L&C Comenta
Ainda sobre a cota de Presos. Quando aprenderemos?
Daniel Barral
Mestrando em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa, Procurador Federal da Advocacia-Geral da União e Colaborador do Portal L&C.
Foi publicado na última sexta-feira, 14/09/2018, a Portaria Interministerial nº 3, de 11 de setembro de 2018, que buscou disciplinar o procedimento de contratação de mão de obra formada por pessoas presas ou egressas do sistema prisional nos contratos administrativos, em conformidade com o que dispõe o § 5º do art. 40 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, regulamentado pelo Decreto nº 9.450, de 24 de julho de 2018.
O assunto já foi objeto de estudo em brilhante artigo divulgado aqui no Portal L&C da lavra do Procurador Federal Diego Ornellas de Gusmão, intitulado: A reserva de vagas de presos nas contratações públicas federais – ainda há muito o que fazer.
Naquela oportunidade o articulista demonstrou a necessidade de complementação da política pública em comento com outros instrumentos de modo a viabilizar a efetiva implementação da Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional – Pnat.
Ocorre que na ocasião da divulgação do referido artigo, a portaria regulamentadora ainda não tinha sido editada, de modo que agora passaremos a analisar os impactos da nova regulamentação no tema em discussão.
Da competência para a regulamentação do assunto
O primeiro ponto que merece investigação é o relativo à Competência dos Exmos. Ministros de Estado da Segurança Pública e dos Direitos Humanos para a regulamentação, de maneira geral e abstrata, de temas relativos às licitações e contratos dos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
De logo é importante destacar que a Constituição Federal no artigo 87, incisos I e II, conferiu aos Ministros de Estado as competências para ou orientar os órgãos na sua esfera de competência ou expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos, conforme reproduzido abaixo:
Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;
II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;
III - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério;
IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República.
De certo, por figurarem em alíneas distintas no rol de competências instituído pelo art. 87 da CF, não lhes é permitido a conjunção de verbetes de modo a gerar uma competência não vislumbrada pelo Constituinte, que seria o exercício da competência regulamentar geral, fora das áreas específicas de cada uma das pastas subscritoras do ato normativo infralegal.
Isto porque, ainda que a implementação da política pública possa refletir positivamente nos temas de ambas as pastas, o certo é que a matéria objeto de regulamentação não possui qualquer relação com as temáticas de segurança pública ou promoção dos direitos humanos.
Em verdade, segundo a distribuição interna de competências no âmbito dos Ministérios, conforme dispõem o art. 30, §1º do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, art. 115 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, art. 2º, I, do Decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994 e art. 13, VII do Decreto nº 9.035, de 20 de março de 2017, competiria à Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão a expedição desta regulamentação infralegal em matéria de procedimentos de instrução de processos licitatórios.
Além disso, outra possibilidade que legitimaria a atuação destes ministérios, com fundamento no ultimo inciso do rol do art. 87 da Constituição Federal seria a delegação presidencial para estas pastas da regulamentação da matéria.
Ocorre que as competências atribuídas aos Ministérios da Segurança Pública e dos Direitos Humanos pelo Decreto nº 9.450, de 2018 são todas de natureza executiva, não havendo qualquer menção à regulamentação da matéria por parte destes ministérios.
Assim, pensamos que a Portaria Interministerial nº 3, de 11 de setembro de 2018 foi ato editado em desacordo com as competências regularmente constituídas. Mas esta não é a única falha verificada no mencionado ato, conforme se demonstrará abaixo.
Do risco ao sucesso da contratação
De acordo com o que dispõe o art. 6º, IX, “a” a “f” da Lei nº 8.666, de 1993, o gestor tem por obrigação, na fase interna da licitação, de investigar e consolidar no projeto básico ou termo de referência, todos os elementos essenciais à futura contratação que se avizinha.
Uma das principais preocupações é a verificação da capacidade de atendimento da iniciativa privada, de acordo com os parâmetros e exigências previstos no projeto básico e edital.
Com isso, determina a legislação, desde muito antes da recente moda de gerenciamento de riscos das contratações, que a Administração deve ter o cuidado de garantir que todo o tempo e dinheiro investido na instrução do processo licitatório não reste frustrado em razão da deserção ou inabilitação geral dos potenciais interessados.
Ocorre que a PNAT já é obrigatória deste o início da vigência do Decreto nº 9.450, que ocorreu na data da própria publicação, dia 24 de julho de 2018, e, portanto, os novos editais de seleção de fornecedores de serviços deveriam já conter a nova exigência, inexoravelmente.
Ora, para que o Gestor tenha a segurança de impor os percentuais previstos no Decreto em seus contratos, ele deve ter a garantia de que a contratada conseguirá encontrar, na localidade da execução do serviço, presos autorizados ao exercício da atividade em questão e com o perfil técnico profissional compatível com a função.
Neste ponto, é bom que se reconheça, o anexo I da Portaria ora comentada resolveu um dos principais pontos controvertidos da aplicação da PNAT, pois esclareceu que caso não haja disponibilidade de pessoas em privação de liberdade ou egressas do sistema prisional, aptas para a prestação dos serviços licitados, basta à licitante apresentar declaração emitida pelo órgão responsável pela execução penal no Estado onde os serviços serão prestados indicando essa condição.
Da mutação da possibilidade para a sanção desmotivada
Originalmente, a regra inserida na Lei Geral de Licitações pela Lei nº 13.500, de 26 de outubro de 2017, abriu para a Administração a possibilidade de exigir um percentual mínimo de mão de obra contratada oriunda ou egressa do sistema prisional.
Art. 40 (...)
§ 5º A Administração Pública poderá, nos editais de licitação para a contratação de serviços, exigir da contratada que um percentual mínimo de sua mão de obra seja oriundo ou egresso do sistema prisional, com a finalidade de ressocialização do reeducando, na forma estabelecida em regulamento. (grifos nossos)
Por óbvio, o verbo utilizado no comando legal em nada se relaciona com a existência de um poder discricionário, estando ali apenas para indicar a existência de autorização legal para a imposição da obrigação e, em sendo tecnicamente viável, suas disposições devem ser observadas pelo gestor responsável pela contratação.
Ocorre que, no afã de garantir a efetiva implementação da PNAT, a Portaria interministerial nº 3, de 2018[1], estabeleceu que em caso de desobediência dos artigos 5º e 6º do Decreto nº 9.450, de 2018, o agente público responsável será responsabilizado nos termos da Lei nº 8.112, de 1990, sendo obrigação da autoridade que dela tiver ciência promover sua apuração imediata.
A ilegalidade destas disposições é flagrante e foram encartadas na Portaria com o claro intuito de constranger e amedrontar os já combalidos servidores públicos responsáveis pelas compras públicas federais.
Se de um lado, sabemos todos, a ninguém é dado a possibilidade de deliberadamente descumprir a lei, por outro também já há razoável consenso a respeito da insuficiência da ideia condensada nas palavras de Seabra Fagundes de que “administrar é aplica a lei de ofício”.
Ora, o império do Direito é maior que o texto legal, o que faz do princípio da legalidade apenas um elo, o primeiro de uma corrente de juridicidade que ainda incorpora os demais elencados na Constituição Federal, implícita e explicitamente.
Assim, por mais importantes que sejam os objetivos da promoção do desenvolvimento nacional sustentável, sua aplicação deve estar compatibilizada com as demais finalidades elencadas no art. 3º da Lei nº 8.666, de 1993, em especial a da realização do melhor negócio para o Estado.
Logo, é ilegal, ex ante, inquinar de antijurídico, uma eventual atuação desconforme, sem que sejam avaliados os fundamentos conducentes à eventual tomada de decisão que afaste a PNAT de alguma contratação pública.
Ademais, vejam que curioso, recentemente a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro foi alterada pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, com o declarado intuito de conferir segurança jurídica na interpretação e aplicação do Direito Publico.
Dentre as disposições aplicáveis ao presente caso, destacamos as constantes no art. 20, que veda a decisão administrativa arrimada exclusivamente em valores jurídicos abstratos, devendo serem avaliadas as consequências práticas da decisão, o art. 22 que determina que na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, dispondo ainda que qualquer decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, deve considerar as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente, além, é claro, da Pièce de résistance constante no art. 28 que dispõe que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas apenas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Assim, ainda que flagrantemente ilegal e, portanto, impassível de produzir qualquer efeito jurídico válido, há que se registrar o desânimo de verificar que arroubos autoritários do próprio Poder Executivo minam a segurança jurídica necessária à árdua tarefa conferida aos compradores públicos, ou todos aqueles encarregados pela execução de políticas públicas.
[1] Art. 8º Será responsabilizado, nos termos da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, o agente público que não observar o disposto nos arts. 5º e 6º do Decreto nº 9.450, de 2018.
Art. 9º A não observância das regras constantes do Decreto nº 9.450, de 2018, acarreta quebra de cláusula contratual e possibilita a rescisão por iniciativa da administração pública federal, além das sanções previstas na Lei nº 8.666, de 1993.
Parágrafo único. Verificada a irregularidade na contratação, é dever da autoridade que dela tiver ciência promover sua apuração imediata, nos termos do art. 143 da Lei nº 8.112, de 1990.