Os desafios hermenêuticos da futura nova lei de licitações e contratos

 

 

 

GABRIELA PÉRCIO

@gabrielavpercio

Advogada especializada em Direito Administrativo. Mestre em Gestão de Políticas Públicas. Sócia na GVP Parcerias Governamentais. Presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública (INCP). Membro associado do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Professora convidada do Centro Educacional Renato saraiva (Recife, PE), do Instituto Goiano de Direito (IGD) e do Instituto Mineiro de Direito (IMD).

 

A aprovação do PL 4.253/20 nos colocou em uma jornada de ansiedade: tentar compreender o cenário das contratações públicas no contexto da futura nova lei de licitações. Particularmente, tenho buscado enxergar pontos positivos para me conformar com a ideia de que teremos a revogação integral de um regime jurídico sem haver mudanças estruturais. Habebimus novam legem e vida que segue. Mas, é impossível deixar de pensar nas consequências práticas dessa mudança, radical do ponto de vista formal, mas com poucas novidades genuínas.

 

Do ponto de vista do operador, quem já trabalha com a legislação atual terá menos dificuldades, mas ficará confuso com tantas “semelhanças diferentes”. Já para intérpretes, juristas, consultores, assessores, controladores, vejo alguns desafios importantes, que compartilhei em uma live do Portal de Compras Públicas da qual participei, realizada uma semana depois da aprovação do PL no Senado Federal.[1]

 

O primeiro deles tem a ver com o fato de que o PL transporta para o texto da futura lei regras federais já conhecidas, assim como entendimentos do Tribunal de Contas da União e da Advocacia Geral da União, exarados na vigência do atual regime. A crítica feita por muitos, entre os quais me incluo, é exatamente essa: uma lei nacional, mas com a cara de Brasília e da Administração Pública Federal. Esse deverá ser o seu DNA. Então, o desafio será compreender e separar normas gerais e especiais, uma tarefa que nunca foi fácil, mas é um esforço absolutamente necessário para fugir do paternalismo normativo.

 

O segundo desafio será ler a nova lei sem o ranço das leis mortas e de seus institutos. Um bom exemplo é a compreensão da nova concorrência, que praticamente nada tem a ver com a da Lei nº 8.666, de 1993, a não ser o nome. Essa problemática alcança de uma forma muito especial os órgãos de controle e de assessoramento jurídico, que precisarão revisitar posicionamentos importantes. Para citar um, apenas: a impossibilidade de revisão do preço registrado em ata de SRP ao argumento de que o reequilíbrio é cabível apenas em sede de contrato. Esse fundamento não sobrevive diante da forma com que o PL disciplina o assunto.

 

O terceiro desafio, talvez o mais importante, será abraçar a oportunidade de fazer dessa mudança uma coisa verdadeiramente boa. Nos idos anos 2000, li um artigo do professor Alexandre Santos de Aragão, intitulado “O princípio da eficiência” (RDA 237, jul/set 2004), que mudou meu conceito de hermenêutica jurídica. Com uma lucidez maravilhosa, ele escreveu:

 

“[O] Direito deixa de ser aquela ciência preocupada apenas com a realização lógica dos seus preceitos; desce do seu pedestal para aferir se esta realização lógica está sendo apta a realizar os seus desígnios na realidade da vida em sociedade. Uma interpretação/aplicação da lei que não esteja sendo capaz de atingir concreta e materialmente os seus objetivos, não pode ser considerada como a interpretação mais correta.”

 

No horizonte da nova lei, não tenho dúvidas de que será fundamental interpretá-la à luz do princípio constitucional da Eficiência, em busca de normas que produzam os melhores resultados considerando os objetivos do legislador e tendo em vista a realidade a ser alcançada. Precisaremos potencializar sua eficácia, ampliando ao invés de restringir, soltando ao invés de amarrar, extraindo dela a sua melhor versão. Sem uma mudança de comportamento, não haverá uma nova ordem jurídica, mas apenas uma nova lei, parecida com a anterior, interpretada pelos mesmos, operada pelos mesmos, controlada pelos mesmos. Sem descer do pedestal, não haverá avanços.

 

 



[1] Acesso livre pelo canal do Portal de Compras Públicas no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=YdWAyLS66no.