L&C Comenta

Serviço continuado tem de ser essencial?

Rafael Sérgio de Oliveira

É doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito e Especialista em Direito Público. Participou do Programa de Intercâmbio Erasmus+, desenvolvendo pesquisa na área de Direito da Contratação Pública na Università degli Studi di Roma - Tor Vergata. É Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e Colaborador do Portal L&C.

Este L&C Comenta aborda o suposto requisito da essencialidade do serviço de execução continuada para a aplicação do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/1993.

Trata-se de um tema quase sempre levantado nas contratações de serviços de execução contínua. A Instrução Normativa nº 5/2017, da Secretária de Gestão do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, prevê na definição dos serviços continuados o requisito da essencialidade. Diz a norma:

Art. 15. Os serviços prestados de forma contínua são aqueles que, pela sua essencialidade, visam atender à necessidade pública de forma permanente e contínua, por mais de um exercício financeiro, assegurando a integridade do patrimônio público ou o funcionamento das atividades finalísticas do órgão ou entidade, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional. (grifo nosso)

O inciso II, do art. 57, da Lei nº 8.666/1993, por sua vez, prevê como exceção à regra do caput a contratação “de serviços a serem executados de forma contínua”. Ou seja, podem ter vigência com duração superior ao do respectivo crédito orçamentário inicial os contratos de serviço cuja execução ocorra de forma contínua, admitindo-se a prorrogação ordinária da sua duração por períodos sucessivos até o limite de sessenta meses[1].

Ante o texto do art. 15 da IN nº 5/2017, a questão que se coloca diz respeito ao que se considera serviços a serem executados de forma contínua. Mais especificamente saber se, à luz da letra do art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993, andou bem a mencionada IN ao determinar a essencialidade como um dos requisitos para a caracterização da continuidade do serviço.

A análise do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/1993 leva à conclusão de que o serviço de execução continuada não tem de ser essencial para o funcionamento do órgão ou entidade contratante. O diploma legal não impõe qualquer condição relativa à relevância do serviço para a Administração Pública admitir a vigência contratual com possibilidade de prorrogação até sessenta meses.

O requisito da norma se refere apenas à frequência com a qual acontece a execução do serviço, importando, portanto, para a caracterização da espécie apenas ser a prestação da qual o Poder Público necessita temporária ou permanente. Desse modo, se a demanda da Administração se refere a um serviço cujas condições que o justificam são constantes, resta caracterizada a continuidade para a aplicação do art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993. Por outro lado, se a entidade ou órgão contratante tem aquela necessidade em razão de circunstâncias eventuais ou sazonais, ainda que se trate de algo essencial para as suas atividades, não há motivo para a aplicação da vigência contatual estendida até os sessenta meses.

Ressaltamos que o entendimento de modo diverso pode levar a situações contrárias ao interesse público e ao princípio da eficiência. Imaginemos o caso de contratação do serviço de copeiros. Salvo numa situação muito específica, essa espécie de serviço não é considerada essencial para uma entidade ou órgão. Dificilmente a interrupção da copeiragem comprometeria a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão de uma instituição pública, como requer o art. 15 da IN nº 5/2017. Por outro lado, verifica-se que, via de regra, as circunstâncias que justificam a contratação de copeiragem são constantes, razão pela qual sua execução ocorre de forma continuada. Parece irrazoável que o Poder Público possa contratar o serviço em exemplo, licitando-o anualmente, mas não possa fazer uma única licitação para um contrato com possibilidade de vigência com duração quinquenal.

Na linha do que ensina o Professor Ronny Charles Torres, o entendimento que pugna pela essencialidade do serviço para a aplicação do art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993, advém de uma interpretação restritiva decorrente da preocupação com o mau uso da hipótese de renovação da vigência contratual em comento, que ocasionaria prejuízo à competitividade nas contratações públicas[2]. Compartilhamos da mesma percepção do Professor Ronny.  Porém, aos nossos olhos, o requisito da essencialidade não evita o mal que se deseja combater.

A verdade é que exigir que o serviço seja imprescindível para o funcionamento da entidade ou do órgão não evita, por exemplo, que um serviço essencial cuja demanda pública ocorra apenas bienalmente seja contratado com base no art. 57, II, da Lei nº 8.666/1993. Insistimos na assertiva de que a determinação da continuidade depende da frequência na qual acontece a demanda pelo serviço, motivo pelo qual uma regulamentação só combateria o uso indevido do instituto em estudo se fixasse a frequência mínima anual da prestação para a caracterização dos serviços a serem executados de forma contínua.

Ainda na linha dos ensinamentos do Professor Ronny Charles, é preciso se atentar que eventuais prejuízos à competividade advindo das prorrogações contratuais seriam devidamente compensados pela queda de preço ocasionada pela extensão do vínculo contratual. As possíveis renovações contratuais tendem a gerar um maior interesse dos empresários, uma vez que representam uma razoável expectativa de faturamento mais longínquo do que na hipótese de vigência contratual clássica. Além disso, relembre-se que a prorrogação só pode ocorrer caso se comprove que o preço inicialmente contratado ainda é vantajoso para o Poder Público[3].

Outro argumento a ser levantado em benefício da essencialidade é o que aponta para o caráter orçamentário do art. 57 da Lei nº 8.666/1993. O dispositivo em comento é uma norma acerca de crédito orçamentário, na medida em que vincula a vigência de um contrato ao crédito que autoriza o seu pagamento. Como a lei orçamentária é anual, os créditos possuem vigência apenas no ano correspondente, razão pela qual a vigência de um contrato, em regra, não pode extrapolar o ano do respectivo crédito. No caso do contrato de serviço continuado, em razão da sua suposta essencialidade, a sua vigência poderia extrapolar a do seu crédito inicial porque se presumiria que a lei orçamentária seguinte não deixaria de prever recursos para uma demanda essencial para a Administração.

A despeito da coerência do argumento contido no parágrafo anterior, entendemos que ele não se sustenta por se basear apenas em aspectos orçamentários, pouco considerando os requisitos da boa administração da atividade pública. Ademais, como ensina o Professor Marçal Justen Filho, o fato de o serviço ser continuamente demandado pela Administração já é suficiente para gerar a previsibilidade de que as futuras leis orçamentárias autorizarão recursos para a sua contraprestação[4].

Nessa linha, sugerimos que a definição de serviços prestados de forma contínua prevista no art. 15 da IN nº 5/2017 seja feita com a devida cautela, considerando-se que o fato de um serviço ser útil para a Administração Pública, associado à sua demanda contínua e permanente, já é o suficiente para a aplicação do art. 57, inciso II, da Lei nº 8.666/1993. Isto é, não é necessário para a incidência do referido dispositivo que a ausência do serviço ocasione comprometimento de um serviço público ou da missão de uma instituição. A rigor, qualquer serviço só pode ser contratado pela Administração Pública, seja ele contínuo ou não, se agregar valor a um serviço público ou à missão de uma instituição.

Por isso, entendemos que, à luz da Lei nº 8.666/1993, se um serviço for útil ao Poder Público, agregando valores à atividade do ente ou do órgão, e sua demanda for constante, ele pode ser considerado serviço continuado para fins de aplicação do inciso II do art. 57 da referida Lei.



[1] Relembra-se ainda a possibilidade da prorrogação extraordinária, que possibilita a extensão da vigência contratual por mais doze meses, além dos sessenta ordinariamente admitidos (§ 4º do art. 57 da Lei nº 8.666/1993).

[2] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 625.

[3] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Op. cit., p. 625.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.119.