L&C Comenta

As modalidades de licitação no projeto da nova lei de licitação e contrato

Rafael Sérgio de Oliveira

É doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito e Especialista em Direito Público. Participou do Programa de Intercâmbio Erasmus+, desenvolvendo pesquisa na área de Direito da Contratação Pública na Università degli Studi di Roma - Tor Vergata. É Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e Colaborador do Portal L&C.

Atendendo à indicação dos nossos leitores em enquete realizada no Instagram, este L&C Comenta trata das modalidades de licitação previstas no Projeto de Lei (PL) nº 6.814/2017, o Projeto da Nova Lei de Licitação e Contrato, que tramita atualmente na Câmara dos Deputados.

O texto ora analisado pelo Parlamento brasileiro é resultante do trabalho da Comissão Temporária de Modernização da Lei de Licitações e Contratos, criada pela Presidência do Senado Federal em 2013. Mencionada comissão apresentou uma proposta de lei, gerando assim o Projeto de Lei do Senado nº 559/2013. O Senado brasileiro aprovou, com algumas alterações substanciais, o referido projeto em dezembro de 2016 e o remeteu para a Câmara, onde agora é analisado por uma comissão especialmente instalada para tanto.

Vale ressaltar que o PL nº 6.814/2017 tem chances de virar lei dentro de alguns meses, pois o Governo Federal o incluiu entre as prioridades para o desenvolvimento da economia brasileira.


Considerações Gerais sobre o Procedimento Licitatório no PL nº 6.814/2017

O PL em comento revoga as Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/20021 e nº 12.462/20112, instalando um modelo geral de contratação pública que assimila experiências já vividas com o pregão e com o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, assim como inova com a previsão de institutos ainda não experimentados no Brasil.

Segundo o PL nº 6.814/2017, o processo licitatório tem os seguintes objetivos: a) assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública; b) assegurar a justa competição entre os licitantes; c) e incentivar a inovação tecnológica e o desenvolvimento socioeconômico (art. 9º).

Há aí algumas alterações significativas, quando comparadas às finalidades da licitação previstas na Lei nº 8.666/1993 (art. 3º). Primeiramente, a vantajosidade almejada deixa de ser a da proposta e passa a ser a da contratação, o que deve significar que os requisitos exigidos do contratado (definição do objeto e habilitação) e o critério de seleção devem levar em conta elementos que contemplem o valor da proposta e outros aspectos representativos dos ganhos contratuais presentes no momento da execução e ao final do contrato; segundo, ao invés de expressar a preocupação com a igualdade entre os licitantes pela necessidade de tratamento isonômico, o projeto se refere à justa competição, indicando, assim, um relevante vetor finalístico para a isonomia nos procedimentos licitatórios, qual seja, a justa concorrência3; e, terceiro, a finalidade instrumental da contratação pública, que na Lei nº 8.666/1993 é expressada pela promoção do desenvolvimento nacional sustentável, e no PL nº 6.814/2017 vem com a previsão do incentivo ao desenvolvimento socioeconômico acrescido do incremento à inovação tecnológica4.

Ressaltamos que, embora de forma tímida, o projeto procura fugir da rigidez procedimental contida na Lei nº 8.666/1993. Um exemplo disso pode ser encontrado no art. 10, inciso III, que prevê: “o desatendimento de exigências meramente formais que não comprometam a aferição da qualificação do licitante ou a compreensão do conteúdo de sua proposta não importará seu afastamento da licitação ou a invalidação do processo”. Enxergamos neste dispositivo a previsão do princípio do formalismo moderado, que empresta às formas legais de prática dos atos uma compreensão instrumental.

Além disso, percebemos no projeto a admissão da possibilidade de contato entre a Administração e o mercado para a formulação do objeto a ser contratado, abandonando-se, em certa medida, os meios de contato mecânicos e rígidos, bem como abrindo portas para uma atuação colaborativa entre a iniciativa privada e o Poder Público. Tal constatação é verificada na positivação do instituto do procedimento aberto de manifestação de interesse5, o PMI (art. 24), e na modalidade licitatória do diálogo competitivo (art. 29).

Outro aspecto relevante é a ampliação do procedimento eletrônico para todas as modalidades de licitação. Segundo o texto do PL nº 6.814/2017, os certames deverão ser realizados na forma eletrônica (e-procurement), admitindo-se a licitação presencial apenas nos casos previstos na lei6 (art. 10, VI, e art. 15, §§ 2º e 4º).

O procedimento da licitação, em qualquer das suas modalidades, engloba no projeto uma série de fases, que devem ocorrer na seguinte sequência: a) preparatória; b) publicação do edital da licitação; c) apresentação de propostas e lances, nos casos em que há lances; d) julgamento; e) habilitação; f) recursal; g) homologação (art. 15).

Como se viu no parágrafo anterior, o PL nº 6.814/2017 traz para todas as demais modalidades de licitação a inversão das fases de julgamento e habilitação já presente no pregão e no RDC. Se aprovado o projeto, todas as modalidades passam a ser processadas com o julgamento antes da habilitação, pelo que só é habilitado o vencedor do certame. Ressalvamos o fato de o projeto admitir, mediante exposição das vantagens, a realização da habilitação antes das fases de apresentação das propostas e lances e de julgamento.


As Modalidades de Licitação no PL nº 6.814/2017

Modalidade de licitação no Direito brasileiro significa a marcha do procedimento pelo qual é escolhido o contratado. Isto é, existem procedimentos diversos para licitar os contratos a serem firmados pela Administração, correspondendo cada um deles a uma modalidade de licitação. Essa variedade existe em razão das diferenças de valor e das diversas espécies de contratos celebrados pelo Poder Público, pelo que se exige uma adequação entre o procedimento de adjudicação e o objeto a ser contratado.

O art. 25 do Projeto da Nova Lei de Licitação e Contrato prevê as seguintes modalidades licitação: a) concorrência; b) convite; c) concurso; d) leilão; e) pregão; f) e diálogo competitivo. A tomada de preços não consta no projeto. Já o RDC, considerado atualmente como uma modalidade licitatória, deixa de existir como tal, embora muitas das práticas desse regime diferenciado tenham a sua aplicação facultada nas modalidades previstas no projeto (orçamento sigiloso, contratação integrada, o critério de julgamento de maior retorno econômico, os modos de disputa aberto e fechado etc.). A novidade é o diálogo competitivo, pois as demais modalidades previstas no PL em comento já existem no regime licitatório brasileiro.

As modalidades previstas são aplicáveis nas seguintes situações:

MODALIDADE

CABIMENTO

Concorrência (art. 5º, XXXVI c/c art. 26)

  • Contratação de obras e serviços de engenharia cujo valor estimado seja igual ou superior a R$ 150.000,00;

  • Contratação de bens e demais serviços considerados especiais ou cujo valor estimado seja de grande vulto7.

Convite (art. 5º, XXXVI c/c art. 27)

  • Contratação de bens, serviços e obras com valor estimado inferior a R$ 150.000,008.

Concurso (art. 5º, XXXVIII)

  • Escolha de trabalho técnico, científico ou artístico.

Leilão (art. 5º, XXXIX)

  • Alienação de bens imóveis ou de bens móveis inservíveis ou legalmente apreendidos.

Pregão (art. 5º, XL, c/c art. 26, §§ 1º e 2º)

  • Contratação de bens, serviços e obras comuns, assim considerados aqueles que possuam padrões de desempenho e qualidade aptos a serem objetivamente definidos no edital por meio de especificações usuais no mercado, exceto nos seguintes casos:

  • Obras e serviços de engenharia comuns com valor estimado igual ou superior a R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais);

  • Compras e demais serviços considerados de grande vulto.

Diálogo Competitivo (art. 5º, XLI, c/c art. 29)

  • Contratações cujo objeto é complexo a ponto de a Administração necessitar da colaboração do mercado para desenvolver as alternativas capazes de atender a necessidade/unitlidade pública a ser suprida com o contrato.


As hipóteses de cabimento de concorrência mencionadas na tabela acima levam em conta os casos em que tal modalidade é obrigatória. Todavia, pelo fato de esse procedimento ser mais favorável à competitividade, entendemos que, apesar de não haver previsão expressa no projeto9, a concorrência se aplica nos casos em que é cabível o convite. Assim deve ser porque o procedimento do convite tem publicidade mitigada, na medida em que não é necessária a publicação de edital, bastando que a Administração obtenha três ou mais cotações (art. 27, inciso II) e que a divulgação da intenção de obter propostas adicionais ocorra em sítio eletrônico ou em outro meio apto (art. 27, inciso III).

Em relação ao pregão, pensamos que deva permanecer o mesmo entendimento que vigora no regime atual, o de que suas hipóteses de incidência são obrigatórias. Ademais, por disposição expressa do projeto, o pregão e a concorrência “seguem rito comum” (art. 26), ou seja, têm exatamente o mesmo procedimento. A diferença entre um e outro está apenas no critério de julgamento das propostas, pois no pregão são aplicáveis apenas os tipos de licitação de menor preço ou de maior desconto (art. 5º, XL), ao passo que na concorrência as propostas podem ser julgadas com base nos critérios de menor preço, melhor técnica ou conteúdo artístico, técnica e preço e maior retorno econômico (art. 5º, XXXVI).

O concurso e o leilão permanecem basicamente com a mesma configuração que possuem na Lei nº 8.666/1993. Quanto ao leilão, o PL nº 6.814/2017 remete para regulamento as normas sobre seus “procedimentos operacionais” (art. 28).

A novidade é o diálogo competitivo10, cujo escopo é a adjudicação de contratos dotados de complexidade técnica, jurídica ou financeira. Trata-se de um instituto oriundo do Direito Europeu cujo foco inicial foi incentivar os Estados-Membros da União Europeia a promoverem parcerias público-privadas, as PPP’s. A ideia subjacente nessa modalidade de licitação é a de que o setor privado pode contribuir para as soluções públicas. Por isso, ele é apropriado para aquelas situações nas quais o poder público sabe da sua necessidade, mas não sabe como supri-la. No diálogo competitivo, o objeto da contratação é concebido no curso da licitação.

A peculiaridade desse procedimento é que antes do julgamento das propostas há uma etapa de qualificação técnica e econômico-financeira e outra de diálogo com os candidatos. A qualificação e julgamento das propostas pouco se diferem do que existe na concorrência na forma como regulada hoje, sendo a fase de qualificação, digamos assim, equivalente à habilitação técnica e econômico-financeira. Na etapa do diálogo, cada candidato apresenta a sua solução à Administração. Reparemos que se trata de diálogo mesmo, pois cada licitante apresenta sua proposta de objeto do contrato de maneira individualizada para a Administração. Escolhida a solução, parte-se para o julgamento das propostas, que deve ocorrer de acordo com um dos critérios de julgamento previstos no PL 6.814/2017.

Essa modalidade é apta para casos extremamente complexos, sendo, por isso, de aplicação restrita. Na Europa, poucos são os países que se valem dessa espécie de procedimento, apesar de o terem positivado no seu direito interno. Ele é bastante utilizado na Inglaterra e na França. Além disso, é preciso ter atenção na forma como ele está previsto no projeto, pois possui algumas inconsistências. Por exemplo, se o PL nº 6.814/2017 for aprovado como está, o diálogo não poderá ser aplicado às PPP’s.


Algumas Considerações Finais

Não resta dúvida que o PL nº 6.814/2017 avança no sentido de conferir maior qualidade ao procedimento de contratação pública brasileiro. Avanços como a inversão das fases de habilitação e de julgamento, a utilização dos meios de contratação eletrônica, a adoção de um formalismo moderado e a possibilidade de colaboração entre o público e o privado têm potencial para conferir maior efetividade às licitações, na medida em que simplificam o procedimento e permitem, se bem utilizados, um melhor conhecimento do mercado.

Todavia, acreditamos que ainda é possível avançar mais, tanto no que toca às modalidades de licitação, como no que se refere a outros pontos. Em relação às modalidades, por exemplo, é de se perguntar qual a utilidade do convite, já que o pregão eletrônico conseguiria alcançar os mesmos objetivos. Deve-se questionar, também, a razão para a existência de dois procedimentos com “ritos comuns” (art. 26), como é o caso da concorrência e do pregão. A rigor, na sistemática do projeto, não há diferença entre a marcha de um procedimento do pregão e a de uma concorrência. O que muda entre um e outro é apenas o critério de julgamento das propostas e que, ainda assim, pode coincidir em alguns casos, pois o tipo de licitação menor preço é aplicável ao pregão e à concorrência. Se o intuito é simplificar, o ideal seria prever apenas uma dessas duas modalidades, determinando obrigatoriedade do uso do critério de menor preço ou de maior desconto nos casos em que o objeto licitado for comum.

1 Lei do Pregão.

2 Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC.

3 Relevante notar que a competitividade nos procedimentos licitatórios tem um viés econômico (conseguir no mercado o maior ganho possível com a contratação) e outro isonômico, na medida em que não confere privilégios pessoais, tratando todos os interessados habilitados em condições de igualdade (GONÇALVES, Pedro Costa. Concorrência e Contratação Pública: a integração de preocupações concorrenciais na contratação pública. In: Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles. V. I. Coimbra: Almedina, 2012, p. 479-516).

4 Salientamos que a sustentabilidade é prevista no projeto como um princípio (art. 4º).

5 Instrumento pelo qual a Administração pode solicitar ao mercado a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos.

6 A licitação presencial passaria a ser admitida apenas nos seguintes casos: inviabilidade técnica e desvantagem para a Administração; contratação que demande a verificação da conformidade do objeto; e as licitações realizadas por Municípios com até 10.000 eleitores (art. 15, § 2º, incisos I, II e III).

7 Aquelas superiores a R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais), conforme definido no inciso XX do art. 5º do PL.

8 Acerca do convite, há uma contradição no texto do PL remetido para a Câmara, pois o art. 27, I, diz que tal modalidade pode ser utilizada no caso de licitações com valor inferior a R$ 150.000,00, ao passo que o art. 5º, inciso XXXVII, fala que a modalidade convite é cabível nas contratações com valor estimado de até R$ 150.000,00. Adotamos na tabela acima a posição que privilegia as modalidades com maior competitividade, pelo que, consideramos o limite do art. 27, inciso I, do PL nº 6.814/2017.

9 O fato é que o PL nº 6.814/2017 não traz disposição semelhante à do art. 23, § 4º, da Lei nº 8.666/1993, segundo a qual a concorrência é aplicável nas hipóteses em que o convite é cabível. Ainda assim, entendemos que essa mesma regra é aplicável no sistema do PL, já que, segundo as normas do projeto, a única distinção entre as hipóteses de cabimento do convite e da concorrência é o valor estimado da contratação. Se assim é, deve ser privilegiada a modalidade que ofereça maior eficácia ao princípio da ampla concorrência.

10 Já publicamos aqui no Portal L&C artigo de minha autoria sobre essa modalidade de licitação, tendo em conta, inclusive, a sua regulamentação no PL nº 6.814/2017. Seguem as referências: OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. O Diálogo Competitivo do Projeto de Lei de Licitação e Contrato Brasileiro. Disponível em: http://licitacaoecontrato.com.br/exibeArtigo.html?assunto=oDialogoCompetitivoProjetoLeiLicitacaoEContratoBrasileiro.