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Valor Jurídico do Plano Anual de Contratações

Rafael Sérgio de Oliveira

É doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito e Especialista em Direito Público. Participou do Programa de Intercâmbio Erasmus+, desenvolvendo pesquisa na área de Direito da Contratação Pública na Università degli Studi di Roma - Tor Vergata. É Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e Colaborador do Portal L&C.

Estes comentários buscam responder se a Administração Pública se vincula ao seu próprio Plano Anual de Contratação – PAC. Em outras palavras, uma vez incluída no PAC a contratação de um serviço, deverá a Administração necessariamente contratá-lo no ano seguinte? Ou ainda: caso a Administração não inclua no seu PAC uma determinada contratação, ela poderá realizá-la no momento da execução do PAC? Enfim, talvez a questão ainda possa ser formulada da seguinte maneira: o Plano Anual de Contratação é um instrumento de gestão ou é um instrumento jurídico?

Dedicamo-nos a este tema porque temos ouvido de vários gestores relatos de que alguns órgãos envolvidos no processo de contratação, sobretudo as consultorias jurídicas, têm questionado contratações não previstas no PAC ou previstas de modo diverso daquela proposta no momento da execução (exemplo de quantitativos e valor estimado diferentes dos indicados no PAC).

Pedimos licença para inverter a ordem dos textos acadêmicos e apresentar primeiramente a conclusão para só depois expor os seus fundamentos. Assim, desde já asseveramos que o Plano Anual de Contratação é um instrumento de gestão, cujo valor jurídico é apenas o de imputar às autoridades competentes eventual responsabilidade pela ausência de planejamento ou por ter planejado mal. O fato de um contrato não constar inicialmente do PAC não o torna ilegítimo ou ilegal, pois o Plano Anual de Contratação não tem o poder jurídico de vincular a entidade ou o órgão contratante.

 

Do Dever de Planejar

De há muito que a legislação relativa à administração pública brasileira em seus diversos níveis tem integrado ao Direito Administrativo elementos relativos à atividade gerencial. Para não ir tão longe, ficamos na Emenda Constitucional nº 19/1998, que incluiu no texto da Constituição de 1988 o princípio da eficiência como um dos cânones de regência da atividade administrativa estatal.

Pode parecer óbvio que o Estado, na qualidade de responsável por prestações tão relevantes, tem o dever de ser eficiente nas suas entregas à sociedade. Todavia, o problema não estar no dever de o Poder Público ser eficiente ou não, mas no fato de uma postura eficiente encontrar muitas vezes barreiras na consecução das garantias individuais e coletivas que a atividade pública deve obediência (motivação, publicidade, estabilidade do servidor público e outras). Ou seja, a preocupação exagerada com elementos garantistas – dado o seu cunho jurídico – leva os agentes públicos a descurar do gerenciamento eficiente das tarefas do Estado.

Tal fato tem gerado a inclusão de elementos gerenciais nas normas de Direito Administrativo no intuito de construir uma harmonização entre a eficiência pública e o respeito às garantias dos administrados. Pois, como ensina Emerson Gabardo, “A eficiência não está no enfraquecimento da lei ou do procedimento, mas no seu aprimoramento e valorização” [1].

A rigor, esses deveres gerenciais[2] da atividade estatal não precisavam constar de normativos, pois parece que são inerentes às atribuições de qualquer gestor. Porém, o ambiente da administração pública brasileira não desenvolveu uma cultural profissional focada no gerencialismo. A preocupação maior sempre foi a obediência ao rito procedimental para a consagração de garantias e os aspectos da gestão sempre foram considerados à luz de um personalismo, descolado dos critérios técnicos da governança pública[3].

Com intuito de implementar uma mudança nesse padrão de atuação dos agentes públicos, tem ocorrido a já citada integração de elementos gerenciais nas normas de Direito Administrativo. A título de exemplo mais recente, podemos mencionar como maior evidência desse fenômeno o Decreto nº 9.203/2017, que dispõe sobre a política de governança da administração pública federal. Referido diploma ressalta a importância para a administração pública de elementos como liderança, gestão estratégica, competência, resultado, modernização, articulação institucional, gestão de risco, qualidade regulatória, desburocratização e outros[4].

 Quanto ao planejamento, o Decreto-lei nº 200/1967 já o indicava como um dos princípios fundamentais da administração federal. Já o PAC foi previsto inicialmente na Instrução Normativa SEGES/MP nº 1/2018, mas no início deste ano de 2019 tal diploma foi revogado e o instituto em comento passou a ser regulado de uma maneira mais simplificada pela Instrução Normativa SEGES/ME nº 1/2019. Desse modo, como a norma que o instituiu inicialmente é do ano de 2018, em 2019 já há diversos PAC’s sendo executados[5].

A IN SEGES/ME nº 1/2019 veio para cristalizar juridicamente o dever de planejar anualmente as contratações e para implantar uma cultura de planejamento no ambiente de compras governamentais brasileiro[6]. Essa postura de imposição normativa do planejamento das compras não ocorre apenas no Brasil, pois há diversos países que impõem a elaboração de planos de compras governamentais por meio de normas.

O Direito da União Europeia prevê os Anúncios de pré-informação (art. 48º da Diretiva nº 2014/24/UE) nos quais a Administração divulga as contratações projetadas para os 12 (doze) meses seguintes. Ressaltamos que essa disposição se repete nas normas internas de cada um dos países da União Europeia com conteúdos diferentes. O Código dos Contratos Públicos italiano, por exemplo, exige um programa bienal de contratações de bens e serviços e um plano trienal para contratações de obras (art. 21 do Codice dei Contratti Pubblici di 2016). Nos Estados Unidos, a principal norma de compras governamentais, o Federal Acquisition Regulation – FAR, também institui o plano de contratações para o prazo de 1 (um) ano (Part 7).

O que deve ficar patente é que normas dessa natureza têm o único condão de impor à Administração o dever de planejar e de executar o seu plano em conformidade com as técnicas de planejamento, e não o de vincular o Estado a um programa de contratação. Como se verá adiante, uma autovinculação da Administração ao seu próprio plano não encontra guarida numa perspectiva gerencial e nem sob o ângulo jurídico.

 

Da Possibilidade de Alteração do Plano Anual de Contratação

A boa técnica de planejamento requer uma revisibilidade dos planos no momento da sua execução (supervisão e controle). O fato é que, mesmo considerando as técnicas de elaboração de um plano, os dados levantados no momento da construção do planejamento criam um cenário que não coincide com a realidade vivida no momento da execução, motivo pelo qual a boa implementação de um planejamento requer mecanismos de revisão para eventuais alterações do planejado com o intuito de se alcançar os objetivos da organização.

O Tribunal de Contas da União – TCU no Acórdão nº 1414/2016 – Plenário recomendou à Administração a adoção de um plano de aquisições com “acompanhamento periódico da execução do plano, para correção de desvios” (subitem 9.1.17.4). No mesmo sentido é a lição de Renato Fenili:


Numa perspectiva jurídica, poder-se-ia argumentar que de nada adiantaria a norma estabelecer o dever de planejar se a Administração estivesse desvinculada do planejamento no momento de sua execução. Não resta dúvida que a imposição do dever de planejar acarreta a obrigação de executar o plano. Ocorre que, como já dito, a técnica gerencial aponta que a implementação de um plano demanda a possibilidade de sua alteração para adaptação à realidade encontrada no momento da sua execução.

Por isso é que invocamos para a resolução da questão aqui posta os art’s. 20 e 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB. O primeiro, para se dizer que não se pode decidir com base em valores jurídicos abstratos sem considerar as consequências práticas da decisão (art. 20); o segundo, para se argumentar que na interpretação das normas relativas à gestão pública devem ser considerados os obstáculos e as dificuldades reais do agente público e as exigência do seu cargo (art. 22).

Isto é, ainda que se possa concluir com base em valores jurídicos abstratos que o dever de planejar induz ao dever de executar exatamente o que consta no plano, essa conclusão será equivocada pois contraria os art’s. 20 e 22 da LINDB. O fato é que a boa prática do planejamento indica a necessidade de revisão do programa inicialmente formulado para adequação à realidade e às dificuldades de implementação do programa. É preciso considerar elementos exógenos ao sistema jurídico para se atender as disposições dos art’s. 20 e 22 da LINDB[8], fazendo com que a gestão pública atenda sua finalidade. Em outras palavras, na prática, a imutabilidade do PAC acarretaria graves prejuízos para o interesse público, pois a técnica gerencial mostra que o planejamento deve ser acompanhado e revisado para a adequação à realidade.

Ainda numa perspectiva jurídica, poder-se-ia argumentar que o PAC visa a concretizar o princípio constitucional da publicidade (art. 37, da CF/88) e que sua publicação e execução são fundamentais para garantir transparência. Mais uma vez é preciso cautela em conclusões dessa natureza. A rigor, o PAC de fato contribui com a transparência no trato da coisa pública. Entretanto, esse não é o seu objetivo principal.

O foco do PAC é o gerenciamento, conduzindo a Administração Pública a uma melhor gestão de suas políticas por meio do planejamento e coordenação de suas ações. Nesse viés, a transparência conferida pelo plano de aquisição pode até ser prejudicial, pois há estudos que indicam que a publicação antecipada do plano facilita o conluio entre os potenciais concorrentes[9].

Registramos que em outros países os instrumentos de planejamento das compras governamentais não têm esse caráter vinculativo, servindo apenas como um documento indicativo e orientador [10], [11] e [12].

No modelo da Administração Pública Federal brasileira, a IN SEGES/ME nº 1/2019 prevê os momentos de elaboração e de revisão do PAC, distinguindo as alterações anteriores ao início da execução e as do ano de execução do planejamento. A revisão mencionada pela IN estabelece um procedimento para alteração do PAC, com destaque para os casos de redimensionamento, exclusão ou inclusão de itens (art. 9º a 11 da referida Instrução Normativa).

Ressalte-se que há várias possibilidades de incongruência entre o PAC e a sua execução, sobretudo porque o art. 5º c/c o art. 7º, ambos da IN SEGES/ME nº 1/2019, determina que diversos elementos relativos à contratação projetada constem do PAC. Segundo o supracitado art. 5º, o PAC deve estar informado com os seguintes elementos:

I - o tipo de item, o respectivo código, de acordo com os Sistemas de Catalogação de Material ou de Serviços;

II - a unidade de fornecimento do item;

III - quantidade a ser adquirida ou contratada;

IV - descrição sucinta do objeto;

V - justificativa para a aquisição ou contratação;

VI - estimativa preliminar do valor;

VII - o grau de prioridade da compra ou contratação;

VIII - a data desejada para a compra ou contratação; e

IX - se há vinculação ou dependência com a contratação de outro item para sua execução, visando a determinar a sequência em que os respectivos procedimentos licitatórios serão realizados.

Pelo que se constata do dispositivo transcrito, a exigência de obediência ao rito dos art’s. 9º a 11 da IN SEGES/ME nº 1/2019 para qualquer espécie de alteração no PAC acarretaria uma execução extremamente trabalhosa e burocrática. Pela quantidade de informações que deve constar do plano, é fácil supor que haverá detalhes que não se confirmarão no momento da execução.

Como é o caso da estimativa de valor ou da definição do objeto. Na situação da primeira, é bem provável que haja alteração na estimativa do valor orçado no plano. Em nossa avaliação, uma situação como essa não caracteriza sequer hipótese de alteração do plano, pois o que consta no PAC é apenas uma “estimativa preliminar do valor” (art. 5º, VI, da IN SEGES/ME nº 1/2019). É dizer, é um valor que a Administração apenas estima a cerca de 1 (um) ano antes da contratação. Assim, o que consta no Plano é apenas uma estimativa preliminar, de modo que eventual alteração não acarreta a necessidade de aprovação da autoridade máxima do órgão ou entidade.

Seria defensável exigir a alteração do PAC com o aval da autoridade máxima apenas nas situações em que a modificação do valor estimado impactasse consideravelmente no orçamento planejado. Nesses casos, é razoável exigir que a instância máxima revise a contratação, a fim de harmonizar as demandas inicialmente projetadas no ano anterior.

No caso de alterações na definição do objeto, a aplicação do rito previsto nos art’s. 9º a 11 só deve ocorrer se a alteração se caracterizar como uma desnaturação do objeto. Uma eventual alteração tangencial não reclama um procedimento de modificação do plano, sendo uma diferença natural do processo de implementação do planejamento.

É esse o critério que defendemos para a aplicação do procedimento previsto nos art’s. 9º a 11 da IN SEGES/ME nº 1/2019. Isto é, como os art’s. 9º a 11 da citada IN reforça a aplicação do rito de alteração do plano para as hipóteses de redimensionamento, inclusão e exclusão, eventuais mudanças no PAC que não se enquadrem nessas categorias só demandam a autorização da autoridade máxima do órgão ou entidade se impactarem consideravelmente em todo o planejamento do órgão ou entidade ou se desnaturarem a contratação inicialmente projetada. Eventuais modificações conjecturais devem ser consideradas como diferenças naturais ao processo de execução do plano, pelo que não demandam sequer o rito de alteração do PAC.

 

Considerações Finais

Conforme explanado, a regra é a da revisibilidade do Plano Anual de Contratações. Como a IN SEGES/ME nº 1/2019 prevê um rito reforçado para os casos de redimensionamento, inclusão e exclusão de itens, a esses casos deve obrigatoriamente ser aplicado o procedimento dos art’s. 9º a 11 da referida norma. Nas demais situações, a modificação do PAC não exigiria o rito dos art’s. 9º a 11, salvo se a modificação impactar consideravelmente em todo o planejamento do órgão ou entidade ou se desnaturar a contratação inicialmente projetada.

Nas situações em que a necessidade de inclusão, exclusão ou redimensionamento de contrato decorra da falta de planejamento ou de erro grosseiro[13] no planejamento das contratações[14] (art. 28 da LINDB), a Administração deverá tomar a medida necessária para a correção (redimensionamento, inclusão ou exclusão do contrato) e apurar a responsabilidade para as consequentes medidas disciplinares. A mesma conduta deverá ser adotada nos casos em que estimativa preliminar do valor ou os demais elementos do PAC forem definidos de modo equivocado em decorrência de erro grosseiro.



[1] GABARDO, Emerson. Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa. São Paulo: Dialética, 2002, p. 126.

[2] Referimo-nos a planejamento, gestão de risco, técnica de pesquisa de mercado, gestão por competência etc..

[3] Sobre esse ponto, Renato Fenili assevera que o Plano Anual de Contratação “vai de encontro a traços culturais brasileiros, impondo valores e práticas de planejamento, e, em especial, ditando uma lógica contratualista bastante avessa ao reduto personalista incrustrado em nossos costumes” (FENILI, Renato. Governança em Aquisições Públicas: teoria e prática à luz da realidade sociológica. Niterói: Impetus, 2018, p. 225).

[4] Nesse contexto, também é relevante mencionar a Lei nº 13.726/2018, que racionaliza atos e procedimentos administrativos.

[5] No ano de 2018 a elaboração do PAC não era obrigatória (art. 18 da IN SEGES/MP nº 1/2018).

[6] O Tribunal de Contas da União – TCU já havia recomendado a adoção de planos de aquisições, a exemplo do que ocorreu no Acórdão nº 1414/2016 – Plenário.

[7] FENILI, Renato. Governança em Aquisições Públicas: teoria e prática à luz da realidade sociológica. Niterói: Impetus, 2018, p. 229.

[8] FREITAS, Rafael Véras de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A nova LINDB e o consequencialismo jurídico como mínimo essencial. Acesso em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/opiniao-lindb-quadrantes-consequencialismo-juridico.

[9] GRAELLS, Albert Sanchez. The difficult balance between transparency and competition in public procurement: some recent trends in the case law of the European Courts and look at the new Directives. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2353005.

[10] GRAELLS, Albert Sanchez. Prior information notices under Reg. 48 public contracts regulations 2015. Disponível em: http://www.howtocrackanut.com/blog/2015/05/prior-information-notices-under-reg-48.html.

[11] COIMBRA, José Duarte. Planeamento da contratação e consultas preliminares ao mercado. In: ESTORNINHO, Maria João; MARTINS, Ana Gouveia (Coord.). Atas da Conferência: A Revisão do Código dos Contratos Públicos. Lisboa: FDUL, 2016, p. 110.

[12] Na Itália há julgados que indicam que o plano de contratação tem o efeito de vincular o órgão (Consiglo di Stato, Sezione IV, Nº 651/2016), porém isso não significa dizer que o plano não possa sofrer as devidas revisões.

[13] De acordo com o Acórdão nº 2391/2018 – Plenário do TCU, o erro grosseiro é aquele praticado com culpa grave, que é configurada na conduta praticada com descaso, com temeridade, com falta de cuidado indispensáveis.

[14] Salientamos que a constatação da falta de planejamento ou de erro grosseiro na montagem do plano não pode ser aferida pela simples ausência ou presença indevida de um item, ou pelo seu mau dimensionamento. O razoável é que a responsabilização do agente seja decorrente de falhas no planejamento como um todo, salvo se o erro em relação a um item específico seja grosseiro e capaz de acarretar um prejuízo ao órgão ou entidade.