L&C Comenta

O sistema de registro de preço no projeto da nova lei de Licitação e Contrato

Rafael Sérgio de Oliveira

É doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito e Especialista em Direito Público. Participou do Programa de Intercâmbio Erasmus+, desenvolvendo pesquisa na área de Direito da Contratação Pública na Università degli Studi di Roma - Tor Vergata. É Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e Colaborador do Portal L&C.

Este L&C Comenta aborda mais um ponto do Projeto de Lei – PL que visa a estabelecer um novo regime de contratação pública no Brasil, o PL nº 6.814/2017. Atendendo à vontade dos nossos leitores, manifestada por meio de pesquisa realizada no Instagram do Portal L&C, teceremos aqui comentários sobre os dispositivos relativos ao Sistema de Registro de Preço – SRP constantes no PL.

As regras atinentes ao registro de preço no PL nº 6.814/2017 estão previstas nos art’s. 73 a 77, que se encontram no título relativo aos instrumentos auxiliares à contratação pública (Título IV). Isto é, segundo o regime vindouro, o SRP seria, juntamente com o credenciamento, a pré-qualificação e o registro cadastral, um instrumento auxiliar ao procedimento licitatório e às contratações (art. 691).

Nos tópicos seguintes abordaremos as diversas facetas do SRP na forma como regulamentado no PL.


Conceito, Cabimento e Espécies de Registro de Preço

O art. 5º, XLIV, do projeto conceitua sistema de registro de preço como:

conjunto de procedimentos para a realização, mediante certame na modalidade pregão, de registro formal de preços relativos a prestação de serviços, obras comuns e aquisição e locação de bens para contratações futuras;

Em termos conceituais, a redação do PL nº 6.814/2017 não traz nenhum elemento novo quando comparado com o atual regime da Lei nº 8.666/1993, regulamentado pelo Decreto nº 7.892/2013. No modelo vigente, o SRP já é um instrumento auxiliar às contratações públicas que serve para contratações futuras. Como se sabe, não se trata de uma modalidade de licitação, mas de um mecanismo que se vale do certame concorrencial para registrar o preço do licitante que oferecer a melhor proposta, visando a mais de uma contratação previstas para o tempo de validade do registro (vigência da ata).

Note-se que a licitação voltada para o registro de preço não visa, ao menos de imediato, à contratação em si, mas sim à obtenção do compromisso do empresário vencedor de, durante o tempo de vigência do registro, oferecer à Administração Pública o objeto licitado pelo preço ofertado. Realizada a licitação e registrado o preço, as contratações ocorrerão ao longo do tempo de vigência do documento que formaliza o registro (a ata). Como a Administração é quase sempre forçada a fazer uma licitação para a eleição de um contratado (art. 37, XXI, da Constituição), o SRP é um instrumento de grande valia para o Estado, na medida em que pode com uma única licitação suprir necessidades relativas a diversos momentos2.

Como se verá mais adiante, outra utilidade do SRP é a extensão subjetiva dos efeitos de uma única licitação, que pode servir para contratações do órgão ou ente que promove o certame e de outras unidades componentes da Administração que manifestem o interesse em se valer do preço registrado para contratações futuras (órgão ou entidade participante – art. 5º, XLVII, c/c o art. 77 do PL).

Deve-se destacar que o modelo previsto no PL nº 6.814/2017 amplia as hipóteses de cabimento do registro de preço, admitindo sua aplicação também para obras consideradas comuns e para locações. Ou seja, o SRP do regime geral de contratação pública continuaria aplicável às contratações de bens e serviços e ampliaria o seu escopo para as contratações de obras e locações. A aplicação do SRP às obras não seria propriamente uma novidade, pois no Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC já é admissível o uso do registro de preço para obras padronizadas (art. 32 da Lei nº 12.462/2011 c/c art. 87, I, do Decreto nº 7.581/2011). A grande inovação do PL seria a previsão de locação. Entretanto, essa autorização só se faz presente na definição do SRP, nada havendo sobre essa hipótese nas normas que regulamentam o instituto (art’s. 73 a 77).

No caso das obras e serviços de engenharia, o PL nº 6.814/2017 condiciona o uso do SRP à existência de projeto padronizado (sem complexidade técnica e operacional) e à necessidade de contratação permanente ou frequente (art. 76).

Não consta no PL dispositivo semelhante ao art. 3º do Decreto nº 7.892/2013. Em relação ao cabimento, o PL traz apenas o tipo de objeto do contrato para o qual se pode registrar preço (aquisição, serviço, obra e locação). À exceção dos SRP destinados a obras ou a serviços de engenharia, para os quais constam condições para o uso do registro de preço (art. 76), o PL nº 6.814/2017 silencia quanto às situações nas quais o uso do instrumento seria possível (contratação frequente, aquisição parcelada etc.). Acreditamos que esse tema seria tratado em regulamento a ser editado no caso de transformação do PL em lei.

Apesar de não ser muito claro em relação a este ponto, parece que o projeto em comento admite duas espécies de SRP, o comum e o permanente (art. 73). Entendemos que essa questão merece melhor normatização. Apesar de se referir a registro de preço comum ou permanente no art. 73, o projeto não traz normas que os diferencie e, pior do que isso, fixa regras apenas para o que se supõe ser o registro de preço comum, que seria aquele com prazo de vigência.


Modalidade de Licitação e Critério de Julgamento do Certame para Registro de Preço

Como visto no conceito de SRP acima transcrito (art. 5º, XLIV), a modalidade3 de licitação aplicável aos registros de preço seria exclusivamente o pregão. Ou seja, se aprovado o PL da maneira como hoje está, ele não poderia mais ser licitado nas modalidades concorrência ou pregão, como ocorre hoje (art. 15, § 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993 c/c o art. 11 da Lei nº 10.520/2002).

Com isso, os critérios de julgamento das propostas4 aplicáveis às licitações para registro de preço seriam apenas o de menor preço e o de maior desconto (art. 73, V). Esses são os únicos critérios de julgamento a serem utilizados no PL para a modalidade pregão (art. 5º, XL). É nesse ponto que faz toda a diferença não ser possível licitar registro de preço por concorrência, pois, em termos de procedimento, o pregão e a concorrência “seguem rito comum” (art. 26) na sistemática do projeto de lei em análise. A diferença entre essas modalidades está exatamente no critério de julgamento das propostas. Entendemos que seria de bom tom admitir o uso dos demais critérios de julgamento previstos no PL para o julgamento do registro de preço (isto é, admitir a concorrência para o SRP), pois é possível haver casos em que seja recomendável julgar as propostas com base em critérios que levem em conta não apenas o preço.


Figuras Subjetivas do Registro de Preço

No modelo atualmente vigente, as figuras subjetivas (ou atores5) do SRP são: o órgão gerenciador6, o órgão participante7, o órgão não participante8, o órgão participante de compra nacional9 e o fornecedor10. No PL nº 6.814/2017 há referência apenas a órgão ou entidade gerenciadora (art. 5º, XLVI), órgão ou entidade participante (art. 5º, XLVII) e fornecedor ou prestador de serviço (art. 73, VII).

O gerenciador continua sendo o responsável pela condução do procedimento licitatório – o que inclui a sua inicialização, realização e finalização – e pelo gerenciamento da ata de registro de preço (art. 5º, XLVI). É ele a quem cabe realizar o procedimento público de intenção de registro de preços, cuja finalidade é possibilitar a participação de outros órgão e entes na ata (art. 77).

O participante também tem no PL a mesma função que possui no modelo atual, sendo o órgão ou entidade federal, estadual ou municipal que se faz presente ainda na fase interna do procedimento do SRP e que tem quantitativos registrados para si na ata (art. 5º, XLVII). Ou seja, essa figura permite a centralização de um dado procedimento licitatório em um único órgão ou entidade (o gerenciador) com vistas a servir a mais de uma unidade da Administração. Trata-se da segunda função do SRP, que é a de permitir que uma única licitação atenda a mais de um órgão ou ente.

O projeto não traz o conceito do fornecedor e do prestador de serviço, o que entendemos ser irrelevante. Cabe ressaltar que essas figuras servem apenas para os registros de preço voltados para aquisição e para contratação de serviço. Como no regime do PL seria possível o SRP para obra e para locação, entendemos ser importante mencionar que nessas situações os sujeitos que terão seus preços registrados serão o empreiteiro e o locador.

Relevante notar que o PL nº 6.814/2017 suprimi a figura do órgão não participante, o carona ou aderente. Entretanto, uma leitura mais acurado do projeto demonstra que tal ponto não fica muito claro. O § 1º do art. 77 determina que a contratação decorrente de ata de registro de preço “somente” pode ser feita pelo gerenciador ou pelo participante, mas excepciona essa regra para “caso devidamente justificado”. Tal exceção deixa margem para a figura do carona, condicionada sua adesão à ata à devida justificativa. Como já tivemos oportunidade de asseverar11, entendemos que esse é um ponto merecedor de uma regulamentação mais clara no projeto, pois a figura do aderente a uma ata de SRP já foi durante anos debatido no Direito da Contratação Pública pátrio, já havendo um amadurecimento para ser regulamentado com maior acuidade em lei.


Ata de Registro de Preço

O instrumento pelo qual é formalizado o registro de preço no regime do projeto em comento continua a ser a ata de registro de preço, que é conceituada no art. 5º, XLV:

documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual se registram o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório da licitação e nas propostas apresentadas;

O conceito trazido no art. 5º não fala o quanto deve, pois, nos termos do art. 74 do PL, o compromisso firmado na ata é o de fornecimento, e não o de contratação. Assim, trata-se de um documento vinculativo e obrigacional para o empresário registrado, que se obriga a fornecer o bem, prestar o serviço, executar a obra ou locar o bem pelo preço consignado na ata.

O compromisso da Administração no projeto é atenuado, pois o PL nº 6.814/2017 mantém a facultatividade da contratação – já prevista no art. 15, § 4º, da Lei nº 8.666/1993 – e não exige mais a contratação do empresário registrado em igualdade de condições. Na sistemática do PL, é facultada a realização de certame específico nos casos devidamente motivados (art. 74). Ou seja, caso o projeto seja aprovado, a lei não mencionaria o que convencionamos chamar de princípio da priorização da ata de registro de preço, atualmente positivado no art. 15, § 4º, da Lei nº 8.666/1993, e cujo sentido é o de priorizar a contratação com base na ata de registro de preço quando houver igualdade de condições.

Na ata devem constar o objeto registrado, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas (art. 5º, XLV). O PL mantém o cadastro de reserva do art. 11, II, do Decreto nº 7.892/2013, pois admite “o registro de mais de um fornecedor ou prestador de serviço, até o limite de 5 (cinco), desde que aceitem cotar o objeto com preço igual ao do licitante vencedor” (art. 73, VII).

Uma novidade relevante é o prazo de validade das atas, que, nos termos do art. 75, “será de 1 (um) ano, podendo ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso”. Reparemos aqui a diferença para o atual regime, em que a validade do registro é “não superior a um ano” (art. 15, § 3º, III, da Lei nº 8.666/1993, c/c o art. 12 do Decreto nº 7.892/2013). Isto é, pela letra do projeto, o lapso de vigência da ata seria necessariamente de um ano, não podendo ser fixado nem prazo menor nem maior para a validade do registro. Atentamos, então, que a vigência da ata por mais de um ano dependeria da prorrogação, pelo que, considerada a literalidade do PL, o prazo inicial de vigência do documento seria sempre de um ano.

Ainda quanto ao prazo, lembramos que o PL nº 6.814/2017 faz menção no art. 73 a registro de preço comum ou permanente, o que deixa dúvidas, pois não se encontra no projeto regras condizentes com o que se poderia chamar de registro permanente de preços.

Por fim, destacamos que o PL mais de uma vez menciona a necessidade de fixação dos critérios de alteração/atualização dos preços registrados (art. 73, VI, c/c art. 73, § 3º, IV). Ante a possibilidade de vigência da ata por mais de um ano (art. 75), entendemos que será necessário abandonar a atual sistemática12 para admitir a revisão (reajuste e reequilíbrio econômico-financeiro) dos preços registrados.

1 O art. 29 da Lei nº 12.462/2011, a lei do RDC, já coloca o SRP como um procedimento auxiliar. Nesse ponto, diferencia-se do PL apenas porque usa o termo procedimento, ao invés de se referir a instrumento, como faz o projeto.

2 Quanto ao conceito de SRP, relevante é a lição do Professor Marçal Justen Filho, autor para quem o uso da expressão “conjunto de procedimentos” nada diz, pois essa é uma característica de toda a atividade administrativa. A lição do mestre paranaense aponta que “denomina-se ‘registro de preço’ a uma solução caracterizada pela existência de uma única licitação, da qual podem decorrer diversas contratações, nas condições previamente determinadas. (...) No caso do registro de preços, a licitação objetiva selecionar fornecedor, objeto e condições para uma pluralidade de contratações futuras” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 315).

3 Sobre as modalidades de licitação no PL nº 6.814/2017, consulte no menu Conteúdo Autoral a seção de L&C Comenta do Portal L&C: OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. As Modalidades de Licitação no Projeto da Nova Lei de Licitação e Contrato. Disponível em: www.licitacaoecontrato.com.br. Publicado em 20/4/2018.

4 Sobre os critérios de julgamento das propostas no PL nº 6.814/2017, consulte no menu Conteúdo Autoral a seção de L&C Comenta do Portal L&C: OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. Os Critérios de Julgamento das Propostas no Projeto da Nova Lei de Licitação e Contrato. Disponível em: www.licitacaoecontrato.com.br. Publicado em 4/5/2018.

5 Expressão utilizada em: FORTINI, Cristiana; ROMANELLI, Fernanda Maria Piaginni. Aspectos Gerais, a Intenção para Registro de Preços (IRP) e Considerações sobre os Órgãos Envolvidos. In: FORTINI, Cristiana (Coord.). Registro de Preços: análise da Lei nº 8.666/93, do Decreto Federal nº 7.892/13 e de outros atos normativos. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 45.

6 Art. 3º, III, do Decreto nº 7.892/2013.

7 Art. 3º, IV, do Decreto nº 7.892/2013.

8 Art. 3º, V, do Decreto nº 7.892/2013.

9 Art. 3º, VII, do Decreto nº 7.892/2013.

10 Termo utilizado em diversos dispositivos do Decreto nº 7.892/2013 para designar o fornecedor do bem ou o prestador do serviço registrado na ata.

11 Entrevista concedida à comunidade de compras da Escola Nacional de Administração Pública – ENAP: <https://comunidades.enap.gov.br/mod/forum/discuss.php?d=80>.

12 Como exposto no Parecer nº 14/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, no modelo atual os preços registrados na ata não podem sofrer alteração para mais, seja por meio de reajuste, seja por meio de reequilíbrio-econômico financeiro.