Accountability e Orçamento Sigiloso: explorando perspectivas antagônicas com a nova norma de Pesquisa de Preço

 

 

Recentemente, o Ministério da Economia editou uma nova norma (Instrução Normativa nº 73, 2020) para regulamentar os procedimentos para realização de pesquisa de preços para aquisições e contratações de serviços no âmbito do Poder Executivo do Governo Federal. A partir de agora o artefato “pesquisa de preço” deverá conter o nome de quem o elaborou. Um dos poucos princípios férreos do comportamento humano é que a possibilidade de escrutínio público dos feitos eleva os padrões morais de quem faz, na medida em que ações impróprias, mal feitas, ou flagrantemente desidiosas provocam a emoção da vergonha (Blame and Shame). Notadamente, isso trará um impacto positivo na qualidade da pesquisa de preço, o que torna a discussão sobre a aplicabilidade do orçamento sigiloso ainda mais vigorosa.

A temática do orçamento sigiloso e a não divulgação do valor estimado da licitação no instrumento convocatório há muito provoca intensas discussões entre especialistas em compras públicas. Proponho uma reflexão: quando um copo d’água está preenchido até a metade, esse copo está meio vazio ou está meio cheio? Existem opiniões mais certas ou menos erradas? Quem tem razão?

Ao sugerir essa analogia lúdica, afasto a polêmica envolvida na dicotomia entre publicidade e sigilo dos preços estimados em licitações públicas para adentrar em uma discussão mais objetiva e pragmática, com base em evidências empíricas. Dessa forma, essa tomada de decisão perpassa, necessariamente, na justificativa de uso do orçamento sigiloso, considerando, ainda, as melhores práticas e as lições aprendidas.

O novo Decreto nº 10.024 (2019) prevê em seu art. 15 a possibilidade de conferir sigilo ao valor estimado do Pregão, uma das modalidades de licitação previstas em nosso ordenamento legal. Por sua vez, esse Decreto não inovou. Não obstante o orçamento sigiloso não estivesse explicitamente positivado no revogado Decreto nº 5450 (2005) e na legislação pertinente (Lei nº 10.520, 2002; Lei nº 8666, 1993), já era facultado ao gestor a opção de publicar ou não o valor estimado do objeto a ser contratado no Edital. Ademais, a Lei do RDC (Lei nº 12.527, 2011) e a Lei das Estatais (Lei nº 13.303, 2016) preveem a possibilidade de uso do orçamento sigiloso.

Entre 2018 e setembro de 2019, o SIASG - Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais do Governo Federal - registrou mais de 180 mil processos de compras, entre os quais quase um terço não tiveram seus orçamentos publicados, ou seja, mais de 60 mil compras. Contudo, o uso de um orçamento sigiloso não seria um contrassenso, na medida em que a regra na Administração é a publicidade dos atos e o endosso da transparência pública?

A resposta dessa pergunta está intrinsicamente ligada ao conceito de Accountability. Antes de tudo, afirmo, amparado na melhor literatura acadêmica (Michener & Bersch, 2013; O ’Donnell, 1998; Schedler, 1999; Sunstein, 2018) que "Accountability" é um conceito intraduzível. É um substantivo fashion usado para expressar a preocupação contínua com a existência de mecanismos e instrumentos de supervisão e vigilância para o exercício de Poder, evitando seu abuso, domesticando o titular do Poder sob o controle de regras de conduta. Os principais atores que fazem o accountability acontecer são a imprensa, os cidadãos comuns, jornalistas, curiosos, a sociedade civil. Todavia, o accountability é prejudicado se não há o exercício do direito fundamental do acesso à informação. Os usuários do serviço público não podem contestar uma política pública ou um ato administrativo se ele é sigiloso ou se sua informação está sonegada.

Evoco dois princípios muito importantes quando falamos de compras públicas, a Supremacia do Interesse Público e a sua Indisponibilidade. A Supremacia do Interesse Público assevera que em uma situação de conflito entre interesse de um particular e o interesse público, este último deve predominar. A Indisponibilidade do Interesse Público determina que o interesse público não fica à mercê do agente público. Há regras que o restringem. O Interesse Público é intangível e indisponível. O administrador não é seu dono, configurando-se apenas em um guarda ou um fiscal da coisa pública. Sua vontade não conta, ou seja, é a aversão ao patrimonialismo.

Dessa forma, a justificava do uso da hipótese de sigilo no preço máximo que a Administração deseja pagar em um determinado processo de compra alcança deve ser robusta. A solução recai na Pesquisa de Preço.

A pesquisa de preço é a etapa mais crítica na fase interna de um processo licitatório. Se ela é bem feita, o risco de insucesso na obtenção da proposta mais vantajosa cai vertiginosamente.

Os defensores do orçamento sigiloso apontam o fenômeno da Ancoragem e que não publicar o preço que a Administração está disposta a pagar seria um mecanismo de defesa contra essa fenômeno. A ancoragem ocorre quando os licitantes convergem seus lances iniciais àquele valor estimado que está ostensivo no Edital. Dessa forma, os defensores do orçamento sigiloso argumentam que sem esse valor de referência publicado, os lances iniciais ofertados pelos licitantes podem ser mais vantajosos.

Por outro lado, os defensores da publicação do orçamento apontam que não haveria motivo em tornar sigiloso o preço estimado se a pesquisa de preço foi feita com critério e afinco e há segurança no real preço daquele objeto a ser comprado. Quais seriam as condicionantes de obter um preço ainda mais reduzido, caso a opção seja pelo sigilo do valor estimado?  Ao confirmar essa hipótese configurar-se-ia uma situação paradoxal: se o preço foi reduzido, a pesquisa de preço não foi bem feita.

Dessa forma, uma boa prática para o uso do orçamento sigiloso é quando há uma incerteza muito grande no preço do objeto que se pretende contratar. Os pontos que agregam complexidade à pesquisa de preço, implicando em incerteza são:

a)    Escalabilidade do objeto;

b)    Local de Entrega;

c)    Quantidade e Volumetria;

d)    Prazo de Entrega;

e)    Semelhança da especificação técnica do objeto que se pretende contratar com a especificação técnica do objeto cujo preço está sendo comparado;

f)     Condições do Contrato e Nível de Serviço;

g)    Adotar fontes de preço alternativas ao clássico e ultrapassado “solicitação de propostas aos fornecedores”, exclusivamente;

 Contudo, alerto que o uso indiscriminado do orçamento sigiloso faz emergir um aspecto negativo na etapa de pesquisa de preço, qual seja a ocultação de pesquisas de preço mal feitas, negligentes e desidiosas, já que há um escudo de proteção erigido sob o sigilo de preço estimado. Com efeito, os incentivos promovidos na etapa da pesquisa de preço serão negativos quando se sabe de antemão que o preço estimado será sigiloso na publicação do Edital. As ferramentas e os instrumentos ao alcance do gestor, entre elas a hipótese de não publicar o preço estimado da licitação, devem evitar que pessoas boas tomem decisões ruins.

No final de 2019, palestrei em um seminário na escola da AGU, ocasião em que apliquei um questionário interativo com a audiência, perguntando-lhes a sua opinião sobre o orçamento sigilo. Conforme a ilustração da figura 1, a maioria esmagadora, quase 70%, da audiência, que era composta por advogados, gestores, agentes de compras, pregoeiros e especialistas em compras públicas, se manifestou favorável ao uso de orçamento sigiloso. Houve uma minoria, cerca de 20%, que se posicionou contrariamente.

Retomo o aforismo do início do texto em que o copo d’água está preenchido até a metade. Ele está metade cheio ou metade vazio?  Não há certo ou errado quanto ao uso do orçamento sigiloso, a depender da perspectiva. Ampliar o leque de discricionaridade do gestor tomador de decisão é urgente e visa empoderá-lo, evitando assim o apagão das canetas e a gestão orientada ao medo. De fato, é válida a tomada de decisão por orçamento sigilo, desde que amparada em evidências empíricas, em que há sustentação técnica de que o preço final obtido na licitação será menor. Devemos afastar a todo custo decisões tomadas meramente no determinismo.

Por fim, diferentemente da opinião da maioria da audiência do evento da escola da AGU, eu sou contrário ao uso do orçamento sigilo. Irei me contrapor, assim como quando defendi a Burocracia contra seu emprego pejorativo (  https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/desburocracia-efeitos-deleterios-de-uma-visao-miope/).  Ao contestar o pensamento majoritário em relação ao orçamento sigiloso, sustento meu posicionamento em um dos princípios elementares da Res Publica: a regra é a transparência, o sigilo é a exceção.