PÍLULAS DE REFLEXÃO SOBRE PONTOS DAS REDAÇÕES FINAIS PARA A NOVA LEI DE LICITAÇÕES PROPOSTAS EM 19/02 E EM 05/03/2021
Francisco Eduardo Carrilho Chaves
Advogado, engenheiro, consultor legislativo do Senado Federal, ex-auditor do TCU, autor do livro Controle Externo da Gestão Pública: a fiscalização pelo Legislativo e pelos tribunais de contas, com especializações em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
1 - INTRODUÇÃO
No dia 19 de fevereiro passado, a Secretaria Geral da Mesa do Senado Federal (SGM), no exercício de sua competência de fazer as necessárias adequações de técnica legislativa em textos votados pela Casa, divulgou uma proposta de redação final para o PL nº 4.253/2020. Em 5 de março, nova redação final foi apresentada. Cremos que esta será a votada pelo Pleno dos Senadores em data próxima[1], nos termos do art. 324 da norma regimental.
A redação final tem por fim consolidar e ajustar o que foi deliberado pelo Senado em dezembro de 2020, ao apreciar as inovações da redação substitutiva que a Câmara, como casa revisora, votara e aprovara.
Aos comentarmos um dispositivo, somente mencionaremos a data da versão final proposta quando o dispositivo em comento estiver de uma forma na versão de 19/2 e noutra na de 5/3.
Uma imprescindível observação preliminar é de que, segundo as normas constitucionais e regimentais, neste momento do processo legislativo não mais são admitidas alterações de mérito. Admitem-se tão somente ajustes de redação.
Produzimos alguns artigos recentes sobre o projeto como um todo. Este, contudo, terá como objeto modificações feitas nas sucessivas propostas de redação final. Não foram poucas. Com vistas ao melhor aproveitamento deste espaço, dedicaremos atenção às julgadas de maior relevância, assim consideradas as que, aos olhos deste autor, ensejam mutação meritória, bem como as que têm potencial para acarretar maior impacto na aplicação da futura lei.
2 – DAS ALTERAÇÕES E DOS IMPACTOS PROVENIENTES DA FUTURA NOVA LEI DE LICITAÇÕES
A primeira alteração digna de nota está no § 5º do art. 25. Segundo entendemos, ela foi promovida para permitir que o veto presidencial – jurídico – recaia somente sobre uma parte do comando: o inciso II, que trata da responsabilidade de particulares promoverem desapropriações, já que a medida extrema é de competência do Poder Público. A redação era:
§ 5º O edital poderá prever a responsabilidade do contratado pela obtenção do licenciamento ambiental e realização da desapropriação autorizada pelo poder público.
Passou a ser:
§ 5º O edital poderá prever a responsabilidade do contratado pela:
I – obtenção do licenciamento ambiental;
II – realização da desapropriação autorizada pelo poder público.
A mudança encetada no inciso VIII do § 1º do art. 32 também requer atenção, pois, conforme vislumbramos, modifica o mérito do que foi aprovado. Houve acréscimo do trecho negritado abaixo:
VIII – a Administração deverá, ao declarar que o diálogo foi concluído, juntar aos autos do processo licitatório os registros e as gravações da fase de diálogo, iniciar a fase competitiva com a divulgação de edital contendo a especificação da solução que atenda às suas necessidades e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa e abrir prazo, não inferior a 60 (sessenta) dias úteis, para todos os licitantes pré-selecionados na forma do inciso II deste parágrafo apresentarem suas propostas, que deverão conter os elementos necessários para a realização do projeto;
A inserção conduz à inteligência de que somente participarão da etapa competitiva da nova modalidade os licitantes previamente selecionados na fase de diálogo (pré-selecionados na forma do inciso II deste parágrafo). Conheçamos o inciso citado:
II – os critérios empregados para pré-seleção dos licitantes deverão ser previstos em edital, e serão admitidos todos os interessados que preencherem os requisitos objetivos estabelecidos;
Devemos ler também o caput do parágrafo e o seu inciso I:
§ 1º Na modalidade diálogo competitivo, serão observadas as seguintes disposições:
I – a Administração apresentará, por ocasião da divulgação do edital em sítio eletrônico oficial, suas necessidades e as exigências já definidas e estabelecerá prazo mínimo de 25 (vinte e cinco) dias úteis para manifestação de interesse na participação da licitação;
Salvo melhor juízo, a pré-seleção dos licitantes é para sua admissão na fase de diálogo, tendo por base requisitos objetivos estabelecidos no edital de abertura do certame, que é o objeto do inciso I. Demonstraremos a correção dessa assertiva.
No momento de lançamento do primeiro edital do diálogo competitivo (são dois, conforme ficará claro), o de abertura, será dada publicidade às necessidades da Administração e as exigências já definidas por ela. Nesse momento, a Administração não possui elementos que lhe permitam fixar critérios objetivos para filtrar licitantes para a fase seguinte, a competitiva. Ela sequer sabe o que será apresentado por eles na fase de diálogo.
Note-se que o objetivo do Poder Público na etapa do diálogo é identificar “a solução ou as soluções que atendam às suas necessidades” (art. 32, § 1º, V), e o texto aprovado no último dezembro permite que a solução ou soluções consideradas ideais não sejam exatamente nenhumas das expostas na fase de diálogo, mas mesclas de algumas delas. Isso é plenamente viável e a redação referendada pelos senadores ao final de 2020 não veda que ocorra.
Definida a solução ou as soluções adequadas, encerra-se a etapa de diálogo, e, em momento algum, há no projeto determinação – sequer indicação – de que essa fase seja eliminatória. Nela, não há declaração de licitantes vencedores, mas de soluções adequadas.
Na redação referendada pelos senadores em dezembro não existia dispositivo que ao menos indicasse a possibilidade de eliminação de licitantes na fase de diálogo. De forma obtusa, pois não encontra respaldo nos outros dispositivos atinentes ao diálogo competitivo, tal possibilidade passará a ser defensável caso se acate o acréscimo feito no inciso V do § 1º do art. 32 em fevereiro.
Ademais, os incisos do caput do art. 32 deixam evidente que o diálogo competitivo se restringe a contratações em que a Administração:
I – vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições:
a) inovação tecnológica ou técnica;
b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e
c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração;
II – verifique a necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, com destaque para os seguintes aspectos:
a) a solução técnica mais adequada;
b) os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida;
c) a estrutura jurídica ou financeira do contrato;
III – considere que os modos de disputa aberto e fechado não permitem apreciação adequada das variações entre propostas.
Ou seja, ao abrir o diálogo competitivo, a Administração não tem condições de definir critérios de disputa. Escapa do seu conhecimento a solução mais adequada para suprir suas necessidades. Ao seu alcance, tem-se apenas algum delineamento do que se deseja e a possibilidade de definir requisitos mínimos para aceitar postulantes à futura competição. Caso a situação não seja essa, a Administração não pode utilizar o diálogo competitivo, estará diante de situação em que se imporá o uso do pregão, da concorrência ou da contratação direta (por dispensa ou inexigibilidade).
A leitura do inciso VIII do § 1º do art. 32 evidencia que o edital da fase competitiva é outro: “ao declarar que o diálogo foi concluído, juntar aos autos do processo licitatório os registros e as gravações da fase de diálogo, iniciar a fase competitiva com a divulgação de edital contendo a especificação da solução que atenda às suas necessidades e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa”. Aí sim, o projeto deixa claro que haverá seleção de uma proposta.
Assim, conforme entendemos, pelo texto aprovado na Câmara e ratificado na votação de dezembro passado, todos os qualificados a participar da fase de diálogo têm direito a participar da fase competitiva, mesmo que a sua solução não seja considerada a mais adequada.
A contrario sensu, como consequência de eventual acatamento da mudança feita em fevereiro, passaremos a estar diante da absurda possibilidade de a solução apresentada por um licitante ser considerada a única apropriada, acarretando que exclusivamente ele seja “selecionado” para a fase competitiva. Mas para competir com quem?
A toda evidência, a alteração sugerida no inciso VIII do § 1º do art. 32 é de mérito e altera profundamente o diálogo competitivo que foi definido no projeto, desfigurando-o. Ao nosso sentir, a modificação não deveria ser acatada, mantendo-se a redação aprovada em dezembro passado.
O art. 41 do texto votado em dezembro passado correspondia ao art. 37 do Substitutivo da Câmara e foi mantido na redação final proposta em 19 de fevereiro. A versão divulgada em 5 de março produziu alterações.
O § 4º do art. 41 antigo converteu-se no novo art. 41 da última versão, que também absorveu o antigo § 5º daquele artigo como seu parágrafo único.
O restante do antigo art. 41 transformou-se no novo art. 42 da versão de 5 de março.
Anota-se que, em todas as versões, está presente comando que incompatível com nossa ordem constitucional. Na última versão, está no inciso II do art. 42, pelo qual se admite como prova de qualidade de produto apresentado pelos proponentes como similar ao das marcas eventualmente indicadas no edital “declaração de atendimento satisfatório emitida por outro órgão ou entidade de nível federativo equivalente ou superior que tenha adquirido o produto”.
A Federação brasileira não gradua hierarquicamente seus membros, portanto, não existe nível federativo equivalente, inferior ou superior, apenas distribuição de competências. Tal graduação denuncia preconceito da União em relação aos entes federados e ofende o pacto federativo (arts. 1º e 18 da CF). Noutro giro, igualmente afronta-se o inciso II do art. 19 da Lei Maior, pelo qual União, estados, Distrito Federal e municípios não podem recusar fé aos documentos públicos. O comando é inconstitucional e eventual veto presidencial poderá ceifá-lo integralmente do texto.
No art. 68 do PL (art. 67 na versão de 19 de fevereiro), há modificações no caput e nos seus incisos II e III:
Redação final proposta em 19 de fevereiro
No art. 67 do PL, há modificações no caput e nos seus incisos II e III:
Art. 67. As habilitações fiscal, social e trabalhista serão aferidas mediante a verificação dos seguintes requisitos [substituiu “apresentação de documentação apta a comprovar”]:
....................................................................................
II – a inscrição no cadastro de contribuintes estadual e/ou [substituiu “e”] municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;
III – a regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou [substituiu “e”] municipal do domicílio ou sede do licitante, de acordo com o objeto contratado [foi acrescido], ou outra equivalente, na forma da lei;
Redação final proposta em 5 de março
Art. 68. As habilitações fiscal, social e trabalhista serão aferidas mediante a verificação dos seguintes requisitos [substituiu “apresentação de documentação apta a comprovar”]: [igual à de 19 de fevereiro]
....................................................................................
II – a inscrição no cadastro de contribuintes estadual e/ou [substituiu “e”] municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual; [igual à de 19 de fevereiro]
III – a regularidade perante a Fazenda federal, estadual e/ou [substituiu “e”] municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei; [diferente da de 19 de fevereiro – retirou-se o acréscimo]
A mudança no caput do artigo nos faz crer na ideia de trazer expressamente para a habilitação o conceito digital adotado no PL, com o fim de tornar a futura lei compatível com o artigo 3º, § 3º, da Lei nº 13.726/2018, que racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação.
As substituições de “e” por “e/ou” feitas nos incisos II e III, contudo, nos parecem equívocos. Imaginamos que a inspiração para a mudança esteja no fato de a inscrição no cadastro de contribuintes poderá ser estadual ou municipal, a depender da atividade desenvolvida pelo licitante. Entretanto, utilizar “e/ou”, ao contrário do que se pretendeu, denota que a inscrição no cadastro de contribuintes a ser exigida pode ser simultaneamente estadual e municipal. Por certo, as mutações não tiveram esse objetivo.
Como a inscrição no cadastro de contribuintes exigível será, conforme o caso, estadual ou municipal, a saída adequada é empregar apenas a conjunção “ou” que denota exclusão entre alternativas. A conjunção “e” é utilizada quando as alternativas não necessariamente se excluem.
Alternativamente, caberia o uso de “estadual ou municipal, conforme o caso” no lugar de “estadual e/ou municipal, se houver”, no inciso II, e, no inciso III, “estadual ou municipal do domicílio ou sede do licitante, de acordo com o objeto contratado” (que aproveita a inserção que havia sido feita em 19 de fevereiro) em substituição a “estadual e/ou municipal do domicílio ou sede do licitante”.
A redação final republicada em 5 de março promove alteração incabível no art. 71 (art. 70 da versão de 19 de fevereiro). No projeto enviado à Câmara, na redação devolvida pelos deputados, na votada em dezembro de 2021 e na versão final proposta em 19 de fevereiro passado, o artigo contava com um § 5º, comando pelo qual a nulidade não exoneraria a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que ele houvesse executado até a data em que fosse declarada nem por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe fosse imputável, devendo ser promovida a responsabilização de quem lhe tivesse dado causa. As versões citadas possuem pequenas diferenças, resultantes de simples ajustes redacionais.
Contudo, na versão apresentada em 5 de março, o § 5º do art. 71 (art. 70 da versão de 19 de fevereiro) foi sumariamente retirado do texto. Inopinadamente, estamos diante de uma intempestiva modificação de cunho meritório.
Outra modificação que destacamos é a do inciso IX do art. 75 (art. 74 da versão de 19 de fevereiro). Ainda que seja absolutamente defensável sob o prisma do princípio da eficiência, entendemos que se trata de mérito, não de redação. Na votação de dezembro, foi solicitado destaque e rejeitada a alínea a do inciso, que, contudo, originalmente não existia. Vejamos a sequência de alterações.
Texto vindo da Câmara, que manteve a redação conforme lhe fora enviado pelo Senado:
IX – para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado ou com os custos da entidade a ser contratada;
Redação proposta no Relatório do Senador Anastasia, em dezembro de 2020:
IX – para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integrem a Administração Pública e que tenham sido criados para esse fim específico, desde que o preço contratado seja compatível com:
a) os custos da entidade a ser contratada; ou
b) o praticado no mercado;
A exemplo do ocorrido com o § 5º do art. 25, transparece a clara intenção do Relator de permitir ao Presidente da República vetar a criticável – e inconstitucional, conforme veremos – possibilidade de contratar diretamente integrante da administração pública por preço adequado a seus custos e incompatível com os de mercado.
Na votação de dezembro de 2020, houve destaque para apreciação em separado do artigo, que levou à rejeição da alínea a. O artigo ficaria com a seguinte configuração:
IX – para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integrem a Administração Pública e que tenham sido criados para esse fim específico, desde que o preço contratado seja compatível com:
b) o praticado no mercado;
Com o intuito de aprimorar o texto, sugere-se o seguinte na Redação final, a ser votada:
IX – para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integrem a Administração Pública e que tenham sido criados para esse fim específico, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado;
De fato, é inadmissível, diante dos primados da economicidade e da eficiência, que o preço contratado em uma dispensa de licitação seja compatível com os custos do contratado, mas descolado dos praticados no mercado. Admitir-se pagar um preço mais alto do que o usualmente empregado na praça para premiar o contratado ineficiente integrante da administração pública, que exercita preços mais altos porque tem custos maiores, é um inconstitucional estímulo à ineficiência da administração, por menoscabo ao art. 37 da Carta Política.
Não obstante, resta evidente que houve a exclusão de uma das alternativas existentes desde a redação original aprovada no Senado e não rejeitada pela Câmara: o preço ser compatível com os custos da entidade a ser contratada.
A alteração é de mérito, não admitida neste momento do processo legislativo. Pode-se alegar, contudo, essencial e inafastável exercício controle de constitucionalidade no processo legislativo, que deve ser feito a todo tempo.
Vejamos agora as alterações empreendidas no art. 164 (art. 163 na redação votada em dezembro e na versão de 19 de fevereiro):
Redação aprovada em dezembro de 2020
Art. 163. Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar edital de licitação por irregularidade na aplicação desta Lei ou para solicitar esclarecimento sobre os seus termos, devendo protocolar o pedido até 3 (três) dias úteis antes da data de abertura das propostas.
Parágrafo único. A resposta à impugnação ou ao pedido de esclarecimento será divulgada em sítio eletrônico oficial no prazo de 3 (três) dias úteis.
Redação final proposta
Art. 164. Qualquer pessoa é parte legítima para impugnar edital de licitação por irregularidade na aplicação desta Lei ou para solicitar esclarecimento sobre os seus termos, devendo protocolar o pedido até 3 (três) dias úteis antes da data de abertura do certame.
Parágrafo único. A resposta à impugnação ou ao pedido de esclarecimento será divulgada em sítio eletrônico oficial no prazo de até [inserido] 3 (três) dias úteis, limitado ao último dia útil anterior à data da abertura do certame [inserido].
Os defensores das alterações alegam que, caso fosse observado o prazo máximo para impugnar (até o 3º dia útil antes da abertura do certame) e o prazo para responder (3 dias úteis após o protocolo da peça), o PL seria paradoxal, pois preveria como tempestiva a resposta mesmo após aberta a licitação. Em tese, seria possível responder à impugnação após o início do certame.
Além disso, foi modificada a legitimação ativa para impugnar edital de licitação por irregularidade na aplicação da lei ou para solicitar esclarecimento sobre os seus termos. De “cidadão” o legitimado passou a ser “pessoa”, abarcando, assim, a possibilidade de pessoa jurídica impugnar e pedir esclarecimento (o que é sabidamente o mais comum). Alega-se que é benéfica a eliminação de um viés formalista desnecessário (juntada de título de eleitor para comprovar a condição de “cidadão”).
A despeito das boas intenções, inegavelmente, o mérito foi modificado. Não é um emendamento de redação. O conceito jurídico de cidadão difere do de pessoa, e a opção original do legislador foi pelo primeiro.
A redação final de 19 de fevereiro também trouxe novidades no art. 171, que era o 172 até o escrutínio do Senado em dezembro passado. Sua renumeração havia ocorrido em razão da rejeição do pretérito art. 169, inserido pela Câmara. Na versão de 5 de março, voltou a ser o art. 172, por conta das modificações feitas nos arts. 41 e 42.
Com vistas a evitar a inconstitucionalidade do sentido interpretativo amplo do alcance do entendimento vinculante de súmulas do Tribunal de Contas da União (TCU), na versão de 19 de fevereiro houve delimitação do alcance da diretriz consubstanciada no art. 171 daquela redação, tornando-a, indiscutivelmente, uma norma específica para a Administração federal e não norma geral, que a União não teria competência para legislar sobre.
Art. 171. Os órgãos de controle da Administração Pública, autárquica e fundacional federal [inserido] deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e a propiciar segurança jurídica aos interessados.
Na versão de 5 de março, retornou-se à redação anterior e o problema foi ressuscitado.
Não esqueçamos que o projeto sob análise se propõe a criar normas de abrangência nacional. Em inúmeros momentos, todavia, surgem em seu bojo comandos de duvidosa constitucionalidade frente ao princípio federativo. É o presente caso.
É imperioso respeitar a autonomia administrativa, primeiro, das outras unidades da Federação, e, em segundo nível, dos tribunais de contas desses entes, bem como dos demais órgãos de controle.
Esclarecemos que os tribunais de contas não possuem hierarquia entre si – suas competências decorrem da origem dos recursos fiscalizados, de modo que suas competências não se sobrepõem ou interpenetram.
A redação proposta pelo antes art. 172 do Substitutivo aprovado pela Câmara, e ora retomada, pode ser interpretada no sentido de restringir o poder decisório das demais cortes de contas e órgãos de controle do País, uma vez que eles: (i) deveriam se orientar pelos enunciados das súmulas do TCU; e (ii) em caso de divergência, deveriam apresentar motivos relevantes devidamente justificados. Haveria, dessa forma, ingerência de órgão federal sobre a atuação de órgãos autônomos dos demais entes federativos. As demais cortes de contas, a exemplo do TCU, gozam de autonomia administrativa, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96 da Carta Política (art. 73, caput).
Na redação que permanece, o dispositivo em comento exige um certo “esforço” interpretativo para que dele se extraia a única exegese aceita pela ordem constitucional.
Assim, poderíamos classificar a alteração no caput do art. 171 feita na versão de 19 de fevereiro como de simples redação, de forma a espancar eventuais linhas de interpretação inconstitucionais, evitando desnecessárias e dispendiosas discussões nos âmbitos administrativo e judicial.
Não menos importante é a constatação de que a norma discutida é de fiscalização financeira da administração pública, o que torna um projeto de lei ordinária inadequado sequer para sua discussão. Consoante o inciso V do art. 163 da Carta de 1988, o locus de normas desse jaez é a lei complementar.
Teçamos comentários aos arts. 191 (art. 190 da redação votada em dezembro passado e da de 19 de fevereiro), com seus parágrafos únicos, que no texto aprovado em dezembro de 2020 eram, respectivamente, os §§ 2º e 3º do art. 191. Foram promovidos acréscimos.
Redação votada em dezembro de 2020
Art. 191. ...........................................................................
...........................................................................................
§ 2º Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 190, a Administração poderá optar por licitar de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
§ 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 190 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
Redação final sugerida em 19 de fevereiro de 2021
Art. 190. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 192, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no instrumento contratual, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 192 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
Redação final sugerida em 5 de março de 2021
Art. 190. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 192, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 192 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.
Justificam-se as alterações no fato de que na forma anterior ficaram de fora as hipóteses de contratação direta (dispensa e inexigibilidade), o que geraria uma aparente incompatibilidade na aplicação da nova lei. Seria aberto espaço para interpretação no sentido de que em contratações diretas deveria ser aplicada necessariamente a nova lei, não havendo espaço para a escolha entre utilizar a legislação nova ou a antiga nos dois anos subsequentes à publicação da lei objetivada. Todos os pareceres e justificações do projeto evidenciam a intenção de conceder o prazo de adaptação também para as contratações diretas.
Trataremos nos próximos parágrafos considerações sobre comandos que, a despeito de não terem sido modificados na redação final, também fazem jus a um olhar atento.
O primeiro comentário resulta, cremos, do excesso de cuidado do elaborador da norma e da “boca torta pelo uso continuado do cachimbo” (art. 25, II, da Lei nº 8.666, de 1993).
No inciso III do art. 74 da redação de 5 de março (arts. 73 do texto aprovado em dezembro de 2020 e da versão de 19 de fevereiro) define-se que a licitação será inexigível para certos serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, enumerando-os, aparentemente, de forma taxativa.
Ora, a inexigibilidade de licitação advém da realidade fática, não de opção legislativa, como são as dispensas de licitação. Nelas, obedecidas as balizas constitucionais, o legislador pode definir situações em que autoriza o gestor a contratar diretamente. Contudo, se ele preferir, licitar também é uma opção.
A inexigibilidade ocorre porque a competição ou a disputa são inviáveis. Ou seja, não se trata de discricionariedade. Nesses casos, não há meios para licitar.
A competição é inviável, por exemplo, quando há monopólio – jurídico ou real, bem como no caso de existir um único produto que atenda às necessidades da administração.
Por sua vez, a disputa é impossível quando não há como serem estabelecidos parâmetros objetivos de julgamento. É o caso da contratação de um advogado parecerista famoso, renomado, de reconhecido e notório saber. Bem assim, a de um cantor admirado pela crítica e pelo público. Apesar de ser possível a um sem número de advogados emitirem parecer sobre o mesmo tema ou a vários artistas cantarem as mesmas músicas em um show, não há como aferir objetiva e comparativamente os serviços desses profissionais com os outros de renome.
Portanto, o que importa no art. 74 é o seu caput, que define ser inexigível a licitação quando inviável a competição. O que vem depois no artigo é simplesmente uma lista exemplificativa (“em especial nos casos de:”). O rol de dispensas de licitação, ao contrário, é numerus clausus.
Ora, o inciso III poderia se resumir a dizer que uns dos exemplos de licitação inexigível seria a “contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação”.
Isso não somente por causa da natureza da inexigibilidade, mas também porque o inciso XVIII do art. 6º também já define o que são serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual.
Assim, a enumeração contida nas alíneas do inciso III do art. 74 é absolutamente despicienda.
Ainda que não tenham sido promovidas alterações no inciso IV do caput do art. 156 (art. 155 da redação de 19 de fevereiro, com igual teor), havemos por bem tecer comentários sobre o comando, abaixo reproduzido, junto com o inciso III do mesmo dispositivo:
Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções:
.....................................................................................
III – impedimento de licitar e contratar;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.
Entendemos que a utilização de “e” (conjunção coordenativa aditiva) no inciso III e de “ou” (conjunção coordenativa alternativa) no inciso IV tem o potencial de gerar e manter deletérias discussões doutrinárias e jurisprudenciais.
De plano, registramos que o art. 87 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, usa as mesmas palavras nos seus incisos III e IV, apesar de serem ligeiramente diferentes dos dispositivos ora em comento:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
.................................................................................
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Seria um bom momento para o novo marco legal eliminar de vez qualquer potencial contencioso.
Em regra, é necessário antes licitar para depois contratar (art. 37, XXI, da CF), exceção feita às contratações diretas: dispensas e inexigibilidades (ainda que alguns normativos legais falem apenas em contratar diretamente, sem especificar se seria por um ou outro instituto). As exceções – admitidas pelo texto constitucional – não podem infirmar a regra, mas, antes, confirmá-la. Assim, somente pode ser contratado diretamente aquele que estaria apto a se submeter ao procedimento ordinário: conquistar o direito de contratar por vencer a disputa em um certame licitatório. Essa é a lógica: se uma pessoa sequer pode participar de licitação, por óbvio, não pode contratar, sob qualquer pretexto.
Ao ser contratado diretamente, o particular apenas não concorre em uma licitação, mas o instrumento que formalizar a avença deve conter “cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” (parte final do inciso XXI do art. 37 da Lei Maior). Ou seja, a contratação direta somente é exceção quanto ao aspecto da disputa.
É incongruente e irracional pensar tanto que a alguém seja franqueado contratar sem antes participar de certame licitatório, porque lhe era vedado, quanto que se permita a contratação direta de uma pessoa que não pode nem mesmo competir em licitação.
Na redação final, o comando do inciso III do caput do art. 156 deixa clara a vedação imposta nas duas vertentes: não pode licitar nem contratar (o que afasta a exótica ideia de ser autorizada a contratação direta). Todavia, pela utilização do “ou”, o inciso IV permite-se a bizarra exegese de que seria possível declarar inidoneidade para licitar e contratar, só para licitar ou só para contratar. Conforme vimos, as duas últimas não se coadunam com a lógica jurídico-constitucional. Se não pode licitar, claro que não pode contratar. Por outro lado, se não pode contratar, a ideia de poder participar da licitação é absolutamente incoerente. Qual seria a finalidade dessa participação?
O ideal seria substituir o “ou” pelo “e” no inciso IV do caput do art. 156. Entendemos que a natureza do emendamento é de redação, pois confere ao texto a única exegese possível em face das normas constitucionais de licitação e contratação públicas, que jungem a legislação ordinária na matéria.
Por fim, alguns parágrafos acima comentamos o art. 172. O antigo art. 173 do texto aprovado pela Câmara, mantido como art. 173 na redação final de 5 de março, relaciona-se diretamente com aquele e também inova ao prever que os tribunais de contas deverão, por meio de suas respectivas escolas de contas, promover eventos de capacitação para servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução da Lei de Licitações e Contratos, incluindo cursos presenciais e à distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas.
Novamente, vislumbramos afronta à autonomia desses órgãos. O dispositivo trata de organização administrativa, não de norma geral de licitações e contratos. Apesar de as cortes de contas já promoverem cursos e eventos dessa natureza, consideramos que não se pode impor a sua realização mediante previsão em lei geral de licitações e contratos, editada com fundamento no art. 22, XXVII, da Constituição Federal. Eventual previsão nesse sentido, a nosso ver, cabe a cada ente federado e, caso exista, deve ser veiculada, quando muito, na lei de organização de cada tribunal de contas, de suas próprias inciativas.
3 - CONCLUSÃO
De fato, produzir uma nova lei de licitações e contratos não é tarefa fácil e, humanos que são, os legisladores não estão livres de falhas. Nenhuma obra humana é infensa a incorreções e imprecisões. As críticas feitas neste artigo e em outros não são a pessoas, até porque o texto discutido é fruto da vontade coletiva do Congresso Nacional. Devemos, sim, render homenagens aos parlamentares que se dedicaram a produzir e aprimorar a nova lei. Furtamo-nos a declinar nomes porque foram muitos, ao longo de anos.
Concluindo, exortamos que o texto que advier da votação da Redação Final e de eventuais vetos apostos pelo Presidente da República seja encarado como um reinício, um marco zero. Somente com certo esforço conseguiremos nos livrar da tentação de fazer comparações com a Lei de Licitações e Contratos atual, ainda mais com a convivência por dois anos dos marcos novo e antigo. Mas é necessário que façamos isso.