L&C Comenta

Da exigência de qualificação técnica atrelada a uma tipologia específica do objeto

Rafael Sérgio de Oliveira

É doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito e Especialista em Direito Público. Participou do Programa de Intercâmbio Erasmus+, desenvolvendo pesquisa na área de Direito da Contratação Pública na Università degli Studi di Roma - Tor Vergata. É Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e Colaborador do Portal L&C.

Este L&C Comenta aborda a jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU sobre a exigência de qualificação técnico-operacional específica, ou seja, aquela vinculada a um tipo de obra ou serviço idêntico ao objeto da licitação.

A habilitação técnica (art. 30 da Lei nº 8.666/1993) é demonstrada, conforme as exigências do objeto contratual, por meio da capacidade técnico-profissional (art. 30, § 1º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993) e da capacidade técnico-operacional. A primeira refere-se à qualificação dos profissionais responsáveis pela execução contratual e a segunda é relativa à capacidade da empresa ofertante em executar o serviço ou a obra com a maestria desejada.

A despeito de não está prevista explicitamente na Lei nº 8.666/1993, a capacidade técnico-operacional é de longa data admitida pela doutrina e pela jurisprudência como a qualificação da empresa, em termos de capacidade gerencial e estrutural, de realizar obras, serviços e fornecimentos compatíveis com o licitado[1]. É especificamente sobre essa qualificação que versam estes comentários.

A regra geral encontrada na legislação e na jurisprudência do TCU é a de que a capacidade técnico-operacional pode ser exigida nas licitações, mediante justificativa[2] e com a fixação de critérios objetivos[3], restringindo-se tais critérios às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto a ser contratado. Além disso, a aptidão a ser demonstrada pelo licitante deve ser relativa a obras e serviços similares em grau de dimensão e complexidade tecnológica ou operacional, habilitando-se os concorrentes que comprovem experiência em nível equivalente ou superior ao do objeto licitado[4].

O entendimento constante no parágrafo anterior pode ser encontrado na Súmula nº 263 do TCU, cuja redação é a seguinte:

Para a comprovação da capacidade técnico-operacional das licitantes, e desde que limitada, simultaneamente, às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto a ser contratado, é legal a exigência de comprovação da execução de quantitativos mínimos em obras ou serviços com características semelhantes, devendo essa exigência guardar proporção com a dimensão e a complexidade do objeto a ser executado. (grifo nosso)

Reparemos que a legislação, no § 3º do art. 30 da Lei nº 8.666/1993, e o enunciado do TCU acima transcrito indicam que a exigência de capacidade técnico-operacional deve admitir a sua comprovação com objetos similares. Ou seja, a regra é que deve ser habilitado o concorrente que demonstre experiência em grau de dimensão e complexidade em obra ou serviço semelhante. O requisito, então, é de similitude, e não de identidade. O fundamento de tal comando é o art. 37, XXI, da Constituição de 1988, que, focado na isonomia e na ampla competitividade, só admite as exigências editalícias de qualificação técnica indispensáveis para o cumprimento das obrigações contratuais[5].

Ocorre, entretanto, que a Corte de Contas federal vem há algum tempo admitindo em casos peculiares que a capacidade técnico-operacional exigida no certame se refira a uma espécie de obra ou serviço idêntico ao licitado. Recentemente foi publicado o Acórdão nº 433/2018 – Plenário, no qual constou, no item 1 do seu sumário, o seguinte entendimento do TCU:

A exigência editalícia de qualificação técnica específica ao objeto, desde que tecnicamente justificada, é admitida como medida acautelatória adotada pela administração, pois visa assegurar o cumprimento da obrigação assumida, não constituindo, por si só, restrição indevida.   

O caso julgado no Acórdão acima refere-se à contratação do serviço de fornecimento de cartões com chip de segurança para pagamento de refeições em lanchonetes, bares, restaurantes e assemelhados, isto é, contratação do serviço de fornecimento de vale refeição. O caso foi levado ao TCU porque o edital admitia a habilitação apenas das empresas que comprovassem experiência no fornecimento de vale refeição, desabilitando os concorrentes detentores de atestados relativos a serviços similares, como o fornecimento de vale alimentação.

O TCU consignou que os serviços são diferentes, na medida em que o vale refeição serve para a aquisição de refeições em estabelecimentos de restauração (restaurantes, bares, lanchonetes, padarias, confeitarias e congêneres), ao passo que o vale alimentação se presta para o pagamento de mantimentos junto a supermercados, mercearias e similares. Com isso, a rede de credenciados da empresa fornecedora do vale alimentação é diferente daquela que fornece o vale refeição, razão pela qual a experiência da prestação de um desses serviços não presta para comprovar aptidão para fornecer o outro com a desejada qualidade. Registramos que outros certames sobre esse tipo de serviço já haviam sido apreciados pelo Tribunal nos Acórdãos nº 2.356/2013 - Plenário, 6.082/2016 - 1a Câmara e 8.291/2017 - 2a Câmara, nos quais o TCU entendeu ser possível a exigência de experiência em serviço idêntico.

Encontramos na jurisprudência da Corte de Contas outros diversos julgados relativos a obras e serviços de engenharia, assim como referentes a serviços de outras espécies, que expressam o entendimento acima mencionado. Cabe destacar que muitos casos se referiam a obras e serviços dotados de certa complexidade (obra portuária[6], construção de hospital[7] e serviço de drenagem[8]) e, ainda assim, o TCU entendeu que por bem alertar a Administração que a exigência de experiência em obra de tipologia idêntica era excessiva, fato que demonstra a excepcionalidade do requisito da capacidade técnico operacional com tipo de obra ou serviço idêntico.

A regra geral é a de que a capacidade técnico-operacional se refira a objeto semelhante ao da licitação, admitindo-se apenas em caráter excepcional, devidamente fundamentado, a comprovação da qualificação técnica em um tipo específico de obra ou serviço idêntico ao licitado.

Acreditamos que tal interpretação é a mais coerente com os princípios básicos do sistema de licitação brasileiro. Deve o gestor sempre atentar para a qualidade do contrato sem prescindir da ampla competitividade. Assim, quanto menos restrição à participação no certame melhor (art. 37, XXI, da Constituição c/c o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993). A busca deve ser pelo equilíbrio. Desse modo, se a exigência de experiência em objeto idêntico for imprescindível, deve o gestor fundamentar tal requisito no processo e fazer constar no instrumento convocatório a tipologia específica da obra ou serviço como elemento da habilitação. 



[1] GUIMARÃES, Fernando Vernalha; MOREIRA, Egon Bockmann. Licitação Pública: a Lei Geral de Licitação – LGL e o Regime Diferenciado de Contratação – RDC. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 289-290.

[2] Enunciado da jurisprudência selecionada do TCU decorrente do Acórdão nº 489/2012 – Plenário: “A Administração deve consignar, expressa e publicamente, os motivos de exigência de comprovação de capacidade técnica e demonstrar, fundamentadamente, que os parâmetros fixados são adequados, necessários, suficientes e pertinentes ao objeto licitado, a fim de assegurar a não ocorrência de restrição ao caráter competitivo do certame”.

[3] Enunciado da jurisprudência selecionada do TCU decorrente do Acórdão nº 361/2017 – Plenário: “É obrigatório o estabelecimento de parâmetros objetivos para análise da comprovação (atestados de capacidade técnico-operacional) de que a licitante já tenha prestado serviços pertinentes e compatíveis em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação (art. 30, inciso II, da Lei 8.666/1993)”.

[4] Vale transcrever aqui o § 3º do art. 30 da Lei nº 8.666/1993: “§ 3º - Será sempre admitida a comprovação de aptidão através de certidões ou atestados de obras ou serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior” (grifo nosso). Na jurisprudência selecionada do TCU encontra-se o enunciado do Acórdão nº 2898/2012 - Plenário: “É possível a comprovação de aptidão técnica por atestados de obras ou serviços similares, com complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior”.

[5] Cabe mencionar, nesse ponto, o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993, cujo texto veda a inclusão no instrumento convocatório de cláusulas ou condições comprometedoras, restritivas ou frustradoras do caráter concorrencial do certame.

[6] Acórdão nº 1226/2012 – Plenário.

[7] Acórdão nº 222/2013 – Plenário.

[8] Acórdão nº 1742/2016 – Plenário.