PREGÃO ELETRÔNICO E SUA (IN)OBRIGATORIEDADE NAS TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS DE RECURSOS FEDERAIS

 

 

O Decreto Federal nº 10.024/2019, definiu a obrigatoriedade relativa de adoção da modalidade pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns pelos demais entes federativos (estados, municípios e o DF), quando utilizados recursos da União decorrentes de transferências voluntárias, tais como convênios e contratos de repasse.

Ora, pode um decreto editado pelo Poder Executivo Federal, extrapolando os limites da lei, obrigatoriamente vincular e reger o procedimento licitatório capitaneado por outro ente da federação, autor de regulamento próprio? Acreditamos que não. Tal tentativa afronta a autonomia dos entes federados, bem como extrapola a atribuição regulamentar do decreto.

Por outro lado, tratam-se de transferências voluntárias, sob as quais o ente concedente pode estabelecer premissas e exigências, já que, em rasa análise, são receitas de seu orçamento próprio que estarão sendo destinadas voluntariamente a outro ente ou órgão. Assim, em um raciocínio pouco refinado (que, aqui, intencionalmente deixa à margem as sensibilidades atinentes a um regime federativo), caso não concordasse com a exigência do decreto federal, bastaria ao Estado ou ao Município não se submeter à exigência, deixando de postular a transferência dos recursos federais.

A solução para o dilema pressupõe a correta identificação da natureza jurídica do dispositivo do Decreto Federal, que estabelece a obrigatoriedade e uso do pregão eletrônico, nessas transferências voluntárias.

É comum que decretos emanados de Chefes do Poder Executivo, embora denominados genericamente como regulamentos, tragam em seu bojo dispositivos com natureza jurídica diferente da regulamentar. Isso não caracteriza propriamente uma irregularidade, pois o Chefe do Executivo pode valer-se de um decreto para expedir comandos regulamentares, através de alguns dispositivos, e comandos hierárquicos, em outros dispositivos, em razão de sua condição de mais alta autoridade de um poder.

Embora esta atitude seja legítima, convém compreender que os efeitos decorrentes mudam de acordo com a natureza jurídica da regra disposta no Decreto. As disposições de natureza regulamentar têm por objetivo de explicar a lei, valendo para órgãos e entidades de todos os poderes; já as disposições de natureza hierárquica devem ser consideradas como produto do poder hierárquico, vinculando apenas os órgãos e agentes submetidos a este poder.

Nesse prumo, o Decreto nº 10.024/2019, que regulamenta o pregão eletrônico, contém disposições regulamentares, como ao tentar dispor sobre o que seriam bens e serviços comuns e especiais, mas também contém disposição de natureza hierárquica, como ao definir sua adoção como obrigatória.

Como ressabido, a Lei nº 10.520/2002, que criou o pregão, preceitua uma adoção facultativa desta modalidade, para as licitações de bens e serviços comuns. Diante da facultatividade definida pela Lei, não há comando regulamentar na disposição do Decreto que define pela sua obrigatoriedade. Há, na verdade, um comando hierárquico, uma ordem, que restringe a faculdade estabelecida pelo legislador, mas vincula tão somente quem a este poder hierárquico está juridicamente submetido. O Tribunal de Contas da União, inclusive, em lapidar julgado, relatado pelo Ministro Valmir Campelo, abordou essa diferença[1].

Em suma, ao exercer o poder regulamentar, o Presidente da República explica a aplicação da Lei, vinculando os demais Poderes da República; noutro diapasão, quando utiliza seu poder hierárquico, definindo comandos de ordem para seus subordinados (o que ocorre na adoção obrigatória do Pregão eletrônico), apenas a estes vincula, não afetando diretamente os Poderes Legislativo e Judiciário ou mesmo as demais unidades federativas.

Ora, compreendida essa peculiar diferença, convém perceber que a regra do Decreto Federal nº 10.024/2019, que estabelece a obrigatoriedade do uso do pregão eletrônico para as transferências voluntárias, apenas pode ser entendida como constitucional (interpretação conforme à Constituição), enquanto comando para os agentes públicos federais submetidos a esta hierarquia. Desse pressuposto decorre que as regras hierárquicas do Decreto federal não submetem estados, municípios e o DF, nem os demais Poderes da República. Por outro lado, embora a imposição da obrigatoriedade não decorra diretamente do Decreto, para as demais esferas federativas ou demais poderes, nas transferências voluntárias, tal obrigatoriedade pode ser pactuada no instrumento de natureza convenial.

Esta nuance traz luzes sobre a interpretação constitucionalmente admitida para a regra, de natureza hierárquica, que definiu a obrigatoriedade do uso do pregão eletrônico, nas transferências voluntárias. Trata-se, na verdade, de um comando para que os agentes públicos federais, ao firmar pactos conveniais para transferências voluntárias, definam nesses instrumentos cláusulas que exijam a adoção do pregão eletrônico nas aquisições de bens e serviços comuns envolvidos, obviamente que com o ônus argumentativo necessário para justificar essa exigência, devendo considerar: i) as particularidades de cada mercado; ii) o regime jurídico local de cada conveniado.

Assim, para o município ou estado convenente, a obrigatoriedade de adoção do pregão eletrônico, caso não exista em legislação ou normatização local, decorrerá do pacto convenial firmado e não do Decreto Federal, cuja disposição de natureza hierárquica não submete agentes públicos estaduais e municipais.

Dessa premissa podem ser desenvolvidas certas conclusões.

Em primeiro, ressalvada existência de legislação local que imponha a obrigatoriedade, eventual não aplicação do pregão eletrônico representará não propriamente uma ilegalidade (já que a Lei nº 10.520 não estabelece o pregão como obrigatório), mas um descumprimento do pacto convenial, o que pode repercutir na análise das pertinentes prestações de contas e também perante o Tribunal de Contas da União.

Em segundo, caso o instrumento convenial não contenha disposição tornando obrigatória a adoção do pregão eletrônico, esta exigência não poderá ser imposta aos demais entes federativos, com base na disposição do Decreto Federal, pois a natureza hierárquica (acerca da obrigatoriedade) restringe a amplitude vinculativa do referido comando.

Em terceiro, a assunção de pactos conveniais deve respeitar o regime jurídico legal ao qual se submete o ente convenente, evitando contradições expressas, sob pena de gerar impasses à execução do pacto de cooperação. Assim, a imposição, por instrumento convenial, de específicos ritos procedimentais, contrários a disposições legais locais às quais se submetem os agentes públicos que atuam em nome do ente convenente, pode gerar impasses de legalidade na execução do convênio. Isso porque, diante desta aparente antinomia, o agente público municipal ou estadual enfrentará o dilema de cumprir o regramento legal específico ou a regra convenial, uma vez que nosso ordenamento constitucional, ao menos por enquanto, não admite que instrumentos conveniais pactuados por autoridades do Poder Executivo revoguem leis aprovadas pelo Poder Legislativo, muito menos autorizam que agentes públicos federais, estaduais ou municipais desconsiderem o modal deôntico de enunciados normativos locais.

Esta última premissa, bom esclarecer, não prejudica que o instrumento convenial estabeleça a obrigatoriedade de uso do pregão eletrônico, pressupondo-se que inexistirá lei local impedindo esta utilização. Por outro lado, especificidades da normatização federal, em relação a esta modalidade, não poderão ser impostas pelo instrumento convenial, quando conflitantes com a legislação local sobre esta modalidade.

 



[1]TCU. Acórdão 3274/2011, Plenário. Rel. Min. Valmir Campelo.