A REGULARIDADE PERANTE A FAZENDA PÚBLICA COMO REQUISITO DE HABILITAÇÃO PARA FINS LICITATÓRIOS E CONTRATUAIS NA LEI N.º 13.303/2016

 

Renila Lacerda Bragagnoli

@ advocaciaestatal

Mestranda em Direito Administrativo e Administração Púbica pela Universidade de Buenos Aires/UBA. Especialização em Políticas Públicas, Gestão e Controle da Administração no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Advogada da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba. Chefe da Unidade de Assuntos Administrativos (Consultivo) da Assessoria Jurídica da Presidência da Codevasf.

 

 

1. INTRODUÇÃO

A edição da Lei nº 13.303, de 2016, decorreu da delegação constitucional do art. 173, §1º[1] à lei ordinária para o estabelecimento do estatuto jurídico das estatais, devendo dispor, no que compete ao presente estudo, sobre licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, tendo, então, a Lei das Estatais em seu art. 32, inciso I, determinado a “padronização do objeto da contratação, dos instrumentos convocatórios e das minutas de contratos, de acordo com normas internas específicas” e, o art. 40, inciso III, dispondo que a “as empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão publicar e manter atualizado regulamento interno de licitações e contratos”, compatível com o disposto na Lei, “especialmente quanto a minutas-padrão de editais e contratos”, trazendo a novel legislação a obrigatoriedade de que cada estatal promova a edição do seu regulamento interno de licitações como requisito de uma atuação transparente, especialmente no que concerne às licitações e contratos (ANTUNES, 2017, p. 398).

Para Zymler (2017, p. 365), a edição da Lei das Estatais deu-se

 

Em um momento em que se põe em cheque a capacidade do Estado em administrar empresas públicas eficientemente, de forma a trazer o retorno para a sociedade que delas se espera. Fundada em dois eixos principais – governança e contratações públicas -, a norma busca dar a moldura jurídica necessária para que haja uma guinada na administração dessas empresas de forma que venham efetivamente a atender o interesse público que as deve nortear.

Destarte, a publicação da Lei das Estatais realizou-se em uma época bastante apropriada, mormente quando se destinou a revisão dos paradigmas de responsabilidade da Administração Pública, tendo a nova Lei uma função de renovação e aprimoramento no modelo de gestão das empresas estatais, de modo que impôs a criação de um novo sistema de licitações e contratos para as estatais rompeu abruptamente a vinculação das empresas públicas e sociedades de economia mista com os regramentos da Lei n.º 8.666, de 1993, e Lei n.º 12.462, de 2011, sendo, sem embargo, o maior avanço realizado pelo estatuto das estatais, não apenas por afastá-las do sistema geral de licitações e do regime diferenciado de contratações, mas por trazer a possibilidade de que cada estatal, em razão das atividades que desempenha em prol do atingimento de sua função social, elabore seu próprio regulamento de licitações e contratos, tendo como base, condições gerais e abstratas previstas na Lei n.º 13.303, de 2016.

É conveniente destacar que a liberdade trazida pela Lei nº 13.303, de 2016, ao determinar a criação do regulamento interno de cada entidade, busca harmonizar e diminuir os efeitos negativos da hibridez público-privada intrínseca das empresas estatais, além de ser uma oportunidade de se autorregularem de acordo com a natureza da sua criação, haja vista que, criadas como extensão do Estado para a execução de políticas públicas específicas, as empresas estatais apresentam peculiaridades que se confundem com as dificuldades decorrentes do seu em seu regime jurídico ambíguo, face à complexidade em gerir de maneira equivalente as empresas que prestam serviços públicos e das que exploram de atividade econômica de interesse público no mercado concorrencial.

Assim, o art. 40 da Lei n.º 13.303, de 2016 ao determinar imperativamente que as empresas públicas e as sociedades de economia mista publiquem e mantenham atualizado regulamento interno de licitações e contratos, apresentou o conteúdo que cada normativo deve apresentar, sendo incontroverso que para a elaboração dos procedimentos de licitação e das minutas-padrão é edital, é mister que o regulamento de licitações e contratos traga previsões acerca dos requisitos de habilitação, tema que será tratado no presente artigo, a partir de uma perspectiva da certidão de regularidade fiscal junto à Fazenda Pública.

 

2. RÁPIDAS LINHAS SOBRE CERTIDÕES DE HABILITAÇÃO

As certidões de habilitação são os documentos/requisitos de habilitação àquelas exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, tendo previsão precípua na Constituição Federal, a qual prevê em seu art. 37, inciso XXI, que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. 

Para Di Pietro (2013, p. 422), “o sentido do dispositivo constitucional não é o de somente permitir as exigências de qualificação técnica e econômica, mas de, em relação a esses dois itens, somente permitir as exigências que sejam indispensáveis ao cumprimento das obrigações”, de maneira que “exigências que não são indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, contribuem para tornar o procedimento da licitação ainda mais formalista e burocrático, desvirtuando os objetivos da licitação”.

Dito de outra forma, os requisitos de habilitação podem ser previstos na legislação infraconstitucional, porém, os que envolvam qualificação técnica e econômica deve guardar relação intrínseca com o cumprimento das obrigações contratuais, sob pena de inconstitucionalidade.

Foi nessa toada que a Lei das Estatais quis seguir, deixando à margem do seu texto, no que concerne as previsões de exigências de habilitação, documentos que não impõem vantajosidade para a Administração, burocratizam e tornam o procedimento licitatório moroso e ineficiente.

 

3. DAS DISPOSIÇÕES DO ART. 58 DA LEI Nº 13.303, DE 2016

 

Inaugurando um novo regime de habilitação para as licitações das empresas estatais, a Lei previu como parâmetros em seu art. 58:

 

Art. 58.  A habilitação será apreciada exclusivamente a partir dos seguintes parâmetros:

I - exigência da apresentação de documentos aptos a comprovar a possibilidade da aquisição de direitos e da contração de obrigações por parte do licitante;

II - qualificação técnica, restrita a parcelas do objeto técnica ou economicamente relevantes, de acordo com parâmetros estabelecidos de forma expressa no instrumento convocatório;

III - capacidade econômica e financeira;

IV - recolhimento de quantia a título de adiantamento, tratando-se de licitações em que se utilize como critério de julgamento a maior oferta de preço.

 

De maneira esquematizada, tem-se que os documentos de habilitação são: a) apresentação de documentos aptos a comprovar a possibilidade da aquisição de direitos e da contração de obrigações por parte do licitante: capacidade do licitante no exercício de direitos e deveres, podendo ser a identidade civil para pessoa física ou o registro comercial, decreto de autorização para pessoa jurídica, podendo o Regulamento prever outras formas de se comprovar a habilitação; b) qualificação técnica: verificação da habilidade ou aptidão para execução do objeto licitado, podendo ser relacionada à empresa (capacidade técnico-operacional) ou aos profissionais que compõem o quadro da licitante (capacidade técnico-profissional), podendo ser usada uma, ambas ou outras que o Regulamento entenda viável para a aferição da capacidade técnica da licitante; c) capacidade econômica e financeira: verificação da capacidade econômica do particular, visando averiguar a existência de condições suficientes com a execução contratual, podendo ser exigido o balanço patrimonial, a relação de compromissos assumidos, etc.; e, d) recolhimento de quantia a título de adiantamento, tratando-se de licitações em que se utilize como critério de julgamento a maior oferta de preço: cabendo ao Regulamento trazer as disposições sobre esse percentual, o prazo para sua apresentação e, eventualmente, as hipóteses de devolução.

Destarte, muito embora a Lei das Estatais tenha deixado que cada estatal exija condições de habilitações que entender pertinente de acordo com cada objeto licitado, os critérios minimamente aceitáveis devem ser previstos no Regulamento, inclusive servindo como padronização básica dos documentos exigidos, o que não impede, outrossim, que casos especiais, em razão das peculiariedades do objeto licitado, comportem a exigência de documentos de habilitação não previstos inicialmente no Regulamento, desde que devidamente justificada nos autos do processo administrativo do procedimento licitatório.

É de se atentar, por conveniente, que o caput do art. 58 é expresso ao prever que a habilitação será analisada exclusivamente pelos documentos que elenca, deixando incontroverso tratar-se de disposição com hall taxativo.

Em relação à exclusividade apontada pelo dispositivo legal, “a fase de habilitação é aquela na qual a Administração Pública afere requisitos subjetivos que os potenciais interessados devem deter para serem contratados se sagrados vencedores do certame. Diversamente dos particulares, que dispõem de autonomia mais ampla para escolher a contraparte na relação contratual, os órgãos e entidades integrantes da Administração Pública somente podem contratar com quem preenche certos e determinados requisitos previstos em lei ou no instrumento convocatório. A Lei nº. 13.303, de 2016, prescreve que a habilitação se dará ‘exclusivamente’ a partir dos parâmetros que indica”, de acordo com a dicção de Guimarães e Santos (2017, p. 202).

Sobre o tema, a respeitável doutrina de Pereira Junior et al (2018, p. 515-516) esclarece que

O art. 58 da Lei n.º 13.303/2016 elenca, numerus clausus, os requisitos de habilitação exigíveis em licitações e contratações promovidas por empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias. Ao aludir que a habilitação será apreciada, exclusivamente, a partir dos parâmetros que indica, a lei estabelece a taxatividade dos requisitos exigíveis das pessoas físicas e jurídicas interessadas em contratar com aquelas entidades. Significa, pois, que os regulamentos das referidas entidades não poderão acrescer outros requisitos de habilitação além dos relacionados no art. 58, incisos I a IV. [...] O rol exauriente não afasta a necessidade de cada requisito ser interpretado em seu alcance e significado. O que não concilia com essa espécie de rol é o uso das técnicas hermenêuticas da extensão e da analogia para criarem-se hipóteses paralelas àquelas enunciadas no rol. Ou seja, o intérprete e o aplicador da lei não poderão admitir a exigência de requisito não constante do rol do art. 58.

 

Em vista disso, observando as determinações do art. 58 Lei n.º 13.303, de 2016, as empresas estatais têm autonomia para prever situações específicas, equidistantes das previsões da Lei n.º 8.666, de 1993, e da Lei n.º 12.462, de 2011, porém mais próximas da realidade das atividades que desempenha, servindo os certames como meio de cumprimento da sua função social, objetivando entregar à sociedade o resultado efetivo das razões expressas no instrumento de autorização legal que motivaram a sua criação, por meio da realização do interesse coletivo ou do atendimento a imperativo da segurança nacional, nos termos do art. 27 da Lei 13.303, de 2016, que assentou em seu § 1o que a realização do interesse coletivo de que trata este artigo deverá ser orientada para o alcance do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pela empresa pública e pela sociedade de economia mista.

Não é demais esclarecer que a maior autonomia e flexibilidade dada às estatais pela Lei para estipulação dos critérios de habilitação não se confunde com liberdade absoluta, “uma vez que os requisitos de habilitação possuem efeitos diretos nos resultados da licitação”, impondo, referida autonomia, que os editais de licitação sejam elaborados de forma clara e precisa (FEIJÓ, 2016, p. 457).

É sobre a discricionariedade em se estipular as certidões habilitatórias perante a Fazenda Pública que o estudo será conduzido doravante.

 

4. A CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL PERANTE À FAZENDA PÚBLICA COMO DOCUMENTO DE HABILITAÇÃO NA LINHA Nº 13.303, DE 2016

 

Inicialmente é de destacar que o art. 58 da Lei das Estatais, suso transcrito, compõe uma revolução no que tange aos critérios de habilitação por não prever literalmente a necessidade de apresentação de certidão regularidade fiscal, além de não delinear a forma de exigência e de apresentação dos documentos por parte dos licitantes, devendo cada estatal editar suas próprias condições.

Para Antunes (2017, p. 439-440), o silêncio da Lei revela uma “imensa simplificação da Seção II da Lei n.º 8.666, de 1993, que continha quatro páginas com normas detalhadas para habilitação”, denotando-se um total rompimento com as numerosas exigências previstas na Lei n.º 8.666, de 1993, e na Lei do Regime Diferenciado de Contratações, Lei n.º 12.462, de 2011, tendo o legislador, a intenção de dar celeridade, objetividade e praticidade nas licitações realizadas pelas empresas estatais, visando garantir, além do cumprimento de sua função social, o atendimento do art. 31, para quem as licitações realizadas e os contratos celebrados por empresas públicas e sociedades de economia mista destinam-se a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.

Sem embargo, é uma mudança radical de paradigma, que requer acompanhamento por parte das estatais ao editarem seus regulamentos de licitações e contratos, sob pena de estagnação, perdendo a valorosa oportunidade de avançar em suas disposições. É o que Zymler (2017, p. 370) conclama quando afirma que o “novo regime estimula que a busca por resultados seja o norte dos procedimentos de contratações públicas” diminuindo a ênfase nos meios utilizados, aumentando-se “o enfoque nos fins almejados pelas contratações”.

Para uma necessária reflexão, Niebuhr (2018) discorre que

O novo regime das estatais, atualmente, representa apenas uma oportunidade relevante para vencer um modelo de licitação excessivamente formalista e burocrático, que não funciona. Oportunidade para construir um novo modelo, que tenha êxito, que seja eficiente, que gere contratos vantajosos para as estatais e para seus parceiros. Essa oportunidade pode ser bem aproveitada ou não, porque depende da postura das estatais em relação às novidades da Lei nº 13.303/2016. As estatais deixarão de exigir documentos de regularidade fiscal e trabalhista? [...] A oportunidade concedida pela Lei nº 13.303/2016 para as estatais depende da disposição das estatais de saírem da zona de conforto, de enfrentarem os desafios e as incertezas do novo.

Nessa esteira vanguardista da previsão de requisitos de habilitação, não estão previstos, como documentos de habilitação, a apresentação de certidões de regularidade fiscal, das fazendas federais, estaduais, municipais e distritais, de maneira que Feijó (2016, p. 458) decantando a intenção do legislador, afirma que “o tratamento superficial da questão – requisitos de habilitação – pela Lei é extremamente positivo e tem potencial de permitir a elaboração de licitações mais eficazes, desde que o regulamento da Lei não minudencie desnecessariamente os requisitos de habilitação”.

Em face do menor número de exigências no que concerne aos documentos necessários para habilitação, far-se-á uma análise jurídica acerca da certidão de regularidade fiscal perante a Fazenda Pública enquanto requisito indispensável à habilitação em certames licitatórios promovidos por empresas públicas ou sociedades de economia mista.

É de reconhecer que há doutrina que entende que dada a ausência de previsão de certidões regularidade fiscal, estas certidões não são passíveis de exigência por parte das empresas estatais. É o entendimento de Niebuhr e Niebuhr (2018, p. 231.) quando afirmam que

Em face do comando claro do art. 58 da Lei nº 13.303/2016, que o legislador utilizou a expressão exclusivamente para definir os parâmetros de habilitação e não previu exigências pertinentes à regularidade fiscal, trabalhista ou relacionadas ao trabalho de menores, o que significa que elas estão vedadas às estatais. O legislador não concedeu competência discricionária para os agentes estatais previrem tais exigências. Não há espaços nesse sentido, inclusive não há espaços sequer para o próprio regulamento de licitações e contratos, encartado no art. 40 da Lei nº 13.303/2016, restaurar tais exigências. Elas foram vedadas pela Lei nº 13.303/2016 e, nessa medida, o regulamento que, eventualmente, as restaura, opõe-se à Lei nº 13.303/2016 e, sob esse aspecto, se isso vier a ocorrer, ele deve ser invalidado.

 

Reveste-se, portanto, de entendimento extremo em relação às inovações trazidas pela novel legislação.

Convém ressair que, não obstante as previsões avançadas da Lei das Estatais ao simplificar os documentos de habilitação, é necessária cautela para interpretação e aplicação prática do art. 58, pois, como bem pondera Marçal Justen Filho (2014, p. 542),

 

Quanto maiores as exigências condicionantes da participação, tanto menor o número de licitantes aptos a participar da disputa. Logo, a ampliação dos requisitos de participação configura-se como um dos fatos que contribui para a elevação dos preços obtidos pela Administração. [...] Sob outro enfoque, a redução das exigências de participação amplia o risco de contratações desastradas, pois dá oportunidade a que sujeitos destituídos de capacitação se sagrem vencedores do certame.

 

Nesse esquepe, no tocante à regularidade perante a Fazenda Pública, maior cautela é necessária ao analisar, isoladamente, os dispositivos do art. 58 da Lei das Estatais, haja vista que esta regularidade é composta por um conjunto de “dívidas”, muito embora, para o presente trabalho, apenas o enfoque acerca da regularidade fazendária será relevante.

Ainda que não tenha alicerce constitucional, a regularidade perante a Fazenda Nacional tem previsão no Código Tributário Nacional, que em seu art. 193  já prevê que, salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da Administração Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que o contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada.

Extrai-se, então, da previsão do Código Tributário Nacional o fundamento jurídico de validade para que as empresas estatais solicitem da licitante a certidão de regularidade fiscal junto à Fazenda Pública as quais estejam vinculadas, sob pena de ofensa à legislação tributária, além de ser, decerto, uma decorrência também do princípio da moralidade administrativa.

Sobre o tema, Zymler et al (2018, p. 235) afirmam que “mesmo não existindo na Constituição Federal regra semelhante à da seguridade social, não se permite a contratação de interessadas que estejam em débito com o fisco”. E citando Renato Mendes, prosseguem afirmando que a “regularidade fiscal tem propósito não apenas incentivar o pagamento tempestivo de todos os tributos, mas também estabelecer uma igualdade entre os interessados no certame”.

É de se reconhecer, decerto, que uma licitante em débito com a Fazenda Pública tende a apresentar valores mais baixos se comparados com licitantes que estão em dia com o pagamento de impostos, tributos e/ou taxas, sendo certo que, permitir a participação de empresa devedora do fisco fere a isonomia entre os licitantes e o caráter competitivo do certame – princípios corolários de toda licitação pública -, considerando que a empresa licitante em débito com a Fazenda Pública tem uma aparente vantagem na formação do seu preço, em razão de, não pagando impostos, ter seu lucro aumentado e, consequentemente, sua margem negocial na hora da apresentação de sua proposta ou durante a fase de negociação.

Noutro giro, sempre é de grande valia as lições de Justen Filho (2009, p. 400), que, sobre o tema, admite que

A exigência de regularidade fiscal representa forma indireta de reprovar a infração às leis fiscais. Rigorosamente, poderia tratar-se de meio indireto de dívidas, o que poria em questão a constitucionalidade das exigências. Observe-se que o STF tem jurisprudência firme, no sentido de que a irregularidade fiscal não pode acarretar a inviabilização do exercício de atividades empresariais. Deve admitir-se, porém, a possibilidade de o ente público recusar contratação com sujeito que se encontre em situação de dívida perante ele.

 

Relativamente à regularidade fiscal estadual ou municipal, quando se tratar de entidade federal, a área técnica responsável pelo objeto a ser licitado/contratado deverá verificar a pertinência da inclusão destas certidões de regularidade como requisitos de habilitação após análise dos tributos incidentes na execução da obra/serviço e adequar a redação dos itens de acordo com a competência tributária correspondente, ficando, assim, a depender do objeto licitado/contratado.

Nessa toada é o entendimento do Tribunal de Contas da União que, no Acórdão nº 2295/2007 – Segunda Câmara, assinalou que “data vênia, a posição da equipe do TCU de exigir prova de regularidade federal, estadual e municipal não condiz com a doutrina e jurisprudência dominantes. O ilustre Marçal Justen Filho na obra Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 9ª Edição, fls. 307, ao tratar do assunto em questão assevera que: ‘Somente é possível reconhecer como indispensável a regularidade fiscal em face do ente federativo que promove a licitação’”.

Destarte, para que se possa, com legitimidade, exigir o cumprimento das obrigações de tributos cujas competências estão afetas a outros entes da Federação que não ao qual a empresa estatal está vinculada, é imperiosa uma acurada justificativa técnica e análise da incidência tributária na planilha de custos.

Ao se defender a necessidade de apresentação de certidões de regularidade junto à Fazenda Pública a qual a estatal está vinculada, acrescidas das Fazendas dos demais entes federativos, a depender da incidência tributária do objeto do certame e do contrato, não se diga, contudo, que essas exigências decorrem de aplicação da analógica da Lei Geral de Licitações. Com efeito, a Lei das Estatais tem regime jurídico próprio e específico para habilitação, não se aplicando as disposições dos arts. 27 a 37 da Lei n.º 8.666, de 1993 (GUIMARÃES e SANTOS, 2017, p. 202).

Em termos finais, o arremate conclusivo apresentado por Zymler et al (2018, p. 236), com o qual comungamos entende que

 

É indiscutível que a arrecadação tributária atende ao interesse social, na medida em que o Estado recebe recurso que, mais tarde, serão aplicados nas mais diversas finalidades [...] Ora, se tamanha foi a preocupação com a função social das empresas estatais, a ponto de o legislador destinar capítulo específico sobre o tema na Lei nº 13.303/2016 (Capítulo III), não nos parece crível que seja permitida a participação, nos certames, de empresas com dívidas perante o Fisco.

 

Nos moldes aqui apresentados, a exigência de apresentação do documento de habilitação consubstanciado na certidão de regularidade fiscal perante a Fazenda Pública, no âmbito federativo da empresa estatal, é decorrência das determinações da legislação federal positivada no Código Tributário Nacional e que, embora ausente das previsões da Lei nº 13.303, de 2016, são igualmente exigíveis nas licitações realizadas por estas entidades integrantes da Administração Indireta.

Dessa maneira, estando de acordo com o arcabouço jurídico aqui apresentado, a exigência de regularidade perante a Fazenda Pública deve constar nos regulamentos internos das estatais, compondo o leque dos documentos de habilitação, seja para participar de licitação, seja para seguir com as condições de habilitação durante a execução contratual.

 

5. CONCLUSÃO

Com a inauguração de um novo regime de licitações e contratos instituído pela Lei n.º 13.303, de 2016, as estatais galgaram autonomia para se autorregularem, a partir da edição de seus próprios regulamentos de licitações e contratos, tendo por base as disposições da Lei das Estatais, e os critérios de habilitação do licitante são um dos elementos de passíveis de regulamentação própria por cada empresa estatal.

Deste modo, a partir de uma interpretação do alcance discricionário das disposições do art. 58 da Lei n.º 13.303, de 2016 conclui-se que, com fundamento em uma hermenêutica sistemática e integrativa com a legislação ordinária federal do Código Tributário Nacional, devem ser exigidas como certidões de habilitação, nas licitações promovidas pelas empresas estatais e durante toda a execução contratual a regularidade junto à Fazenda Pública a qual a estatal é vinculada, de maneira que poderá, ainda, ser exigida as certidões de regularidade perante as fazendas estaduais, municipais e/ou distritais, a depender da análise do caso concreto do objeto licitado e as incidências tributárias de competências correspondentes. 

 

6. REFERÊNCIAS

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Atlas, 2013.

 

FEIJÓ, Ricardo de Paula. O procedimento de licitação da Lei 13.303/2016. In. JUSTEN FILHO, Marçal (Org.). Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

 

GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Leis das Estatais: Comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei n.º 13.303/2016 – Leis das Estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

 

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2014.

 

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2009.

 

PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres et al. Comentários à Lei das Empresas Estatais: Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

 

NIEBUHR, Joel de Menezes . Virou a chave do novo regime de licitações e contratos das estatais. O que esperar dos órgãos de controle? Disponível em <https://www.zenite.blog.br/virou-a-chave-do-novo-regime-de-licitacoes-e-contratos-das-estatais-o-que-esperar-dos-orgaos-de-controle/>

 

NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR Pedro de Menezes. Licitações e Contratos das Estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

 

ZYMLER, Benjamin et al. Novo regime jurídico de licitações e contratos das empresas estatais: análise da Lei n.º 13.303/2016 segundo a jurisprudência do Tribunal de Contas da União. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

 

ZYMLER, Benjamin. Considerações sobre os procedimentos de licitação da Lei n.º 13.303/2016. In: NORONHA, João Otávio de: FRAZÃO, Ana: MESQUITA, Daniel Augusto (Coord.) Estatuto jurídico das estatais: análise da Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

 

 



[1] Alteração promovida pela Emenda Constitucional 19/1998.