A PARTICIPAÇÃO POPULAR NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS COMO REFLEXO DO DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO: UMA ANÁLISE COMPARADA ENTRE BRASIL E ARGENTINA

 

Renila Lacerda Bragagnoli

@advocaciaestatal

Advogada da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba – Codevasf. Chefe da Unidade de Assuntos Administrativos (Consultivo) da Assessoria Jurídica.

Mestranda em Direito Administrativo e Administração Pública pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Especialização em Políticas Públicas, Gestão e Controle da Administração pelo Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP/DF).

 

1. RESUMO

              O  desenvolvimento do princípio da Boa Administração como direito fundamental traz a necessidade cada vez maior de integração entre sociedade e a gestão pública, de maneira que o Brasil desenvolveu o Procedimento de Manifestação de Interesse Privado e a Argentina, a Iniciativa Privada, institutos de participação social em matéria de contratações públicas, com vistas a permitir a colaboração da seara privada na definição e na implementação de políticas públicas da Administração, o que reflete, sobremaneira, na nova tendência do Direito Administrativo em se aproximar o Direito Privado como forma eficiente de atender aos interesses de todos os envolvidos.

 

2. INTRODUÇÃO

              Uma tendência relevante do Direito Público contemporâneo é sua proximidade com o Direito Privado, para que, além de tentar fortalecer as relações entre o Estado e os indivíduos, a Administração ofereça e incentive práticas de iniciativa popular, não apenas para aproximar o administrado da Gestão Pública, mas também como forma de integrar a sociedade ao Poder Executivo, fazendo com que esta participe das decisões e escolhas sobre quais políticas públicas devem ser desenvolvidas e implementadas.

              Um grande princípio que hodiernamente se desenvolve e ganha robustez é o da Boa Administração, o que implica, necessariamente, a presença real daqueles que compõem a cidadania, “evitando que as fórmulas fechadas que procedem das ideologias deste jaez excluam de sua consideração determinados setores sociais”( RODRÍGUEZ-ARAÑA MUÑOZ, 2012, p. 37).

              Como conclama o qualificado professor Juarez de Freitas (2015), é urgente “libertar a avaliação do preconceito de que as políticas públicas seriam essencialmente programas de governo”, haja vista que, em consonância com o Estado Democrático de Direito, “como nunca, a legitimidade reivindica o hábil e tempestivo cumprimento de obrigações enfeixadas no direito fundamental à boa administração pública”, pressupondo “a construção de ambiente institucional amigável para parceiros público-privados”.

              Alinhavado com esse entendimento, destaca-se que um dos elementos que integram as políticas públicas é o planejamento, o qual, conforme delimita Fonte (2015, p. 84):

Situa-se num âmbito próprio, diferenciado das leis (normas gerais) e dos atos administrativos (concretos), exatamente porque, ao lado das regras, também consagram princípios e diretrizes. Sua natureza é híbrida, e ele possui singular importância em matérias de políticas públicas, pois, conforme pontuado, permite transparência e racionalização no âmbito da atividade administrativa, reduzindo, ainda, o espaço de discricionariedade do administrador.

              É nesse elemento que a participação social se faz necessária, a partir de mecanismos que possibilitem que as partes que não integram a Administração Pública possam colaborar com o planejamento das políticas públicas, considerando que este elemento permite aos indivíduos se preparem adequadamente à ação governamental, ante a transparência necessária, bem como atuem, conjuntamente com a Administração, de maneira racional, excluindo-se o elemento aleatório da ação estatal (FONTE, 2015, p. 82).

Nessa esteira, Rodriguez-Araña (2012, p. 38) é assertivo ao afirmar que

A determinação dos objetivos das políticas públicas não pode operar-se realmente se não for a partir da participação cidadã. A participação cidadã configura-se como um objetivo público de primeira ordem, já que constitui a própria essência da democracia e, por isso, ocupa um lugar sobressalente entre os parâmetros centrais do bom governo e da boa administração; uma atuação pública que não persiga, que não procure um grau mais alto de participação cidadã, não contribuiu com o enriquecimento da vida democrática e se opera, portanto, em detrimento dos mesmos cidadãos aos quais se pretende servir. Mas a participação não se formula somente como objetivo político, eis que as novas políticas públicas reclamam a prática da participação como método.

              Sob essa perspectiva, o Direito Administrativo ganha relevo no Estado Democrático, sendo, nas palavras de Rodriguez-Araña (2012, p. 133), “um Direito do poder público para a liberdade solidária” e, nesse sentido, a participação popular como método, especialmente em procedimentos de contratações públicas, foi desenvolvida através de institutos similares na Argentina e no Brasil, tendo em conta que, em matéria de atendimento ao interesse geral, as contratações públicas são os mecanismos clássicos que garantem o atendimento do interesse público e a efetividade dos direitos fundamentais.

 

3. O PROCEDIMENTO DE MANIFESTAÇÃO DE INTERESSE DO BRASIL

              No Brasil, a Lei nº 13.303/16 prevê expressamente a possibilidade de adotar o Procedimento de Manifestação de Interesse Privado - PMI[1] para receber propostas e projetos de empresas, a fim de atender às necessidades previamente identificadas, delegando ao regulamento a definição de regras específicas, para que o autor do projeto possa participar da licitação para a execução do projeto (possibilidade proibida em outras legislações nacionais) e possa ser compensado pelos custos aprovados pelos órgãos que executaram o PMI, caso não ganhe o certame, desde que haja a cessão dos direitos autorais.

              O PMI é, portanto, um instituto com vistas à plena execução da função social da empresa estatal, pois visa a captar o conhecimento desenvolvido pela iniciativa privada, através do diálogo com o mercado, permitindo que as interessadas apresentem soluções previamente ditas como viáveis para subsidiar licitações futuras.

              A partir de uma ampla análise do sistema jurídico, o instituto não é uma inovação da Lei nº 13.303/16, já havia sido consolidado dentro do escopo restrito de concessões de serviço público e parcerias público-privadas, sendo regulado pelo Decreto nº 8.428/15, o qual, por sua vez, não possui cumprimento obrigatório por parte das empresas estatais.

              Conforme definido por Bittencourt (2017, p. 136), foi um instrumento adotado por concessões e PPPs com resultados eficientes, o que levou o legislador a entender que também poderia ser bem aplicado nas licitações realizadas pelas empresas estatais, em razão do seu novo regime licitatório inaugurado pela Lei nº 13.303/16, de modo que “na prática, a Administração expede um edital de chamamento público para que os eventuais interessados privados apresentem estudos e projetos específicos, conforme regras predefinidas, que possam ser úteis à elaboração do edital de licitação pública e ao contrato.”

              Embora seja um instituto previsto pela Lei das Estatais em busca de contratações mais eficientes, a Lei não detalhou seu procedimento, o que fica delegado à regulamentação interna de cada entidade, podendo ser utilizadas as balizas trazidas pelo Decreto nº 8.428/15[2], que foi recentemente alterado pelo Decreto nº 10.104/19[3].

              O uso do PMI busca diagnosticar, antecipar e resolver, inclusive na fase interna da licitação, qualquer problema que possa surgir durante o processo de contratação, uma vez que seu escopo não é apenas fortalecer a participação da iniciativa privada na formulação de políticas públicas ou administrativas, mas também tem a natureza de ser um método eficaz para reduzir a disparidade de informações entre a administração e o mercado, que geralmente possui o maior conhecimento técnico, como frisou Binenbojn (2017, p. 215).

              Dessa forma, o instituto é um procedimento administrativo consultivo prévio, pelo qual a Administração Pública, de acordo com Schiefler (2015), “lança e conduz um edital de chamamento público para que os eventuais interessados sejam autorizados a apresentar estudos e projetos específicos, conforme diretrizes predefinidas, que sejam úteis à elaboração do edital de licitação pública e ao respectivo contrato.”

              Embora se reconheça que o PMI é um instrumento relevante para reduzir a assimetria de informações observada entre a Administração Pública e a seara privada, seu maior valor é, sem dúvida, o benefício potencial da eficiência democrática, haja vista que uma das características do instituto é a abertura necessária à participação popular no processo de tomada de decisões administrativas, mesmo para agentes que não representam os interesses de uma sociedade empresarial, como organizações da sociedade civil ou cidadãos comuns.

              Portanto, estima-se um potencial para materializar uma democracia participativa, sendo o PMI parte de um “contexto político-social cujo diálogo entre a Administração Pública e os indivíduos privados é inevitável e necessário. Assim, atribuiu autonomia jurídica e institucionalizou essa relação antes da licitação, com procedimento administrativo e participativo”, como pontuou Schiefler (2015), de maneira que se revela, mediante adoção do Procedimento de Manifestação de Interesse Privado, à efetividade do direito fundamental à boa administração, nas modernas linhas principiológicas que compõem o Estado Democrático de Direito.

 

3.1. A PREVISÃO DO PMI NO PROJETO DA “NOVA LEI DE LICITAÇÕES”

              Inspirado pelas  disposições da Lei nº 13.303/16, legislação primeira que adotou o Procedimento de Manifestação de Interesse Privado para fins de licitações e contratos administrativos, alargando a margem de atuação que, inicialmente, pertencia apenas à seara de concessões, parcerias público-privadas, e, mais recentemente, estruturação de desestatização, o potencial para que o PMI sirva como uma instituto apto a promover a participação, de maneira democrática, da iniciativa privada nas decisões da Administração, foi reconhecido também no PL 1292/1995, o Projeto de Lei da “Nova Lei de Licitações”[4].

É conveniente rememorar, o que é feito tempestivamente por Moreno (2019), que a Lei nº 8.666/93 não admite o PMI porque, atualmente, o seu art. 9º veta a participação, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários, (i) do autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica; e (ii)  de empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo ou da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto ou controlador, responsável técnico ou subcontratado; e, ainda, (iii) de servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação.

Como já esclarecido por Fortini e Rainho (2019), o referido Projeto de Lei “avança na ideia de diálogo, participação e consensualidade entre administração pública e iniciativa privada”, objetivando tal intento quando,

A Redação Final do Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 1.292-F de 1995 do Senado Federal, prevê no artigo 77 que o procedimento de manifestação de interesse terá a natureza jurídica de procedimento auxiliar das licitações e contratações públicas, em conjunto com institutos como credenciamento, pré-qualificação, sistema de registro de preços e registro cadastral.

Para as autoras, além de poder limitar o instituto apenas às startups,

O PMI regulado em linhas gerais no art. 80 do PL n° 1.292/1995 mantém a essência atual, inclusive no que tange à disponibilização dos estudos, ao ressarcimento pelo vencedor da licitação, à ausência de direito de preferência em eventual procedimento licitatório e a não vinculação da administração pública à realização da licitação. Pela proposta do projeto de lei que revogará a Lei n° 8.666/1993, a Administração poderá solicitar à iniciativa privada a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública. A solicitação se dará por meio de PMI, que continuará sendo instaurado mediante a publicação de edital de chamamento público.

Dispõe a proposta de nova lei geral de licitações brasileira que a aceitação dos produtos e serviços advindos do PMI será precedida de parecer fundamentado da Administração, no qual se demonstrará que o produto ou serviço entregue é adequado e suficiente à compreensão do objeto, que as premissas adotadas são compatíveis com as reais necessidades do órgão e que a metodologia proposta é a que propicia maior economia e vantagem entre as demais possíveis.

A iniciativa de ampliar o escopo do PMI no Projeto da Nova Lei de Licitações recepciona o avanço que foi realizado pela Lei das Estatais ao prever o instituto como passível de utilização nos procedimentos licitatórios, como forma de melhor aproveitar a expertise do mercado privado, além de servir como elemento de efetivação da participação social da Administração Pública.

 

3.2. A INICIATIVA PRIVADA DA ARGENTINA

              Na Argentina, há o Decreto 966/200[5], que dispõe sobre o regime da Iniciativa Privada, orientado a estimular indivíduos a participarem de projetos de infraestrutura, sejam obras públicas, concessão de obras públicas, serviços públicos, licenças e/ou qualquer outra modalidade, a serem desenvolvidos através dos diversos sistemas de contratação.

Refere-se à modernização e ao desenvolvimento de novas alternativas para contratação de bens e serviços, realizando o deslocamento do poder do Estado e a redução do Estado Nacional, conglobando no processo de análise e implementação de políticas públicas mais sujeitos entre os diversos operadores jurídicos e econômicos nos mercados de contratações públicas.

No marco da transformação do Estado, nasce este mecanismo da Iniciativa Privada como instrumento de ação que permite a descentralização da definição de políticas públicas para indivíduos comprometidos com o Estado, ao mesmo tempo em que gera participação privada nos benefícios e riscos de projetos de grande escala, sendo um método de financiamento privado de infraestruturas públicas, pois atribui ao iniciador todos os riscos do projeto.

Destarte, a edição do Decreto argentino insere-se como reflexo do direito fundamental à boa administração, à medida que, conforme expôs Rodriguez-Araña (2012, p. 134), “os cidadãos já não são sujeitos inertes que recebem, única e exclusivamente, bens e serviços públicos do poder. Agora, por conta de sua inserção no Estado Social e Democrático de Direito, convertem-se em atores principais da definição e avaliação das diferentes políticas públicas”.

Para Rodríguez Garay et al (2013), a Iniciativa Privada responde a uma dupla natureza, entendendo que, por um lado, é um procedimento administrativo em que o objeto e o conteúdo contratual são determinados e, por outro, denota um sistema de preferências, registrando que os indivíduos podem apresentar propostas que, se declaradas de interesse público, terão vantagens sobre outros concorrentes na licitação pública.

O procedimento da iniciativa privada é baseado na apresentação espontânea do indivíduo, dado que não há possibilidade de a Administração Pública convocar indivíduos para apresentar seus projetos. A estrutura legal, o Decreto 966/2005, estabelece claramente os requisitos de admissibilidade das propostas, podendo impor requisitos adicionais em busca do interesse público.

Para Damsky (2007), que cita Mairal, a modernização e o desenvolvimento de novas alternativas de contratação de bens e serviços apresentados pelo Direito Administrativo moderno também foram caracterizados pelo ditado das normas reguladoras da iniciativa privada, de modo que novas técnicas de contratação administrativa têm um denominador comum: o deslocamento do poder do Estado, que conhecíamos centralizado, e a redução do Estado Nacional, de maneira a integrar e conclamar a participação dos vários operadores jurídicos e econômicos do mercado de contratações públicas.

O que se deseja é, portanto, que a sociedade (pessoas físicas ou jurídicas) participe da implementação de políticas públicas, tanto na perspectiva de apresentar as soluções desejadas, quanto indicando onde essas medidas podem ser tomadas, com o objetivo de alcançar as melhores condições em busca do estado de bem-estar social, sendo a Iniciativa Privada uma estrutura tanto para o financiamento privado de projetos quanto para o nível de intervenção ou envolvimento de sujeitos privados na coexecução de empreendimentos públicos.

É conveniente destacar que o instituto argentino tem como gênese uma necessidade pública ainda não identificada e/ou classificada como de interesse público, o que acontece após a verificação da demanda pela sociedade civil ou por empresas privadas que, identificando a demanda, intenta qualificá-la como política pública, com vistas à sua implementação, a partir das modalidades de contratação expostas doravante.

Neste diapasão,

A participação dos cidadãos no espaço público está, pouco a pouco, abrindo novos horizontes que permitem, a partir da conclusão convencional dos procedimentos administrativos, passando pela presença cidadã na definição das políticas públicas, chegar a uma nova forma de entender os poderes públicos, que agora já não são estritamente compreendidos a partir da unilateralidade, mas sim a partir de uma pluralidade que permite a integração da realidade social no exercício das prerrogativas públicas (RODRÍGUEZ-ARAÑA MUÑOZ, 2012, p. 143).

 

Dentro das novas formas de se contratar, e em resposta ao papel que o setor privado adquire - não apenas no financiamento de infraestrutura, mas também como resultado de seu envolvimento em modalidades associativas -, é notável que há uma mudança no regime de planejamento da contratação pública, evidenciado pelo estabelecimento de mecanismos de participação dos atores envolvidos, especialmente considerando que o vulto e a complexidade técnica dos trabalhos podem recomendar justamente a integração com a iniciativa privada, de modo que as técnicas de participação da sociedade junto à Administração enriquecem o incentivo e o desenvolvimento à criação de instituições para a troca para o atendimento de interesses (públicos e privados).

 

3.3. UMA BREVE ANÁLISE COMPARATIVA DOS INSTITUTOS

Após as considerações gerais feitas anteriormente sobre os institutos, faremos a comparação deles sob a perspectiva de uso prático na Administração, a saber, que “almeja-se o Estado da racionalidade aberta, não-cartesiana, em vez do predomínio senhorial, subproduto do patrimonialismo, avesso à ativação de direitos fundamentais de todas as dimensões”, como frisou Juarez de Freitas (2015a), perfazendo a concretude de tal intento a partir de escolhas administrativas legítimas, não apenas as pautadas nos clássicos corolários da legalidade, moralidade, motivação, mas, fundamentalmente, atreladas à participação social.

Na Argentina, como já foi dito, a Iniciativa Privada é regulamentada pelo Decreto 955/2005, sendo um instituto que busca incentivar os indivíduos a participar de projetos de infraestrutura, podendo ser obras públicas, concessão de obras públicas, serviços públicos, licenças e/ou qualquer outra modalidade que possa ser desenvolvida através dos diferentes sistemas de contratação regulados pelas leis que o próprio Decreto especifica.

O Decreto argentino também previu, de maneira muito clara, a intenção de políticas públicas que o Estado Nacional deve tender ao desenvolvimento de atividades de interesse público, destacando-se, entre elas, aquelas destinadas a promover mecanismos de incentivo à atividade privada, motivando indivíduos para esse fim, por meio de diferentes instrumentos ágeis e idôneos, como a Iniciativa Privada que regula.

No Brasil, por sua vez, o Decreto nº 8.428/15, o qual regulamenta o Procedimento de Manifestação de Interesse Privado, não faz nenhuma referência à promoção da participação cidadã, embora preveja que o instrumento que regulamenta é a apresentação de projetos, pesquisas investigações ou estudos, por peso físico ou legal, de uma diretiva privada, com o objetivo de subsidiar a administração pública de contratos de desestatização e parceria de empresas, nos termos de seu art. 1º.

Não há caracterizações adicionais na Lei nº 13.303/16[6],  que é singela e afirma que o PMI será utilizado para “recebimento de propostas e projetos de empreendimentos com o objetivo de atender necessidades previamente identificadas, podendo regular seus retornos específicos ”; porém, para cada empresa estatal pode regular o PMI de maneira autônoma, desde que se observe o Decreto nº 8.428/15, vez que tem viés de regra geral. Também não há maiores definições no Decreto nº 10.104/19, a mais recente regulamentação para tratar do assunto.

Diferentemente do PMI brasileiro, em que a competência para a abertura, autorização e aprovação do instituto é da mais alta autoridade do órgão ou entidade da Administração competente para realizar a licitação ou a elaboração dos projetos, na Argentina, a Comissão de Avaliação e Desenvolvimento de Iniciativas Privadas tem a competência para o recebimento e avaliação de projetos da Iniciativa Privada. Fixada a perspectiva de que, no sistema argentino, a Iniciativa Privada possui caráter mais centralizado do que no Brasil.

De acordo com o decreto argentino, os requisitos mínimos de admissibilidade da Iniciativa Privada são a identificação do projeto e sua natureza; as bases de sua viabilidade econômica e técnica; o valor estimado do investimento; o histórico completo do autor da iniciativa e a fonte de recursos e financiamento, que devem ser privados, além de ser necessária a garantia de manutenção ou fiança bancária.

No Brasil, a proposta do PMI deve conter a descrição do projeto, com os detalhes das necessidades públicas que serão atendidas, e o projeto, levantamentos, pesquisas e estudos necessários, e serão apresentados após o chamamento público promovido pela autoridade competente por meio de um aviso que deve conter, entre outros elementos, a delimitação do escopo, os valores da remuneração e os critérios de avaliação e seleção dos projetos, nos termos do art. 4º do Decreto nº 8.428/15. Não há, como na Argentina, a necessidade de apresentar uma garantia ou caução.

No sistema argentino, uma vez atingidos os requisitos de elegibilidade e decidida a qualificação da proposta como de interesse público e sua inclusão no Regime de Iniciativa Privada, o Ministério do Planejamento Federal, Investimento Público e Serviços terá competência para determinar a modalidade de contratação, a qual poderá ser Licitação Pública ou Concurso de Projetos Integrais.

Caso seja eleita a primeira opção, o já citado Ministério preparará os Termos e Condições da Licitação, com a documentação correspondente, estabelecida de acordo com os critérios técnicos, econômicos e jurídicos do projeto da Iniciativa Privada, e solicitará um Edital no prazo de 60 dias, contados a partir da definição de utilização da Licitação como forma de contratação.

No entanto, no caso de escolha pelo Concurso de Projetos Integrais, o responsável pela proposta de Iniciativa Privada deve enviar os Termos de Referência dos estudos, o prazo de execução e apresentação do projeto, além do custo estimado de sua conclusão, dentro do prazo de 30 dias, devendo, a mesma autoridade ministerial, convocar o Concurso de Projetos também dentro de 30 dias, contados a partir do vencimento do prazo do autor da Iniciativa Privada em apresentar os documentos referidos.

Sob o viés brasileiro, após a qualificação do PMI, admitindo as propostas dos participantes, o estudo ou projeto vencedor poderá ser objeto de Licitação Pública, devendo o edital conter obrigatoriamente “cláusula que condicione a assinatura do contrato pelo vencedor da licitação ao ressarcimento dos valores relativos à elaboração de projetos, levantamentos, investigações e estudos utilizados na licitação”[7], sendo possível, destarte, que o autor do estudo selecionado no procedimento do PMI participe do certame.

Cabe acrescentar que, na Argentina, além do autor da Iniciativa Privada também poder participar da Licitação ou do Concurso de Projetos Integrais, há disposição expressa no Decreto 955/05 que, quando todas as propostas forem de conveniência equivalente, será dada preferência a quem tenha apresentado a Iniciativa Privada, entendendo-se, o Decreto, que há equivalência de ofertas quando a diferença entre a oferta do autor da proposta e a oferta mais qualificada não exceder 5% deste último.

No Brasil, contudo, não há prerrogativa semelhante. No Decreto nº 8.428/15[8], inclusive, há previsão expressa de que a apresentação de projetos, pesquisas, investigações e/ou estudos não gera o direito de preferência no processo de licitação.

Em relação aos ressarcimentos, a regulamentação argentina admite que, caso o autor da Iniciativa Privada não seja o vencedor, terá o direito de receber do vencedor/adjudicatário, como honorários e despesas reembolsáveis, uma porcentagem de 1% do valor da proposta aprovada. No Brasil, o ressarcimento é eventual, cabendo ao próprio PMI definir as condições em cada caso concreto específico.

Em termos finais, a Iniciativa Privada argentina e o PMI brasileiro possuem a mesma natureza jurídica de serem instrumentos de participação popular/cidadã na Administração e Gestão Pública, apresentando, no entanto, algumas distinções processuais e materiais como exposto anteriormente, sem que, com isso, os institutos se desnaturem como elemento essencial do direito à boa administração, a partir de uma democracia participativa em que haja maior engajamento da iniciativa privada com os intentos estatais.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os novos desafios colocados pelo Estado Contemporâneo para o desenvolvimento local de maneira participativa exigem a busca de instrumentos e metodologias inovadoras para formulação e avaliação que constituam novas oportunidades de investimento e desenvolvimento para o setor privado e, ao mesmo tempo, a possibilidade de aumentar a lucratividade social para o setor público e, nesses termos, a Iniciativa Privada na Argentina e o Procedimento de Manifestação de Interesse no Brasil são institutos relevantes que integram a Administração e a sociedade, sendo aptos a estimular e valorizar a participação popular, eliminando a centralização de políticas públicas apenas sob iniciativa do Estado.

Convém destacar que, no instituto argentino, é o particular que, voluntariamente, apresenta a sua proposta perante o Estado Nacional, para que seu intento seja qualificado como interesse público e incluído no regime da Iniciativa Privada, enquanto que, no Brasil, para a apresentação de propostas, é necessário atender preliminarmente ao chamamento da Administração, que já tem a demanda qualificada como de interesse público e deseja, para ela, soluções ou alternativas que a esfera privada possa apresentar, em razão de sua expertise.

Não obstante a esta sensível distinção referida supra, é forçoso obtemperar que “o conteúdo das políticas públicas não pode ser estipulado exclusivamente por governantes ou legisladores, com a coadjuvância opaca e subalterna dos outros atores constitucionais” (FREITAS, 2015b), de maneira que, independentemente do momento em que haja a atuação do particular na implementação e execução de políticas públicas, o pleno desenvolvimento e a adoção dos institutos aqui estudados são práticas que devem compor, mais rotineiramente, a atuação estatal.

Cada um dos institutos, com suas peculiaridades nacionais, a Iniciativa Privada na Argentina e o Procedimento de Manifestação de Interesse no Brasil, é um elemento importante para que haja maior participação particular na definição e implementação de políticas públicas, consubstanciando-se em relevantes instrumentos de integração e engajamento social nos termos do Estado Democrático de Direito, pois, como já dito, “não se coaduna com decisionismos subalternos, que redundam em obras inúteis e superfaturadas, desregulações temerárias, ilusionismos contábeis, dispensas licitatórias inapropriadas e subsídios divorciados das finalidades republicanas. Dito de outro modo, o segredo é bem priorizar” (FREITAS, 2015a), e o melhor e mais democrático meio de bem priorizar é garantir a participação do privado na Administração Pública.

 

4. REFERÊNCIAS

BINENBOJM, Gustavo. Disposições de caráter geral sobre licitações e contratos na Lei das Estatais (Lei mº 13.303/2016) In NORONHA, João Otávio de; FRAZÃO, Ana; MESQUITA, Daniel Augusto (Coord.). Estatuto jurídico das estatais: análise da Lei nº 13.30./2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

 

BITTENCOURT, Sidney. A nova lei das estatais: novo regime de licitações e contratos nas empresas estatais. Leme (SP): JH Mizuno, 2017.

 

DAMSKY, Isaac Augusto. Variaciones y contrapuntos en los nuevos sistemas de contratación de actividades económicas públicas en Argentina. Crisis del estado, crony capitalism y alteración de la gobernabilidad económica. Disponível em http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/470  Acesso em mar/2020

 

FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

FORTINI, Cristina; RAINHO, Renata Costa. Mudanças no procedimento de manifestação de interesse em face do decreto 10.104/2019. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-nov-28/interesse-publico-mudancas-manifestacao-interesse-diante-decreto-101042019?pagina=3 Acesso em mar/2020

 

FREITAS, Juarez. Políticas Públicas, Avaliação de Impactos e o Direito Fundamental à Boa Administração. Disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2015v36n70p115, 2015a. Acesso em mar/2020

 

FREITAS, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à Boa Administração. Disponível em http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21688/1/2015_art_jfreitas.pdf, 2015b. Acesso em mar/2020

 

MORENO, Maís. O novo PMI, Procedimento de Manifestação de Interesse. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-dez-09/pmi-procedimento-manifestacao-interesse#author Acesso em mar/2020

 

RODRÍGUEZ GARAY, Rubén Enrique; QUIÑONES, Marcela Patricia María del Lujan; AUDISIO, Sergio Omar; NASINI, Lisandro; SCAGLIOTTI, Eleonora; MARTÍNEZ, Melina; CAMARASA, Gonzalo Gabriel. Formulación, evaluación y monitoreo de proyectos de inversión privada en espacios públicos municipalidad de Rosario. Disponível em https://rephip.unr.edu.ar/handle/2133/7545 Acesso em mar/2020

 

RODRÍGUEZ-ARAÑA MUÑOZ, Jaime. Direito fundamental à boa Administração Pública. Tradução Daniel Wunder Hachem. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

 

SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. O procedimento de manifestação de interesse (PMI) como um instrumento eficiente e democrático de planejamento de concessões. Disponível em https://www.zenite.blog.br/o-procedimento-de-manifestacao-de-interessepmi-como-um-instrumento-de-planejamento-eficiente-e-democratico-de-concessoes/  Acesso em mar/2020



[1] Art. 31 [...] § 4º A empresa pública e a sociedade de economia mista poderão adotar procedimento de manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e projetos de empreendimentos com vistas a atender necessidades previamente identificadas, cabendo a regulamento a definição de suas regras específicas.

§ 5º Na hipótese a que se refere o § 4º, o autor ou financiador do projeto poderá participar da licitação para a execução do empreendimento, podendo ser ressarcido pelos custos aprovados pela empresa pública ou sociedade de economia mista caso não vença o certame, desde que seja promovida a cessão de direitos de que trata o art. 80.

[2] Dispõe sobre o Procedimento de Manifestação de Interesse a ser observado na apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos, por pessoa física ou jurídica de direito privado, a serem utilizados pela administração pública.

[3] Alterou a finalidade inicial do Decreto nº 8.428/15 para ser um instrumento para com o propósito de subsidiar a administração pública na estruturação de desestatização de empresa e de contratos de parcerias e não mais apenas para subsidiar a estruturação de projetos de concessões e parcerias público-privadas.

[4] Atualmente, o PL encontra-se no Senado Federal, aguardando votação.

[5] O Decreto 966/2005 aplica-se a projetos de infraestrutura, apresentados por particulares, e contempla duas modalidades: o concurso público ou o concurso de projetos integrais.

[6] Art. 31, §4º.

 

[7] Decreto nº 8.428/15, Art. 17

[8] Art. 6º, inciso II.