ou não fazer. Ladeando, pois, esse dever jurídico principal, a boa-fé objetiva impõe também a observância de deveres jurídicos anexos ou de proteção, não menos relevantes, a exemplo dos deveres de lealdade e confiança[11]. (Grifo nosso).

 

Sabe-se que não há uma relação contratual com assinatura da ata de registro de preços, muito menos para com aqueles que constam no cadastro de reserva, anexo à ata. No entanto, todos os envolvidos em tais relações jurídicas ocupam posições específicas, devendo ser leais aos compromissos assumidos, fomentando uma relação assentada na confiança que, por consequência, produz segurança jurídica.

No entanto, em tais situações a conduta das partes envolvidas é orientada pela boa-fé, notadamente no aspecto objetivo, de modo que a Administração promete realizar contratações futuras com o primeiro classificado no procedimento licitatório; o licitante vencedor assume a obrigação de fornecer os bens ou serviços pelos preços e quantidades registrados; os particulares cadastrados manifestam vontade em cotar o objeto com preços iguais ao do licitante vencedor.

Ora, sem a manutenção de tais compromissos sustentados pela boa-fé objetiva, que reclama das partes agir conforme a confiança depositada, nos termos da manifestação de vontade anterior, salvo situação na qual o preço registrado torne-se inferior ao do mercado e não possa ser cumprido em razão de sua inexequibilidade.

Além disso, oportuno destacar que a ata de registro de preços é documento vinculativo, de caráter obrigacional, cuja natureza se empresta, por extensão, ao cadastro de reserva sob pena de esvaziamento de tal instituto e da não realização dos princípios da eficiência e da economicidade.

Some-se a isso o fato de que o princípio da confiança legítima irradia sobre a Administração, desautorizando a mobilização do aparato administrativo e a execução de despesas para a realização de procedimento licitatório para registro de preços sem qualquer desígnio.

Dito de outra forma, é ilegítima a promoção de licitação que não seja destinada a atender determinada finalidade pública. Não se admite que a Administração fomente falsas expectativas para as empresas que atuem no mercado, utilizando do sistema de registro de preços sem planejamento e sem motivação adequados.

Igualmente, não se consente que o particular adote comportamento contraditório, apto a frustrar a expectativa que gerou na outra parte (Administração), mediante manifestação de vontade anterior[12] (será incluído, na respectiva ata na forma de anexo, o registro dos licitantes que aceitarem cotar os bens ou serviços com preços iguais aos do licitante vencedor na sequência da classificação do certame[13]).

Nesse sentido, ensina-nos a doutrina especializada que

pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva.[14];[15]

 

Outrossim, não considerar o caráter obrigacional e vinculativo do cadastro de reserva é medida irrazoável, que pode gerar os mais variados inconvenientes e prejuízos, diante da frustração do resultado a ser alcançado, ou seja, a não contratação da solução necessária para atender o interesse público.

Portanto, refutar o elemento obrigacional do cadastro de reserva equivale ao seu esvaziamento por completo, ou, ao menos, revesti-lo de insegurança jurídica, posto que a materialização dos compromissos por ele representados ficaria condicionada ao livre arbítrio do particular, que poderia refutá-los sem qualquer motivação.

Assim sendo, uma vez convocado pela Administração Pública para assinar contrato, o fornecedor que integra o cadastro de reserva não pode se recusar de forma injustificada, sob pena de aplicação das penalidades previstas na lei, no edital e na ata de registro de preços.

Nesse sentido, o Decreto n. 7.892/2013, prescreve que a recusa injustificada de fornecedor classificado em assinar a ata, dentro do prazo estabelecido neste artigo, ensejará a aplicação das penalidades legalmente estabelecidas”.[16]

O que se entende por recusa injustificada do fornecedor? Parece-nos que, tal resposta será obtida a contrário sensu, ou seja, a recusa justificada está associada à inexequibilidade da proposta no momento da convocação, quer dizer, no caso de preços inexequíveis, que são aqueles que não se revelam capazes de possibilitar a alguém uma retribuição financeira mínima (ou compatível) em relação aos encargos que terá de assumir contratualmente”.[17][G.N.].

Nessa seara, cabe ao fornecedor demonstrar de forma objetiva a inexequibilidade de sua proposta a partir dos critérios definidos no edital, uma vez que os critérios “previstos nas normas legais, de aferição da exequibilidade das propostas possuem apenas presunção relativa, cabendo à administração propiciar ao licitante que demonstre a viabilidade de sua proposta”.[18]

Contudo, em não sendo demonstrada a inexequibilidade da proposta, ou seja, não demonstrado que os preços que compõe a proposta cadastrada encontram-se abaixo dos praticados no mercado e, portanto, caracterizada a recusa injustificada do fornecedor, admite-se a aplicação das penalidades previstas no edital e na legislação de regência, diante do descumprimento do compromisso assumido.[19]

 

Lei n. 10.520//2002

Art. 7º  Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame, ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal, ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4o desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais.


Decreto n. 7.892/2013

Art. 14.  A ata de registro de preços implicará compromisso de fornecimento nas condições estabelecidas, após cumpridos os requisitos de publicidade.

Parágrafo único.  A recusa injustificada de fornecedor classificado em assinar a ata, dentro do prazo estabelecido neste artigo, ensejará a aplicação das penalidades legalmente estabelecidas.

 

Portanto, entende-se que:

(i) o conteúdo da eticidade, que é elemento estruturante das relações jurídicas, incide na fase pré-contratual sobre a manifestação de vontade das partes envolvidas;

(ii) sob a ótica da boa-fé, bem como a necessidade de preservação da lealdade aos compromissos assumidos, não se admite a prática de condutas contraditórias e incompatíveis entre si;

(iii) o cadastro de reserva tem natureza obrigacional, sob pena de esvaziamento dos seus objetivos e da não realização dos princípios da eficiência e da economicidade;

(iv) a recusa justificada do licitante está associada à inexequibilidade da proposta no momento da convocação, que deve ser demonstrada de forma objetiva, a partir dos critérios definidos no edital;

(v) não sendo demonstrada a inexequibilidade da proposta, fica caracterizada a recusa injustificada do fornecedor, admitindo-se a aplicação das penalidades previstas na legislação de regência, no edital e na ata de registro de preços, diante do descumprimento das obrigações assumidas.



[1] Art. 37, XXI, Constituição Federal.

[2] Art. 1º, caput.

[3] Lei n. 8.666/1993. Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão: § 1o O registro de preços será precedido de ampla pesquisa de mercado.

[4] Art. 2º, I.

[5] FERNANDES,  Jorge Ulisses Jacoby. Sistema de registro de preços e pregão presencial e eletrônico. 6. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 32.

[6] Registro formal do preço cotado pelo licitante para a unidade de medida ou para o lote definidos pela Administração.

[7] Decreto n. 7.892/2013, art. 11, I.

[8] RIGOLIN, Ivan Barbosa; BOTTINO, Marco Tullio. Manual prático das licitações: Lei nº 8.666/93. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 227.

[9] Decreto n. 7.892/2013, art. 11, II.

[10] GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2017. pág. 406.

[11] GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2017. pág. 407.

[12] Teoria dos atos próprios – venire contra factum proprium.

[13] Decreto n. 7.892/2013, art. 11, II.

[14] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 7ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método. 2017. pág. 424.

[15] Enunciado n. 362 da IV Jornada de Direito Civil: A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil.

[16] Decreto n. 7.892/2013, art. 14, p. único.

[17] MENDES, Renato Geraldo. Lei Anotada. Zênite. 2017.

[18] Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 2.143/2013. Plenário. Rel. Min. Benjamin Zymler. DOU de 22.08.2013.

[19] Lei n. 8.666/1993. Art. 81.  A recusa injustificada do adjudicatário em assinar o contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo estabelecido pela Administração, caracteriza o descumprimento total da obrigação assumida, sujeitando-o às penalidades legalmente estabelecidas.