Alterações contratuais decorrentes da pandemia em contratos preexistentes: uma questão de bom senso

 

O tema tem gerado dúvidas e dificultado a tomada de decisões. Aliás, as chances de você já ter enfrentado essa questão ou ter ouvido falar dela são grandes, pois é um problema real que, cedo ou tarde, afetará alguém do seu círculo profissional ou pessoal.

A problemática gira em torno dos efeitos da pandemia sobre contratos que não foram celebrados sob o manto da Lei 13.979/20. A rigor, as modificações contratuais estariam condicionadas aos limites percentuais previstos pelo art. 65, §1º da Lei 8.666/93, lei de regência. O impasse decorre do fato de que, não obstante tais contratos estejam inseridos no mesmo contexto fático do estado de calamidade, não há regulamentação específica que lhes seja aplicável durante esse período, sendo necessário, então, escolher entre uma interpretação pautada na coerência do sistema normativo, porém mais elástica e, por essa razão, arriscada, e outra, mais segura, porém ancorada no que seria, a meu ver, uma “legalidade inepta”.

O referido §1º estabelece limites claros para as modificações unilaterais, numa evidente contenção ao exercício da prerrogativa. Em relação aos acréscimos, foco desta abordagem, podem chegar a 25% sobre o valor inicial atualizado do contrato de obra, serviço ou fornecimento de bens, alcançando 50% quando for o caso reforma de edifício ou equipamento. A norma está atrelada ao dever de planejar, sendo premissa pacificada pela doutrina e pela jurisprudência do Tribunal de Contas da União que as modificações devem decorrer de fatos supervenientes que não podiam, por imprevisíveis, ser considerados na etapa de planejamento da contratação.[1] Por essa mesma razão, considerando a maior imprevisibilidade a que se sujeitam contratos de obras e serviços cuja duração se protrai no tempo, o TCU tem flexibilizado a rigidez do limite legal em caso de acréscimos qualitativos realizados em caráter excepcional, com a concordância da contratada e observância dos requisitos explicitados na paradigmática Decisão nº 215/99 - Plenário.

A Lei 13.979/20, ao estabelecer regime de regras transitórias destinadas à contenção dos efeitos da pandemia, fixou, em seu art. 4º - I, que os nos “contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado de até 50% (cinquenta por cento) do valor inicial atualizado do contrato.”[2] Está claro que, além de considerar a possibilidade de que o planejamento dessas contratações seja afetado pela urgência no atendimento da demanda[3], a regra leva em conta a alta suscetibilidade das situações concretas vigentes ao tempo da pandemia a mudanças decorrentes do imprevisível que permeia todo o ambiente pandêmico. A toda evidência, desde o momento em que o contrato é celebrado até o término de sua execução, o mundo dos fatos, externo ao contrato, pode ser alterado pela excepcionalidade do momento vivido e vir a influenciar diretamente os resultados da contratação. Nessa lógica, a possibilidade de alteração unilateral superior ao limite ordinário é desde logo autorizada, cabendo à Administração, por uma questão de segurança jurídica e respeito à boa fé contratual, fazer constar sua previsão no edital e/ou contrato e motivá-la adequadamente quando da sua realização.[4]

Pois bem. Neste contexto, imagine um contrato de prestação de serviços de limpeza celebrado antes do Decreto Legislativo nº 6, com base na Lei 8.666/93.[5] Como parte do plano de retomada, com retorno dos servidores às atividades presenciais e abertura do edifício público ao acesso de cidadãos, o contrato precisa ser alterado para adequar-se às necessidades de sanitização do ambiente decorrentes da pandemia, o que pode implicar modificação na forma de prestação dos serviços, com impacto nos insumos utilizados, bem como na produtividade e quantitativo de funcionários da empresa realizando as atividades, com alteração do índice de produtividade inicialmente ajustado. A hipótese claramente comporta alteração contratual fundada em fatos supervenientes e imprevisíveis originados na pandemia. Observa-se, a propósito, que a demanda advém, única e exclusivamente, da necessidade de contenção dos efeitos dela. Contudo, o que fazer se o acréscimo devido, qualitativo ou quantitativo, superar os 25% previstos no §1º do art. 65 da Lei 8.666/93?

Entendendo-se pela aplicação da Lei 8.666/93, salvo se formalmente demonstrado o atendimento dos requisitos cumulativos impostos pela aludida Decisão 215/99-TCU/Plenário, um novo contrato deveria ser celebrado. Algumas hipóteses poderiam, então, ser vislumbradas, a depender do caso concreto e a critério do gestor, após avaliação sob os enfoques da eficiência da execução, da economicidade e dos resultados pretendidos: rescisão do contrato anterior e contratação do objeto de forma integral, contratação apenas do acréscimo pretendido, contratação somente do residual que superar os 25% admitidos pela Lei 8.666/93. Ao gestor também competiria avaliar a pertinência, ou não, do objeto da nova contratação com a Lei 13.979/20, para o fim de utilizar os procedimentos nela previstos ou, diversamente, contratar nos termos das Leis 8.666/93 ou 10.520/00. Conforme fosse a situação, poderia ficar em dúvida se, em verdade, o fundamento legal não deveria ser o art. 24, inc. IV da Lei 8.666/993. Eventualmente, ainda, se questionaria quanto à legalidade em contratar a mesma empresa para prestar os serviços, hipótese que, a despeito de parecer razoável, talvez não tivesse ressonância junto ao seu Tribunal de Contas.

Enquanto isso, no mundo das contratações firmadas durante a pandemia, há uma nova norma, o citado art. 4º - I da Lei 13.979/20, que pressupõe que as circunstâncias peculiares ao momento são motivo suficiente para justificar e autorizar alterações contratuais, até mesmo unilaterais, para além dos limites da Lei 8.666/93. Uma norma cuja lógica de existência é a inadequação da aplicação, em situação extraordinária, dos mesmos limites aplicáveis em tempos de normalidade.

Sob o prisma da realidade, não há como negar que, neste período, todos os contratos em vigor, independentemente da norma que regulou a sua celebração, estão inseridos no contexto da mesma crise e sujeitos ao mesmo incremento de imprevisibilidade. Eventualmente, a necessidade de alteração de um contrato celebrado sob a vigência da Lei 8.666/93 poderá ter, exatamente, o mesmo fundamento daquela autorizada pela Lei 13.979/20.

Nesses termos, salvo melhor juízo, a norma destinada a regular situações de normalidade não cabe nesses contratos, mas, sim, ainda que posterior, a norma editada à luz do estado de emergência para regular situações que surjam no seu bojo. Não há, por uma questão de bom senso e coerência normativa, motivos para obstar ao gestor a adoção da solução mais eficiente e eficaz à satisfação do interesse público neste momento de pandemia, prendendo-se a uma interpretação restritiva de aplicação da lei vigente ao tempo da celebração do contrato.[6]

Assim, parece absolutamente possível afirmar que, se a alteração contratual tiver como fundamento os efeitos da pandemia, como nos exemplos dados, não cabe submeter o gestor a uma condição menos favorável de decidir, retirando do seu âmbito a possibilidade de se valer de limites maiores para a realização de acréscimos contratuais. Se o problema que a Lei 13.979/20 intentou resolver vier a se configurar em contrato celebrado com base na Lei 8.666/93, estaremos diante da possibilidade de uma aplicação por analogia do art. 4º-I, já mencionado[7]. Isso se dará, sem sombra de dúvida, nos casos em que celebrar o termo aditivo for equivalente a contratar “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, considerando, para tanto, a ampla concepção que tem sido dada a tais objetos, não apenas relacionados à área da saúde.

Contudo, diversamente do que ocorre com os contratos regidos pela Lei 13.979/20, não há autorização para a alteração unilateral. Tal possibilidade, como se sabe, está condicionada pelo art. 4º - I à previsão em edital e/ou contrato, inexistente nos contratos celebrados com base na Lei 8.666/93. Portanto, a alteração em patamares superiores dependerá da concordância da contratada, na mesma linha de raciocínio adotada pela citada Decisão 215/99 do Plenário do TCU.

Isto posto, a título de conclusão, pode-se afirmar que, por analogia ao art. 4º - I da Lei 13.979/20, contratos celebrados antes do Decreto Legislativo nº 6/20 podem sofrer acréscimos qualitativos ou quantitativos consensuais até o limite de 50% sobre o seu valor inicial atualizado, desde que em decorrência direta dos efeitos da pandemia, em situações nas quais a necessidade envolvida possa ser equiparada às contratações da Lei 13.979/20, cabendo ao gestor motivar adequadamente nos autos do processo.



[1] Se previsíveis, por outro lado, deveriam ter integrado o conteúdo do edital que gerou a licitação e a posterior contratação. Neste caso, em especial, também é assente que a falha não afasta a possibilidade de realizar a alteração se esta for a melhor solução para o interesse público, sob os enfoques técnico e econômico, passando-se à apuração da responsabilidade dos agentes que tinham o dever de planejar adequadamente a contratação.

[2] A redação foi dada pela Lei 14.035/20, em substituição à redação dada pela MP 926/20, nos seguintes termos: “Para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.”

[3] Razão pela qual, conforme defendi no artigo “Alterações contratuais durante a pandemia COVID-19: aspectos da aplicação do art. 4º - I da LEI 13.979/20”, publicado no Portal L & C, nem sempre será exigível, no caso dos contratos da Lei 13.979/20, o fato superveniente à contratação.

[4] O contratado poderá, então, escolher entre contratar ou não e, de outra parte, a Administração estará em posição de exigir o cumprimento de obrigação que, em situação de normalidade, seria considerada inexigível.

[5] Que declarou o estado de calamidade em decorrência da pandemia COVID-19.

[6] A propósito do assunto, vale ressaltar as lições de Marçal Justen Filho: “Também não há cabimento em invocar que a Constituição determina que os efeitos dos atos jurídicos serão disciplinados pela lei vigente à época do seu aperfeiçoamento.  A Constituição consagra o ‘princípio’ da irretroatividade da lei nova. Logo, não existe uma vedação absoluta ao afastamento do direito vigente à época dos fatos, nos casos em que a situação se protrai no tempo e fica albergada por dispositivo legal da lei anterior. É indispensável insistir que o afastamento da eficácia das normas legais vigentes à época dos fatos não decorre de um juízo discricionário do aplicador do direito. Trata-se de uma imposição produzida pelo sopesamento dos princípios aplicáveis ao caso, que conduz ao reconhecimento da incompatibilidade entre a solução contemplada na lei existente e as circunstâncias supervenientes. A aplicação dos princípios constitucionais impõe a adoção de solução jurídica distinta daquela Contemplada na lei anterior.”  (...) “Por isso, não viola a legalidade administrativa a adoção de providências extraídas do sopesamento conjunto dos diversos princípios que dispõem sobre a atividade administrativa estatal, tomando em vista a alteração radical das circunstâncias da realidade e visando combater os efeitos nocivos da pandemia. Essa solução encontra fundamento constitucional nos diversos princípios e é compatível com a própria previsão legislativa que atribui à Administração Pública a competência para prestar os serviços públicos, assegurar a sua continuidade e regulamentar a sua regularidade. (JUSTEN FILHO, Marçal. “Direito Administrativo de Emergência”, publicado em www.justen.com.br, acesso em 17.4.2020)

[7] Por meio da analogia se estende a caso não previsto regra que o legislador previu para outra situação semelhante, em igualdade de razões. Invoca-se o princípio pelo qual, se o legislador tivesse cogitado a situação análoga, daria o mesmo tratamento.