L&C Comenta

A Administração Pública pode contratar serviço tipo o Uber?

Rafael Sérgio de Oliveira

É doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito e Especialista em Direito Público. Participou do Programa de Intercâmbio Erasmus+, desenvolvendo pesquisa na área de Direito da Contratação Pública na Università degli Studi di Roma - Tor Vergata. É Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e Colaborador do Portal L&C.

O L&C Comenta vem falar da possibilidade de a Administração Pública contratar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros baseado em plataforma de comunicação em rede. Isto é, serviço do Uber.

Referida situação foi analisada no recente Acórdão nº 1.223/2017 – Plenário, do Tribunal de Contas da União – TCU, relatado pelo Min. Benjamin Zymler. No referido julgado a Corte de Contas analisou o Pregão Eletrônico nº 3/2016 da Central de Compras do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão – MP, cujo objeto foi o registro de preço para a “contratação do serviço de agenciamento de transporte terrestre dos servidores, empregados e colaboradores a serviço dos órgãos da Administração Pública Federal direta, por meio de táxi e por demanda, no âmbito do Distrito Federal - DF e entorno, pelo período de 12 (doze) meses”.

No certame a Central de Compras do MP optou por prever na definição do objeto do contrato apenas o serviço prestado por táxis, o que levou o modelo de contratação a ser denominado popularmente de TaxiGov. A vencedora da licitação foi a empresa Shalom Taxi Serviços de Agenciamento e Intermediação de Pagamento de Corridas de Taxi Ltda. – ME.

Por outros motivos e pelo fato de o certame ter sido restrito para as agenciadoras do serviço de transporte por meio de táxi, o Sindicato das Empresas Locadoras de Veículos Automotores do DF – SINDILOC apresentou representação junto ao TCU contra o edital do Pregão Eletrônico nº 3/2016, que resultou no Acórdão antes mencionado.

Como o serviço a ser contratado no Pregão em comento se destinava predominantemente ao transporte na área do Distrito Federal,  a possibilidade de ampliar o objeto do contrato para admitir outro tipo de transporte individual de passageiros foi aventada pela Central de Compras em razão da publicação da Lei Distrital nº 5.691/2016, que regulou a prestação do Serviço de Transporte Individual de Passageiros Baseado em Tecnologia de Comunicação em Rede do Distrito Federal, o STIP/DF, ou seja, serviço tipo o prestado pelo Uber.

O caso foi apreciado por Parecer da Advocacia-Geral da União – AGU[1], que considerou possível a inclusão do STIP/DF, cabendo a Central de Compras ponderar, naquele momento, a oportunidade e a conveniência para o interesse público de se incluir no objeto da contratação o STIP/DF, bem como o risco jurídico inerente a essa postura, uma vez que ao tempo do certame a Lei Distrital nº 5.691/2016 ainda carecia de regulamentação. Atualmente a Lei Distrital já foi regulamentada pelo Decreto Distrital nº 38.258, de 7 de junho de 2017.

A Central de Compras do MP ponderou os riscos da inclusão do STIP/DF e concluiu que ainda seria necessário um certo tempo para que o mercado do STIP/DF tivesse a estabilidade necessária para ser contratado pela Administração Pública.

Essa justificativa, entretanto, não foi acolhida pelo TCU. No Acórdão nº 1.223/2017 – Plenário, o Tribunal, seguindo o voto do Relator, o Min. Benjamin Zymler, por unanimidade, decidiu que a exclusividade dos táxis contida no Pregão Eletrônico nº 3/2016 configura uma restrição indevida da competitividade do certame, pelo que viola o inciso I, § 1º, do art. 3º, da Lei nº 8.666/1993.

Esse é ponto central deste L&C Comenta: saber se é possível a Administração Pública contratar serviço de transporte como o prestado pelo Uber. E se é possível, só o é nos Municípios onde houver a devida regulamentação?

A questão da legalidade do Uber é bastante discutida em todo o mundo. Não é só no Brasil que se questiona a atuação da companhia americana. O ponto central dos questionamentos diz respeito à diferença de tratamento jurídico existente entre os trabalhadores dos táxis e os motoristas que operam pelo aplicativo do Uber. No Brasil, a questão tem avançado e já são três as localidades que têm regulamentação para a atividade de transporte individual privado operado por tecnologia em rede: São Paulo[2], Vitória do Espírito Santo[3] e o Distrito Federal[4].

Em nível nacional, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 5.587-A, de 2016, para prever na Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Lei nº 12.587/2012, o serviço de transporte remunerado individual privado de passageiros, cuja utilização seria exclusiva para usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede. Agora o Projeto depende de aprovação no Senado Federal e de sanção do Presidente da República.

Tem prevalecido o entendimento de que o serviço como o do Uber não pode ser comparado com aquele prestado pelo táxi. O táxi é serviço público – ou de utilidade pública[5] – de transporte individual e tem a exclusividade desse serviço[6], já o Uber presta um serviço privado caracterizado como atividade econômica e, por isso, sujeito ao regime da livre iniciativa, previsto no art. 170, Parágrafo único, da Constituição.

Sendo assim, a inexistência de lei que o regule não o torna ilegal, uma vez que seu exercício está dentro da liberdade econômica garantida pela Constituição. Pelos termos do Parágrafo único do art. 170 da Constituição de 1988, é possível que a lei regulamente o exercício de tal atividade, sujeitando-a à autorização de órgãos públicos. Porém, enquanto não houver lei reguladora dessa atividade o seu exercício é livre e independente de qualquer ato autorizativo público.

Foi nessa linha o voto do Min. Benjamin Zymler, que afirmou:

49. De todo o exposto, diversamente do asseverado pela Central de Compras do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, entendo que a ausência de lei dispondo sobre a prestação do serviço de transporte individual privado de passageiros, questão essa resolvida no âmbito do Distrito Federal por meio da Lei Distrital nº 5.691/2016, assim como a inexistência de regulamentação específica da matéria, não constituem óbice à contratação do serviço de transporte individual remunerado de natureza privada por parte da Administração Pública Federal.

Ou seja, segundo o entendimento do Min. Zymler, acompanhado pelos demais Ministros da Corte de Contas, é possível, independentemente de lei reguladora, que a Administração Pública contrate serviço de transporte individual privado de passageiros operado por meio de comunicação em rede. Ou seja, é possível a contratação pública do Uber e de empresas que prestem serviços da mesma natureza e pelos mesmos meios.

Por isso, o TCU entendeu que a exclusividade dos taxistas presente no Pregão Eletrônico nº 3/2016 restringe indevidamente a competitividade, ferindo o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993. Apesar disso, com o fito de favorecer o interesse público, o Tribunal manteve a validade dos contratos já assinados, e determinou que a Central de Compra não os prorrogue (item 9.2 do Acórdão).

Visando ao melhoramento da contratação e ao atendimento da legislação, o TCU também determinou que a Central de Compras inclua nos estudos preliminares da contratação do serviço de transporte de servidores, empregados e colaboradores o STIP/DF, ou seja, aqueles operados por empresas como a Uber e, mais recentemente instalada no Brasil, a Cabify (item 9.3 do Acórdão).

Ainda com o intuito de implantar melhoramentos, o Acórdão nº 1.223/2017 – Plenário determina que a Central de Compras realize estudos para avaliar alterações no modelo, “levando em conta, por exemplo, as possíveis vantagens do parcelamento do objeto, a possibilidade de credenciamento de empresas agenciadoras de transporte individual de passageiros etc.” (item 9.3 do Acórdão).

Embora o TCU tenha feito essas recomendações, o Min. Zymler destacou que o modelo adotado pelo Pregão Eletrônico nº 3/2016 representou um significativo avanço, gerando até o presente momento uma economia de 60,89% para os cofres públicos.

Não resta dúvida de que a contratação do serviço de transporte remunerado individual privado de passageiros operado por tecnologia em rede ainda necessita de estudos para viabilizar a sua operação. O que se destaca no caso é o fato de o TCU ter entendido que a contratação pública do serviço prestado por empresas como a Uber é possível mesmo naqueles municípios onde não haja regulamentação para a atividade, sendo restrição indevida da competitividade a exclusividade da prestação do serviço por meio de táxi.



[1]Parecer nº 1.060/2016/HTM/CGJLC/CONJUR-MP/CGU/AGU.

[2] Decreto Municipal nº 56.981/2016, que prevê as Operadoras de Tecnologia e Transporte Credenciadas – OTTCs.

[3] Decreto Municipal nº 16.770/2016, que prevê as Operadoras de Tecnologia de Transporte – OTTs.

[4] Lei Distrital nº 5.691/2016, regulamentada pelo Decreto nº 38.258/2017, que regulam o Serviço de Transporte Individual Privado de Passageiros baseado em Tecnologia de Comunicação em Rede no Distrito Federal – STIP/DF.

[5] Cf. SARMENTO, Daniel. Parecer: Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: O “caso Uber”. Disponível em: <<http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf>>. Acesso em: 24/6/2017.

[6] Art. 2º da Lei nº 12.468/2011.