CONTRATAÇÃO INTEGRADA: É PRECISO PÁ, NAVEGAR, NAVEGAR

 

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.

 

Chico Buarque de Holanda

 

Entre uma maré e outra, ao sabor dos ventos, o ordenamento jurídico brasileiro vem ampliando o número de normas relativas a licitações e contratos. Vigem hoje: a Lei nº 8.666, de 1993; a Lei nº 10520, de 2002 (Lei do Pregão); a Lei nº 13.303, de 2016 (Lei das Estatais) e, ainda, a Lei nº 12.462, de 2011, a chamada Lei do Regime Diferenciado de Contratações - RDC.

Esta última é uma norma que nasceu para ser de direito intertemporal. Porém, houve um espraiamento de suas hipóteses de incidência.

Originalmente (agosto/2012) era exclusiva para Jogos Olímpicos e Paraolímpicos; para Copa da Confederações e Copa do Mundo, além das obras de Infraestrutura e serviços de aeroportos até 350 Km das sedes; depois agregou as ações do Programa de Aceleração do Crescimento- PAC; em seguida possibilitou a incidência sobre as obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS; mais adiante incluiu as obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma e administração de estabelecimentos penais e de unidades de atendimento socioeducativo, os contratos built to sui, e as licitações e contratos necessários à realização de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e de pesquisa, ciência e tecnologia; as ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação. Ainda, e finalmente, ampliou o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações.

Neste momento, portanto, é uma lei multiuso. Abrange todos os objetos já previstos pelas demais leis. Porém, é uma outra lei, tem outra perspectiva.

A Lei do RDC, como norma geral, possui autonomia hermenêutica. Possui novos institutos, novos procedimentos: inversão de fase, orçamento sigiloso, contratação integrada, negociação pré-contratual, restrições a termos aditivos, prazos reduzidos, lances intermediários, novos critérios de julgamento, outros critérios de desempate, contratação de remanescente de obra com outra perspectiva, entre outras novidades em relação à Lei nº 8.666, de 1993.

A Lei 8.666, de 1993, cumpriu o seu papel, fez sua travessia.

Tem havido dificuldade por parte da Administração Pública, o que se observa também em alguns acórdãos dos órgãos de controle, em reconhecer que quando uma  licitação e contratação é fundamentada na Lei do RDC, especialmente quando é adotado o regime da contratação integrada, é necessário um novo olhar, diferente daquele da Lei nº 8.666, de 1993. É preciso descolar desta lei e só visitá-la quando a Lei do RDC assim indicar. Difícil navegar por mares nunca dantes navegados.

É fundamental que se compreenda que a contratação integrada gera obrigações de resultado, e não obrigações de meio como os quatro regimes contidos na Lei nº 8.666, de 1993. Outros mares! É o anteprojeto de engenharia que estabelecerá quais os resultados que a Administração visa. O projeto básico a ser desenvolvido pela contratada deverá atingir esses resultados. E ponto!

A contratada se prevalecerá de sua expertise para escolher os melhores meios, a melhor tecnologia e/ou metodologia, os materiais mais condizentes, o sistema ideal, tudo para atingir o resultado previsto no anteprojeto de engenharia e que deverá ser cobrado pela Administração.

À Administração cabe conhecer que resultados o mercado tem condições de oferecer e chegar, porém não cabe a ela saber como chegar a esses resultados. Conhece o porto que deseja chegar, mas não prediz como deve se navegar para atingi-lo. A Administração não é detentora dessa experiência, por isso busca a potencial capacidade inventiva do mercado e transfere à contratada a elaboração do projeto básico e executivo. “Navegar é preciso”, mas quem conhece os meios para se atingir esta precisão é o mercado.

Exigir resultados implica estabelecer indicadores que possibilitem mensurá-los. Parece óbvio que a Administração deve exigir índices que superem aqueles que utiliza em suas obras convencionais com as tecnologias e metodologias usuais em suas obras, a exemplo de indicadores de prazo de execução da obra, sustentabilidade ambiental (emissão de CO2, redução de resíduos da construção civil, redução do consumo de água durante a construção), melhor conforto (térmico, acústico), economia da operação e manutenção (energia, água, esgoto), resistência ao fogo, entre outros possíveis.

Uma vez que a contratada apresente o projeto básico à Administração, a esta cabe a análise se aquele instrumento é compatível com o resultado pretendido no anteprojeto de engenharia, se o projeto elaborado pela contratada atingirá os objetivos estabelecidos nos elementos instrutores do instrumento convocatório. A Administração ao indicar o porto que pretende ver alcançado, confia à contratada a escolha do melhor caminho, do barco mais adequado para a viagem, de seus tripulantes e tudo que for necessário para que seja alcançado o cais.

Não pode se esperar que a Administração confira aspectos técnicos do projeto básico, pois a razão que a levou a optar pela contratação integrada foi a de ir ao mercado buscar novas tecnologias e internalizá-las em suas obras, exatamente porque não domina todos os meios conhecidos da engenharia e da arquitetura, especialmente as tecnologias evolutivas e disruptivas disponíveis e ainda pouco utilizadas.

A análise e a aceitação do projeto, assim prevê os §§2º e 3º do art. 66 do Decreto nº 7.581, de 2011, deverá limitar-se a sua adequação técnica em relação aos parâmetros definidos no instrumento convocatório sem que com isso possa haver a assunção de qualquer responsabilidade técnica sobre o projeto pelo órgão ou entidade contratante.

É evidente que não é coerente esperar que a Administração, ao receber o projeto básico, analise, tal qual o faz e deve fazer nos regimes da Lei nº 8.666, de 1993, cada um dos serviços constantes da planilha orçamentária que lhe é entregue, bem como seus custos unitários. Lá a obrigação é de meio e determina quais são todos os serviços a serem executados, por isso eles devem ser examinados. Aqui não há como analisar itens de uma tecnologia que não tem domínio.

Por outro lado, para se evitar o malfadado “jogo de cronograma”, e para que seja assegurado que as parcelas desembolsadas observem ao cronograma financeiro, Administração pode estabelecer margens percentuais máximas das etapas do cronograma a partir de uma estrutura analítica de projeto, de modo que o preço global contratado seja pago em parcelas mensais de acordo com os serviços efetivamente executado e no percentual máximo admitido no instrumento convocatório para cada uma dessas etapas. Para isso, a contratada, ao entregar o projeto básico, deve adequar o cronograma físico-financeiro da obra a esses limites pré-determinados, de modo que, como estabelece o § 3º do art. 40 do Decreto nº 7.581, de 2011, seja assegurado que as parcelas desembolsadas sejam compatíveis com o cronograma do objeto licitado.

A lei não exigiu mais do que aqui se expôs. Ventos novos sopraram com o RDC e sua contratação integrada. Que não se recolham as velas. Se o vento mudou, é preciso ajustá-las!