INTEGRIDADE E COMPRAS PÚBLICAS EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

 

1. Entre os muitos desafios colocados pela Covid-19, merece particular destaque o do aprovisionamento público: com efeito, por força do súbito surgimento e galopante propagação da pandemia, a Administração viu-se obrigada a, num curto espaço de tempo, proceder à aquisição, em larga escala, de bens e serviços destinados a prevenir, mitigar e combater a doença – em especial, dispositivos médicos (v.g., ventiladores) e equipamento de protecção (como luvas, máscaras e viseiras), mas não só.

Ciente de que este novo contexto de emergência obrigaria, inevitavelmente, a um reforço do papel do “Estado comprador” e de que o “espartilho” do regime geral da contratação pública poderia constranger excessivamente a desejável agilidade nas aquisições motivadas pela pandemia, o legislador Português – aliás, replicando aqui um padrão recorrente em alturas de crise, em Portugal e noutros países – procedeu à aprovação de diversos regimes excepcionais de contratação pública (cf., em especial, os Decretos-Leis n.º 10-A/2020, de 13 de Março – várias vezes alterado –, n.º 10-I/2020, de 26 de Março, n.º 18/2020, de 23 de Abril, e n.º 20-A/2020, de 6 de Maio).

Olhando para estes sucessivos diplomas, é sem surpresa que se verifica que a opção legislativa passou, uma vez mais, pelo sacrifício da concorrência em prol da celeridade, flexibilizando os pressupostos para a adopção do ajuste directo – em particular, permitindo-se o recurso a este procedimento independentemente do valor dos contratos a celebrar, “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa”, sem obrigação de convite a mais do que uma entidade nem sujeição aos impedimentos decorrentes da contratação reiterada ao mesmo operador económico nos anos anteriores, e sem necessidade de apresentação dos documentos de habilitação ou da prestação de caução, prevendo-se ainda a imediata produção de efeitos do contrato e a sua isenção de visto prévio pelo Tribunal de Contas.

 

2. Seja qual for o juízo que se formule sobre a efectiva necessidade destas medidas, uma coisa é certa: um quadro legal tão permissivo como o descrito pode facilmente prestar-se a abusos e desvios. Como é reconhecido, as situações de crise propiciam disfunções no funcionamento do mercado da contratação pública, seja porque a possibilidade de adopção generalizada de procedimentos não concorrenciais pode permitir favoritismos ou mesmo fomentar a corrupção, seja porque a pressão da procura pública pode ser explorada pelo lado da oferta privada, tanto através de esquemas de concertação ou cartelização como, mais simplesmente, através de “ultimatos” que, aproveitando a situação de necessidade, imponham a compra a um preço exponencialmente elevado ou a aceitação de uma degradação nos parâmetros de qualidade. Como sublinha o Tribunal de Contas, “[a] contratação pública em contextos de emergência é uma das áreas identificadas como mais permeável à corrupção. Para além de favorecimentos nas adjudicações diretas, potenciam-se práticas de manipulação do mercado e dos preços e, no plano da execução contratual, riscos acrescidos de fornecimentos deficientes, pagamentos sem contrapartida adequada e desvios de bens. A aceleração de pagamentos e adiantamentos aos fornecedores, para facilitar a continuidade dos seus negócios, também aumenta os riscos na execução dos contratos[1].

 

3. Consciente destes riscos, que reconhece (e que se terão seguramente verificado durante estes meses[2]), o próprio legislador estabelece algumas medidas de prevenção, essencialmente ligadas à transparência na contratação, com vista a conciliar “a celeridade procedimental exigida com a defesa dos interesses do Estado e a rigorosa transparência nos gastos públicos” (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020).

Nesta linha, além de continuar a impor a publicitação destes contratos no Portal Base[3], acrescenta ainda a obrigação da comunicação da sua celebração aos membros do Governo responsáveis pela área das finanças e pela respectiva área sectorial (cf. artigos 2.º, n.º 4 e 2.º-A, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020), o que é feito através do Sistema de Recolha e Validação de Informação, disponibilizado pela Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública (cf. Despacho n.º 5186/2020 do Ministro de Estado e das Finanças, de 28 de Abril).

Adicionalmente, os contratos celebrados são também remetidos ao Tribunal de Contas no prazo de 30 dias após a sua celebração, para efeitos de fiscalização concomitante e sucessiva (cf. artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 1-A/2020) – obrigação que, segundo se receia, não estará a ser pontualmente cumprida pelas entidades adjudicantes[4].

Por fim, até 60 dias após o período de vigência do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, a Direcção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I.P. e a Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. (“SPMS”) deverão elaborar um relatório conjunto sobre “todas as adjudicações e respetiva fundamentação e circunstancialismo, designadamente justificando a impossibilidade ou grave inconveniência do recurso a outro tipo de procedimento”, o qual será publicado no sítio electrónico da SPMS (cf. artigo 2.º-A, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020).

Por conseguinte, apesar do “aligeiramento” dos mecanismos de controlo prévio, motivado pela urgência nas aquisições a efectuar, estas são públicas e estarão depois sujeitas a um escrutínio posterior – tanto quanto se sabe, aliás, terão já sido promovidas auditorias para analisar a regularidade dos procedimentos de contratação adoptados por diversas entidades públicas no contexto da pandemia.

 

4. Não obstante a “transparência dos processos de contratação” constitua, nas palavras do Tribunal de Contas, “[a] principal ferramenta a utilizar para compensar o aligeiramento dos procedimentos e a sua não sujeição à concorrência”, parece evidente que a mera previsão de um controlo póstumo não basta para assegurar que, num contexto de pressão extrema e sem “amarras” concorrenciais, os compradores públicos tomarão as decisões mais correctas e livres de influências que desvirtuem a prossecução do interesse público.

Por este motivo, têm-se multiplicado os alertas por parte de entidades como a Comissão Europeia[5] e a OCDE[6] ou, em Portugal, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P.[7], o Tribunal de Contas[8] e o Conselho de Prevenção da Corrupção[9]. Em termos gerais, as ressalvas formuladas prendem-se com a necessidade de assegurar que a adopção de procedimentos anti-concorrenciais constitua um instrumento de último recurso[10] e seja limitada ao estritamente necessário e apenas para a celebração de contratos directamente relacionados com a pandemia, devendo as decisões de contratar e de escolha e configuração do procedimento ser devidamente fundamentadas e documentar por escrito o iter da entidade adjudicante  – designadamente, no que respeita à verificação dos requisitos de excepcionalidade e de “justa medida” (quer quanto ao objecto, quer quanto à duração do contrato), bem como quanto a outros aspectos relevantes da contratação (v.g., relativamente às negociações e razões para a escolha e a regras aplicáveis, como as autorizações necessárias e à verificação de cabimento orçamental).

Adicionalmente, cada entidade adjudicante deve ainda accionar os mecanismos de controlo interno destinados a garantir a inexistência de conflitos de interesses ou de favorecimentos, bem como a observância do princípio da imparcialidade.

E, em sede de execução contratual, deverão as mesmas entidades assegurar o controlo da qualidade e stock dos produtos fornecidos – corrigindo “eventuais faltas de atenção à qualidade dos serviços e das aquisições” – e reforçar os mecanismos de acompanhamento concomitante e auditoria.

Isto, apenas numa perspectiva de curto-médio prazo, sabendo que o principal regime excepcional de contratação pública relacionado com a Covid-19 – o que consta do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 – também se aplica à celebração dos contratos destinados à “reposição da normalidade” na sequência da pandemia (cf. artigo 1.º, n.º 2). O que, naturalmente, não prejudica a tomada, desde já, de opções estratégicas de longo prazo, como sejam a aprovação de um quadro legal comum a todas as situações de emergência (caso se entenda que o bloco normativo já existente – formado, em especial, pelo regime do Código dos Contratos Públicos e da Lei de Bases da Protecção Civil – não é suficiente[11]) e a implementação ou reforço de mecanismos de controlo interno e de monitorização em cada entidade adjudicante, além de se reforçar a aposta na – cada vez mais necessária – profissionalização de todos quanto intervêm em procedimentos de contratação pública.

 

5. Em suma: por natureza (leia-se, por envolver a atribuição, ao mercado, de bens ou utilidades escassos), a contratação pública é sempre um terreno potencialmente fértil a fenómenos de promiscuidade, favoritismos e mesmo corrupção. E a contratação pública dita “de emergência” não está livre destes riscos – pelo contrário, está-lhes ainda mais exposta. Por este motivo, o facto de os contratos celebrados estarem relacionados com a Covid-19 não constitui qualquer pretexto para a entidade adquirente ser mais branda ou complacente com aqueles fenómenos, mas antes para ser pelo menos tão rigorosa (senão mesmo mais rigorosa ainda) como seria no contexto da celebração de qualquer outro contrato “normal”.

Uma advertência ou um apelo que vale não só para Portugal, mas também, naturalmente, para o resto do Mundo, esperando-se que o panorama acima descrito possa permitir às entidades adjudicantes brasileiras colher bons ensinamentos da experiência lusitana, nos seus acertos e também (se calhar, sobretudo...) nos seus erros.

 



[1]  Cf. Riscos na utilização de recursos públicos na gestão de emergências (Covid-19), de 1 de Junho de 2020, disponível em https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/outras-acoes-controlo/relatorios-oac/Documents/2020/relatorio-oac-2020-01.pdf.

[2] Neste sentido, afirmando que “[a] presente pandemia foi, mais uma vez, uma impressiva ilustração de como agentes económicos menos idóneos procuraram defraudar as entidades públicas e privadas na aquisição de bens de primeira necessidade no combate ao surto”, cf. Miguel Assis Raimundo, “Covid-19 e Contratação Pública – O Regime Excepcional do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 80, Vol. I/II, Janeiro/Junho de 2020, páginas 202 e 203.

[3] Refira-se que, paralelamente, os dados relativos à celebração de contratos relacionados com a Covid-19 se encontram também publicitados numa página da Internet da responsabilidade do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P.: cf. https://dados.gov.pt/pt/datasets/contratos-2020-decreto-lei-n-o-10-a-2020-de-13-03/.

[4] Cf., neste sentido, o Relatório n.º 3/2020 – OAC, de Julho de 2020, sobre o “Acompanhamento dos Contratos Abrangidos pelo Regime de Exceção Previsto na Lei n.º 1-A/2020, incluindo os Isentos de Fiscalização Prévia”, maxime a páginas 31, disponível em https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/outras-acoes-controlo/relatorios-oac/Documents/2020/relatorio-oac-2020-03.pdf.

[5] Cf. Orientações da Comissão Europeia sobre a utilização do quadro em matéria de contratos públicos na situação de emergência relacionada com a crise da COVID-19 (2020/C 108 I/01), publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, C 108 I/1, de 1 de Abril de 2020.

[6] Cf. Public Integrity for an Effective COVID-19 Response and Recovery, actualizado a 19 de Abril de 2020, disponível em http://www.oecd.org/coronavirus/policy-responses/public-integrity-for-an-effective-covid-19-response-and-recovery-a5c35d8c/.

[7] Cf. a Orientação Técnica n.º 6/CCP/2020, de 7 de Abril de 2020, disponível em http://www.impic.pt/impic/pt-pt/noticias/orientacao-tecnica-65ccp2020.

[8] Cf. Riscos na utilização de recursos públicos na gestão de emergências (Covid-19), acima citado.

[9] Na sua Recomendação n.º 2/202, sobre Prevenção de riscos de corrupção e infracções conexas no âmbito das medidas de resposta ao surto pandémico da Covid-19, de 6 de Maio de 2020, publicada no Diário da República, II Série, Parte E, n.º 94, de 14 de Maio de 2020.

[10] Devendo as entidades adjudicantes, preferencialmente, “promover a centralização de compras e o recurso a acordos-quadro”, bem como adoptar “práticas de planeamento e partilha de recursos assim que for possível”.

[11] A este propósito, refira-se que o combate à corrupção constitui uma das temáticas abordadas na revisão do Código dos Contratos Públicos actualmente em curso, preconizando-se que passe a ser exigida ao adjudicatário, enquanto documento de habilitação, a apresentação de um plano de prevenção de corrupção e de infraçcões conexas (cf. o novo n.º 9 do artigo 81.º, na redacção proposta pela Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª, disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=45053).

Apesar de esta exigência apenas se aplicar nos procedimentos de celebração de contratos sujeitos a visto prévio pelo Tribunal de Contas – ou seja, actualmente, contratos de valor superior a € 750.000 (cf., neste sentido, o artigo 48.º, n.º 1 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, na nova redacção que lhe foi dada pelo artigo 7.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho) – e apenas quando o adjudicatário não seja uma pessoa singular ou uma micro, pequena ou média empresa, ainda assim, cremos que esta exigência vai no bom sentido.