CONSIDERAÇÕES SOBRE A SUPERAÇÃO DA REGRA DO ART. 26 DO DECRETO FEDERAL Nº 10.024/2019 ACERCA DO MOMENTO DE APRESENTAÇÃO DOS DOCUMENTOS DE HABILITAÇÃO
Victor Amorim
@ prof.victor.amorim
Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor dos cursos de pós-graduação do IDP, Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do Instituto Goiano de Direito (IGD). Site: www.victoramorim.com
INTRODUÇÃO
Face às explanações públicas do Poder Executivo Federal durante o processo de elaboração da minuta do Decreto nº 10.024 durante o ano de 2019[1], parece ser indene de dúvidas a intenção do regulamento de alterar a sistemática então observada no Decreto nº 5.450/2005 quanto ao momento da apresentação dos documentos de habilitação[2].
Assim, sob a égide do Decreto Federal nº 10.024/2019, salvo os documentos de habilitação já constantes do SICAF (art. 26, §2º), todos os licitantes – e não apenas o vencedor da disputa – devem anexar a documentação na oportunidade do cadastro da proposta no sistema.
Trata-se de uma clara e legítima opção do Chefe do Poder Executivo no tocante à regulamentação operacional do pregão eletrônico e que, de forma alguma, se mostra incompatível com a estrutura procedimental estabelecida na Lei nº 10.520/2002.
1 – DO MOMENTO DE APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS DE HABILITAÇÃO
Após um ano de vigência do novo regulamento, são identificadas críticas quanto a tal “opção” do Presidente da República, no sentido de que, ao vedar a apresentação posterior de novos documentos de habilitação, estar-se-ia “perdendo” ofertas mais vantajosas para a Administração registradas por licitantes que, eventualmente, tenha se “esquecido” de juntar documentos expressamente exigidos no edital.
Sem adentrar no mérito da escolha feita pelo Decreto nº 10.024, sob o ponto de vista da estrutura normativa do sistema constitucional brasileiro, entendemos ser temerário conferir ao intérprete a prerrogativa de correção[3] - ou mesmo de superação[4] - da norma regulamentar pelo simples fato de não concordar com a opção daquele a quem é atribuída, pelo art. 84, IV, da CF, a competência para regulamentar a lei dentro dos espaços de densificação normativa possíveis.
Por força do princípio da legalidade e em face da estruturação hierárquica do ordenamento normativo, a regra do caput do art. 26 do Decreto nº 10.024 somente poderia ser relativizada, superada ou afastada pelo intérprete em casos e inconteste contrariedade com a Lei nº 10.520/2002 ou mesmo com a Constituição e, ainda assim, pelas instâncias competentes[5].
A partir de um juízo técnico e de discricionariedade política, a ponderação sobre as vantagens e desvantagens de impedir ou permitir o envio posterior de documentos de habilitação (como expressamente permitido no Decreto nº 5.450/2005) foi feita pela autoridade constitucionalmente competente para tanto: no caso, o Presidente da República, não cabendo, pois, ao intérprete rever tal opção, até mesmo sob pena de inobservar um comando de conduta veiculado pelo chefe supremo da Administração Pública federal[6].
Não se desconhece serem os Pregoeiros os principais afetados com o suposto dilema posto entre “seguir o decreto” e “privilegiar a proposta mais vantajosa”, como se fossem aspectos antagônicos. Não o são! Ainda que se diga que a licitação é um meio, não se pode afastar a premissa de que se trata de um “procedimento”, cujas regras básicas, lastreadas em uma lógica de preclusão, tem por finalidade estabelecer, em homenagem à própria ideia de isonomia, uma linha elementar de condução da fase de seleção dos fornecedores, ou seja, a “regra do jogo”. Assim, se a licitante não atende às condições básicas e elementares de habilitação (e o momento de apresentação da documentação é uma questão elementar no processo!), sua oferta, por mais que represente o menor valor nominal, jamais será a “mais vantajosa para a Administração”, posto que inviável a contratação de fornecedor que não atendeu às regras substanciais do edital.
Em detrimento de uma clara regra incidente sobre o tema, compreendemos que valer-se de uma argumentação principiológica para mudar a “regra do jogo” no meio do jogo não nos parece a saída mais condizente com os princípios da Administração Pública, ainda que pareça saltar os olhos os famigerados princípios da vantajosidade e do formalismo moderado. Afinal, se a licitação é um negócio, que tipo de imagem se está transmitindo ao mercado se, sequer, observamos as regras que a própria Administração estipula em seus normativos e editais?
Para tanto, insistimos na necessidade de construção e manutenção de um ambiente negocial seguro, calcado em premissas elementares: segurança jurídica, transparência e respeito às condições de seleção preestabelecidas. E a segurança para o Pregoeiro não está na ilusão de seguir uma pressuposta regra de preferência extraída da jurisprudência do TCU no sentido de buscar a proposta mais vantajosa a todo custo... A segurança para o Pregoeiro está na clareza e objetividade do tratamento da matéria em seus editais.
Por outro lado, se se trata de órgãos não vinculados ao Poder Executivo Federal e que, em suas eventuais regulamentações, não tenham disposição similar àquela contida no art. 26 do Decreto nº 10.024/2019, caso não se concorde com a opção clara adotada pelo Presidente da República no caput do art. 26 do regulamento federal, ante a inexistência de contrariedade à Lei nº 10.520/2002, poder-se-ia adotar a mesma linha de conduta do então Decreto nº 5.450/2005: documentos de habilitação, em regra, serão enviados posteriormente à fase de julgamento da proposta.
Nesse ensejo, para aqueles que teriam a possibilidade normativa de dispor (e agir) em sentido diverso do art. 26 do Decreto nº 10.024/2019, fica a questão: qual a sistemática decisória mais “segura” para a Administração? A sistemática do atual regulamento ou aquela prevista no Decreto nº 5.450/2005 (documentos enviados posteriormente)?
2 – DA VANTAJOSIDADE PARA A ADMINISTRAÇÃO
Por mais que se diga que a regra antiga teria o condão de privilegiar a proposta mais vantajosa, o fato é que ambas as sistemáticas se sustentam em uma lógica de preclusão temporal quanto ao momento da apresentação da documentação. No decreto anterior, a documentação teria que ser enviada no tempo previsto no edital a contar da convocação feita pelo Pregoeiro. Ou seja, extrapolado o tempo, operada estava a preclusão. Ocorre que a sistemática anterior era ainda mais fluída e nebulosa para o Pregoeiro, afinal basta verificar as constantes discussões e intercorrências que haviam em relação a uma série de aspectos: momento da convocação e respeito ao horário comercial; fluidez de diretrizes para concessão de prorrogação do prazo de envio; (im)possibilidade de envio de vários anexos em momentos distintos; suposto “crédito” de tempo do licitante que envia a documentação antes de expirar o prazo; alegações de razoabilidade de contemplação da documentação enviada após minutos do transcurso do prazo; e outros...
Logo, em nosso entendimento, a sistemática proposta pelo Decreto nº 10.024/2019 (aliada à previsão expressa e objetiva dos editais) cria um ambiente decisório mais seguro para o Pregoeiro e para os licitantes, porquanto sabe-se, de antemão, que há um limite temporal claro e impassível de dilação pela Administração no curso do certame.
Vale frisar que a defesa ora formulada não se lastreia em uma visão meramente positivista, descurando da real finalidade dos procedimentos licitatórios. Ocorre que há regras procedimentais básicas a serem observadas e o próprio Decreto nº 10.024/2019, em especial, no §2º do art. 26 e no §3º do art. 43, dentro de condições e premissas preestabelecidas, densifica os liames do formalismo moderado, sendo salutar que os editais venham a conferir maior objetividade quanto ao termo final possível de atualização dos documentos no SICAF e a realização de diligências ex officio pelo Pregoeiro que acarretem em juntada de documentos extraído de base de dados de natureza pública[7].
CONCLUSÃO
Em conclusão, face à aplicação do Decreto nº 10.024/2019 – seja por vinculação automática, seja por opção deliberada -, pelas razões expostas anteriormente – há que se respeitar a clara regra quanto ao momento de anexação dos documentos de habilitação. Contudo, nos tempos atuais, além da moda de valorização desmesurada de um panprincipiologismo solipsista, as soluções simples parecem ser menos atraentes e glamorosas...
[1] Conforme exposição da SEGES durante as duas audiências públicas realizadas acerca da minuta do decreto, tal medida se justificaria, basicamente, por dois motivos: a) o combate ao chamado “novo coelho” (licitante que, após a conclusão da fase de lances, abandona o certame e não encaminha a documentação solicitada pelo Pregoeiro); e b) necessidade de conferir maior celeridade ao certame, reduzindo as intercorrências no envio da documentação somente após a conclusão da fase de lances.
[2] Nesse sentido, vide a aula nº 28, datada de 25/10/2019, sobre o "Novo Pregão Eletrônico" promovida pela SEGES em parceria com a ENAP: https://www.youtube.com/watch?v=qGjQKcJxKuU&list=PLRvEFVeKCpzrNJNmlOzS3hjs3_5VN0Aw5&index=25.
[3] "A interpretação correctiva conforme à Constituição, no sentido restritivo aqui admitido, deve assentar na valoração de elementos que o texto, mesmo que defeituosamente, refere e, sobretudo, não pode ser contrária à posição tomada pelo legislador, ao seu querer e ao escopo que persegue (quebrando apenas os limites do seu sentido literal)" (MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999, p. 312; 316-317).
[4] "[...] a interpretação das leis em conformidade com a constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei ou em manifesta dessintonia com os objectivos pretendidos pelo legislador" (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1.227).
[5] A título de exemplo, vide as disposições do Decreto Federal nº 2.346/1997, que consolida normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública Federal em razão de decisões judiciais que envolvam declaração de inconstitucionalidade de leis.
[6] "Os arts. 76 e 84, I, II e VI, a, todos da CF, atribuem ao presidente da República a posição de chefe supremo da administração pública federal, ao qual estão subordinados os ministros de Estado” (STF – ADI nº 2.564, rel. min. Ellen Gracie, j. 8-10-2003, DJ de 6-2-2004).
[7] Para tanto, vide o artigo escrito com Rafael Sérgio de Oliveira intitulado "Formalidades do “novo” pregão eletrônico: integração a posteriori da documentação de habilitação e o limite temporal de atualização do SICAF", disponível em: <http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo/formalidades-novo-pregao-eletronico-integracao-posteriori-documentacao-habilitacao-limite-temporal-atualizacao-sicaf-08052020.html>.